Resumo: Trata-se de uma leitura de Cioran em torno do confinamento provocado pela atual pandemia. Refletirei sobre a pergunta: por que é reconfortante ler Cioran em meio ao desastre?
Palavras-chave: Confinamento, lucidez, homem, natureza, pandemia.
Abstract: In this meeting I will make a reading of Cioran about the confinement that has caused the current pandemic. I will reflect on the question: Why is reading Cioran in the middle of disaster such a comforting event?
Key words: confinement, lucidity, man, nature, pandemic.
Texto apresentado no Colóquio Internacional Liliana Herrera em torno de Cioran (14/10/2021). Tradução de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes.
Introdução
Em que tipo de mundo estamos vivendo hoje? Talvez seja o pior, mas será que é para ser lamentado? Por acaso nos bastam o rugido, o grito, o uivo de agonia? Esse grito de desespero é tão antigo quanto o próprio homem. Nada mudou. Nada de novo sob o sol. Sempre gememos contra a existência como se fosse uma necessidade amaldiçoá-la, denunciar o ritmo idiota da sociedade, a ordem injusta e decadente do sistema, nosso sofrimento e condição de mendigo no cosmo, a loucura de um Deus ausente…
Nenhum tempo foi ou será melhor que os outros. Nunca deixará de haver inconformistas que acusam a vida de niilista, supérflua, egoísta, mesquinha e cruel. Parece que qualquer tentativa otimista de defendê-la acabará sendo uma empreitada débil, ingênua e supérflua. Pois quando comparadas aos aspectos negativos que a atravessam, todas aquelas apologias caem como um castelo de areia castelo derrubado pelas ondas. Agora, em nossas circunstâncias atuais, quem melhor para denunciar nossa decadência do que Cioran? Nada melhor do que uma trágica pandemia, cheia de mentiras e terror, para retornar à sua obra lúcida. Mas, o que o filósofo do desespero tem a dizer sobre isso?
A atual pandemia gerou novas condições de vida, como o confinamento e a distância física, o que trouxe a sensação de perda da liberdade, sentimentos de incerteza, o medo de uma doença grave ou de perder entes queridos, uma visão negativa do futuro, sentimentos de desesperança, solidão… Porém, no confinamento por ela causado, a ordem planetária também foi restabelecida. A natureza foi recuperada em nosso confinamento e este acontecimento põe em causa o sentido da existência e a supremacia do homem sobre o cosmos. Diante disso, mergulhar no pensamento de Cioran pode proporcionar um certo sentimento gratificante. Por que é assim?
I
Para Cioran não há como sair vitorioso. Ele sabe muito bem que o homem está irremediavelmente condenado desde o dia em que pôs os pés na terra. A doença é o próprio homem, e o que o define: sua condição de mendicante incurável no cosmos, uma condenação perpétua, inexplicável e insaciável. O homem como um animal dilacerado, um ser miserável e fraturado, um rebelde necessitado de desastre, um exilado da quietude, preso a um devir diabólico.
Desde semelhante atoleiro, o homem não passa de um macaco sedento do pior, um triste animal contraditório que vagueia dilacerado pela própria consciência, de modo que o verdadeiro vírus, segundo esse peculiar pensamento, é o próprio homem, seu verdadeiro desconforto, a vontade, o desejo que, para consumar-se, torna-o capaz de qualquer coisa. Nós destruímos sistematicamente tudo ao nosso redor, incluindo a nós mesmos. Diante disso, o filósofo preferia ter sido uma flor ou uma pedra ou, melhor ainda, nunca ter nascido. O que há de reconfortante nisto?
II
O homem que vê com clareza é o único condenado a despertar em meio a um mundo absurdo. A lucidez é uma ferida que nunca cura. É um acontecimento que não se aprende nem se ensina nas salas de aula ou nos colóquios, ou seja, não se transmite pedagogicamente, mas irrompe repentinamente por meio de vivências repentinas que abalam o espírito de forma irremediável.
O que essa experiência revela é o vazio universal, a inanidade cósmica, o absurdo de todas as coisas. Essa revelação é tão repentina que se eleva às alturas do paroxismo, a um estado em que não é mais possível, por mais que se tente, refugiar-se em alguma ilusão. É uma percepção extrema do real que se torna insuportável e não há como evitá-la. Esse despertar surge por meio de crises irremediáveis como presenciar o suicídio de um estranho, o surgimento de uma doença incurável, a insônia e a ansiedade. Estados de vigília perpétua, de terror e sofrimento, estados que, com chegada da pandemia, o mundo atual tem sofrido.
Para Cioran, depois dessa experiência súbita, tudo o que resta é uma espécie de apaziguamento, uma forte lástima ou vergonha pela existência. Pois essa experiência revela o sofrimento universal, caindo numa espécie de sabedoria pessimista, uma vez que concebe este mundo como o pior de todos os mundos possíveis. Entende-se que tudo o que vive – minerais, plantas e animais – sofre em diferentes níveis, toda existência está condenada ao tormento. Ou seja, ninguém sofre tanto quanto o homem, mas somos todos iguais em nossa fragilidade, e essa vulnerabilidade nos conecta com tudo: “A ‘vida’ é pior do que qualquer coisa que possamos imaginar: um pesadelo permanente. Todos os seres tremem, até o leão…”[1]
III
Estamos aterrorizados com a nossa atual situação de incerteza, sentimos o tempo todo uma necessidade neurótica de preencher o vazio, de dar nome, sentido e solução a todas as coisas para sentir uma certeza, um terreno firme sobre o qual caminhar: “Os homens precisam de pontos de apoio, querem a certeza a todo custo, mesmo às custas da verdade.”[2] Porém, a ideia de que todo o universo carece de um suporte metafísico, não necessariamente significa que reinem a destruição, a morte, a doença e o niilismo; pelo contrário, Cioran nos ensina a ficar à vontade no desastre, a aprender a sofrer com dignidade, e isso equivale a viver lucidamente.
Despertar dói, porque a lucidez cioraniana tem a tarefa do desapego e da desilusão, porque suscita um abandono pelo frenesi da discussão, consegue escapar de todos aqueles discursos supostamente “inalteráveis” que são, na realidade, apenas medrosos, essencialistas, discussões neuróticas, totalitárias, eliminando a diversidade, capazes de tudo para defender sua suposta verdade. Mas nesse despertar surge um desapego da verdade, uma vez que parte da tomada de consciência de que toda posição é errada, carente de essência, relativa, mutante e convencional. Assim, a lucidez se liberta da linguagem e isso equivale a libertar-se das quimeras que sustentam o mundo.
Desperta-se no meio de um mundo de idólatras, mas aquelas certezas, esmagadas, açoitadas, apaziguadas, serão, desde semelhante abismo, apenas ilusões. Portanto, a lucidez não consiste em nada comunicar, mas antes em comunicar o nada de todas as coisas: “[…] num mundo de oprimidos, respiro; […] este prazer de visar uma ideia, de disparar sobre ela, de a ver jacente, para depois recomeçar o exercício com outra, com todas as ideias.”[3] A partir daqui, não se propõe um sistema ou uma teoria sobre o mundo, mas uma atitude ou modo de vida diante dessas teorias. É uma forma de estar no mundo onde todas as nossas afirmações ou negações são entendidas como meras ficções, inclusive as nossas.
IV
A lucidez é uma experiência que implica cair num pesadelo, e é importante notar que, ao causar estragos em quem acordou, não desaparecerão a doença, a insônia, a ansiedade, a melancolia absoluta. Mas uma certa alegria doentia será encontrada em tal desastre. Esta revelação é um despertar tão intransponível, irreconciliável e irreconciliável que, depois dela, só restam o tédio e a ironia. Os acontecimentos da vida cotidiana tornam-se insípidos e os ideais que movem o mundo não são mais motivo de euforia para os lúcidos. Porque o trágico não é superado por nenhum gozo, mas todo gozo torna-se irreconciliável com o mundo e consigo mesmo, pela impossibilidade de esquecer dita experiência reveladora.
No entanto, essa filosofia consiste em aprender a “ficar à vontade” mesmo no desgosto, aprender a suportar o insuportável. Mas como é possível estar em paz em um mundo habitado por assassinos e homens-bomba? Estar placidamente em um planeta governado pelo mal, doença, delírio, injustiça, dor e tristeza? A única coisa que sabemos bem é que está tudo errado. Se há algo sobre o qual estivemos sempre bem informados, é sobre como as coisas sempre foram ruins, e, ainda assim, Cioran pode nos ajudar a encontrar um pouco de paz nesse desastre. Ora, não é que o pior seja divertido, ele causa horror, mas para os lúcidos, esse tormento também pode ser um lugar peculiar de gozo.
É verdade, a contingência sanitária gerou bastante perdas. Mas ora, nem todos têm o privilégio de contemplar a decadência, nem todos têm o prazer de ouvir o coro apocalíptico da humanidade, nem todos conseguem ver com clareza nosso insignificante retorno às cinzas. Ou nas palavras de Cioran: “Nossa civilização está cansada… De minha parte, acompanho esse assunto com genuíno fascínio. Afinal, nem todo mundo é dado presenciar uma decadência!”[4]
A lucidez do romeno fica na ironia e “sofre” por não poder sofrer pelas coisas que sofre o mundo, que considera real e essencial algo que é simplesmente absurdo: “O cético gostaria de sofrer, como o resto dos homens, pelas quimeras fazem viver. Não consegue: é um mártir do bom-senso.”[5] Esta peculiar sensatez consiste em uma arte de viver sem fanatismo e apegos. Cioran não é totalmente pessimista, longe disso, e ainda menos otimista; é um gozador que lança pragas contra a ordem universal na forma de aforismos tão pessimistas que chegam provocar risos, goza lamentando e afirma negando, de forma totalmente intencional: “Dizem que sou pessimista. Não é certo! Essas categorias escolares são grotescas. Não se pode ser pessimista na vida, porque a vivemos.”[6] “Somos todos farsantes: sobrevivemos aos nossos problemas.”[7]
A lucidez não desperdiça energia tentando convencer ou ganhar seguidores, debilita esse egoísmo ávido, prepotente, dominador do mundo e dos outros, leva-nos à renúncia, sem ter que ser santos, porque nesta peculiar desapropriação tudo se reduz a um única coisa: finitude, inanidade, gratuidade, acaso. E a partir daqui, o eu já não ri de suas obras, ele ri sem por quê. Trata-se de aprender a suportar o absurdo da existência com um peculiar humor macabro.
Nesse sentido, Cioran é um uivo que, por meio de aforismos sinceros e dolorosos, mas libertadores, coloca o leitor diante do terror metafísico causado pela insignificância e diante da consciência do homem como paciente incurável. Mas estas ideias, em vez de serem decadentes, provocam sentimentos gratificantes. Cioran se expõe sorrindo diante do mundo, mostra suas feridas, nos mergulha nos abismos da dúvida, nos limites da linguagem, aperta nossas mentes, nos obriga a reconsiderar todas as nossas ideias e palavras arraigadas.
Segundo ele, que queria ser uma pedra ou uma flor, a existência é o pior que pode acontecer, mas esse uivo ecoa um humor peculiar, já que as afirmações de Cioran não pretendem ser verdadeiras em última instância. Se prefere ser vegetal ou mineral, o faz para denunciar que o homem é um ser maldito, pelo simples fato de ser o único que desperta em um mundo sem sentido. Não há outro ser na espécie que carregue tal condenação: sua própria consciência.
Diante da impotência de ter caído na história e nunca mais poder acessar a permanência ou a quietude do Ser, Cioran não tem escolha senão esvaziar-se por meio de aforismos negativos, mas sempre com aquele tom irônico em suas frases lapidares. Sabendo que seu desconforto é incurável, o insone não tem escolha a não ser gozar disso isso, rir, brincar. É uma risada que não exclui em seu gozo os aspectos trágicos da existência. Portanto, essa revelação tem um efeito terapêutico, pois nossas pretensões neuróticas realmente suavizam-se e, paradoxalmente, passa-se da angústia à ironia. Essa lucidez não busca preencher o vazio presente, mas aprende a viver com ele de uma forma lúdica. O coração de Cioran não pode ser partido, porque já está partido. Suas declarações são tão amargas que provocam risos: Todo êxito é um mal-entendido. Ou ainda: “Todo mundo me exaspera. Mas eu gosto de rir. E não posso rir sozinho.”[8]
V
A mãe de Cioran lhe disse um dia que, se soubesse de tudo o que o pobre iria sofrer, teria abortado, o que, em vez de ofender ou deprimir o filósofo, provocou-lhe, pelo contrário, um certo sentimento reconfortante: “Eu tinha vinte anos e minha mãe e eu estávamos sozinhos em casa. Eram duas da tarde, eu me lembro, e me joguei no sofá, exclamando: ‘não aguento mais!’. E minha mãe, que era mulher de um padre, disse-me: ‘Se eu soubesse, teria abortado!’ Devo dizer que aquelas palavras, em vez de me deprimir, foram uma libertação. Eles me fizeram bem … Pois entendi que não passava realmente de um acidente. Não deveria levar a vida a sério. Foram palavras libertadoras.”[9]
O homem é um paradoxo, e a melhor forma de atacá-lo é também por meio de paradoxos. Conhecer-se e conhecer tudo o que nos rodeia como mero acidente insubstancial gera um sentimento reconfortante, implica deixar de considerar-se o centro do mundo. Quer dizer, conceber o nascimento como o maior de todos os inconvenientes não é um pensamento inteiramente nocivo, mas uma ideia libertadora, pois se o pior é nascer, então o pior desastre já passou. Para Cioran, nascer é a pior coisa que já aconteceu porque o homem cai no tempo, sendo o único ser do planeta a ter sido lançado em semelhante atoleiro: “Ninguém se recupera do mal de nascer, chaga capital entre todas. É, no entanto, com a esperança de nos curar dele um dia que aceitamos a vida e nos submetemos às suas provações. Os anos passam, a chaga permanece.”[10]
Considerar o nascimento como o maior inconveniente é, paradoxalmente, um dos fatores que o impede de suicidar-se, algo que torna suportável o peso da vida. Entendamos que, para Cioran, a pessoa está no universo apenas para perceber como é horrível estar vivo. Ele não está interessado em resolver nossa condição no cosmos, mas em descrevê-la. E essa ideia é incômoda para o otimista, devido ao preconceito de superestimar a existência humana, produto do terror metafísico diante da inanidade. O homem que não despertou se caracteriza por essa constante necessidade de querer preencher o absurdo ou fugir dele, assim como do sofrimento, do silêncio, do tédio, da morte…
Mas considerar o nascimento o pior de todos os infortúnios é também uma espécie de preparação para a vida, um purgativo que torna suportável o peso da existência, uma forma lúcida de viver a insubstancialidade do universo; por outro lado, aqueles que sobrevalorizam a vida são justamente os que se suicidam, temerosos diante de uma existência gratuita e fortuita, capazes de qualquer coisa para consumar sua suposta causa. Portanto, considerar o nascimento como a pior coisa que já aconteceu e que pode acontecer, é uma visão da realidade que faz perder o medo de viver: “Repugna-nos, claro está, chamar flagelo ao nascimento; não inculcaram em nós que era ele o supremo bem, que o pior se situava no fim e não no início da nossa carreira? O mal, o verdadeiro mal, está porém atrás, e não à nossa frente. […] E, antes da velhice e da morte, ele coloca o facto de nascermos, causa de todas as enfermidades e de todos os desastres.”[11]
O homem não desperto é um fanático que tem pavor tanto da vida quanto da morte. Nosso amor excessivo pela vida vem do nosso medo excessivo de morrer, bem como daquele medo de morrer provoca, paradoxalmente, o medo de viver. Somos muito otimistas acerca da existência e do curso do universo. Inventamos milhões de histórias redentoras que nos permitam salvar-nos do terror metafísico causado pelo nada, mas o que realmente conseguimos foi provocar o medo da vida. A história nos ensina muito bem a vontade de destruição que o homem pode ter, uma sede insaciável de domínio. Os vírus, as bombas atômicas, as armas nucleares e biológicas, a constante degradação da biosfera, eis alguns exemplos óbvios de quem supostamente ‘adora a vida’, dessa infeliz e neurótica espécie que nem mesmo gosta do que faz.
O homem não desperto é um fanático que tem pavor tanto da vida quanto da morte. Nosso amor excessivo pela vida provém de nosso excessivo medo de morrer, assim como do nosso medo da morte provoca, paradoxalmente, o medo de viver. Somos demasiado otimistas acerca da existência e o curso do universo. Inventamos milhões de histórias redentoras que nos permitem salvar-nos do terror metafísico causado pelo nada, mas o que realmente conseguimos é provocar o medo da vida. A história nos ensina muito bem sobre a vontade de destruição que o homem pode ter, sua sede insaciável de domínio. Os vírus, as bombas atômicas, as armas nucleares e biológicas, a constante degradação da biosfera, eis alguns exemplos óbvios de quem supostamente “adora a vida”, dessa infeliz e neurótica espécie que nem mesmo gosta do que faz.
Por isso Cioran se encontra sem energia, sem coragem e sem vontade de mudar a ordem das coisas. Ele bem sabe que aqueles que supostamente amam a vida é que querem modificar o mundo por meio da ação, motor da história. Eles são habitados por fanáticos que seriam capazes de participar de qualquer projeto, do genocídio ao suicídio; por outro lado, quem não aprecia fanaticamente a vida, opta por não aderir febrilmente a nada, não quer participar de nenhum empreendimento, porque sabe muito bem que tudo carece de justificação.
Agora, se essa resposta não é nenhum prêmio de consolação suficiente para o perdedor que nasceu, há ainda outra opção: o suicídio. Mas o suicídio como outra forma de viver a insubstancialidade, um esvaziar-se, isto é, o suicídio como ideia, um extintor que diz: “quebrar em caso de emergência”, aniquilar-se caso não seja mais possível suportar o espanto de existir, sabendo que, na pior das hipóteses, pode-se acabar com a ilusão a qualquer momento: “Só vivo porque posso morrer quando quiser: sem a ideia do suicídio, já teria me matado há muito tempo.”[12]
VI
Diante do panorama atual, a filosofia de Cioran é relevante na medida em que conduz a um “despertar” muito peculiar. O filósofo considera que ter escrito livros foi uma libertação, um esvaziamento de si, uma espécie de purgativo que o impediu de se aniquilar. Da mesma forma, ele considera que a leitura de seus livros pode levar a uma espécie de despertar. Ele escreve toda vez que quer dar-se um tiro, e acredito que seu trabalho deva ser lido em estados semelhantes, em situações turbulentas como as que estamos passando. O ensinamento de Cioran é para suportar com conformismo desesperado, é um modo de vida que leva, como um Buda sem nirvana, a contemplar, com terror e espanto, a putrefação de todas as esperanças que sustentam a humanidade.
Como mencionado anteriormente, a história, atributo do não-liberto, ensina muito bem que o homem é capaz de qualquer coisa para consumar seus interesses. No entanto, a leitura de Cioran leva à compreensão do desejo como perpétua insatisfação, uma tendência fatal de pular de desejo em desejo sem nunca encontrar a paz. Portanto, a relação entre ação e desejo é sempre conflituosa. Diante disso, o filósofo aspira à ação sem apegos, ao desapego do fruto do ato, aprendendo a comunicar sem buscar persuadir, agir sem dominar. Trata-se de um desapaixonamento, o que seria por si só lucro suficiente para o nosso carcomido planeta.
O que espanta no confinamento é encontrar-se com esse nada desconcertante é si mesmo. O homem foge da insignificância pelo desejo, precipitando-se na ação, na história, nessa suposta normalidade: o devir, horda de lunáticos. Doravante não importa qual tenha sido a origem da pandemia, mas o que pode oferecer-nos este desastre. Agora temos tempo para a inação, mas isso nos aterroriza completamente. Opostamente, pela perspectiva da lucidez cioraniana, a normalidade é um pesadelo, e a ação com apego, detestável. Muito melhor é a preguiça, viver no estado vegetal e aspirar a uma sabedoria mineral, pois toda ação é um vício metafísico pelo qual o homem vagueia, sempre condenado a fazer algo, aspirando a preencher o vazio às custas do que quer que seja.
Em meio a todo esse atoleiro, aprender a gostar da inatividade pode se tornar terapêutico. É verdade que estamos em um momento de crise, mas esta circunstância, por sua vez, nos leva a reinventar-nos, convida-nos a um certo despertar, a aproveitar o tédio na medida em que é um estado de grande lucidez. Aqui, como no Eclesiastes, é possível compreender a vaidade de toda ação, pois o esforço é o inimigo mortal dessa meditação visceral. Enquanto o ser humano estiver ocupado, não terá a possibilidade de enxergar-se, não haverá como vislumbrar o nada da carne, contemplar a verdadeira face do ser: quimera absoluta, insubstancialidade cósmica, insignificância universal. De modo que, desse declínio, resta apenas uma queda vertiginosa em direção à lucidez, entendida como afirmação negação do inevitável e do inconciliável pelo qual nossa existência está passando.
Vislumbrar a inanidade de todas as coisas é entender que a vida não tem sentido, que tudo é absurdo, mas isso não é decadente, pelo contrário, é um acontecimento maravilhoso, pois trata-se de encontrar carta cor e certo sabor em tal insignificância, aprender a dar um sentido próprio, não temer a contradição, ficar à vontade no infortúnio. Por isso Cioran diz: “Todo o segredo da vida se resume a isto: não faz sentido; mas cada um de nós encontro um para ela”.[13]
Para Cioran, a dor não é um problema, mas sim o que dá sabor à vida; tampouco lhe interessa a felicidade, pois sabe que ela nada mais é que uma utopia que, mais cedo ou mais tarde, se transformará num terrível pesadelo. Ele se interessa simplesmente em suportar o peso da vida, e o faz por meio de aforismos irônicos e intencionalmente amargos. É saber perder com estilo, abandonar a luta, vislumbrar a falta de uma realidade substancial, chegar a um pensamento que sabe brincar porque conhece os limites, uma existência que sabe jogar, e saber jogar significa desculpar o fanático em nós, porque sem talentos não há amarras, sem nada se é mais livre. Por isso, o romeno se lança irreversivelmente nas profundezas do vazio sem esperar ganhar nada, porque sabe bem que para ser livre é preciso ter perdido tudo: “Ganhar o mundo, perder a alma? –Consegui algo melhor: perdi os dois.”[14]
Você aprende a se sentir confortável em meio ao desastre, mantendo esse humor macabro diante do irremediável. Todos os tormentos devem ser suportados com ironia enigmática, é preciso resignar-se e, no entanto, saber rir do pior, dar risos sinistros diante dos atrozes, fazer do tormento um destino heróico, não pela conquista, mas pela resistência e derrota, aprenda a sofrer com dignidade as nossas feridas: “O que faz o sábio? Resigna-se a ver, a comer, etc…, aceita a despeito de si mesmo essa ‘chaga de nove aberturas’ que é o corpo segundo a Bhagavad-Gita. A sabedoria? Sofrer dignamente a humilhação que nos infligem nossos buracos.”[15]
Para Cioran, ser contra a vida ou a favor dela não equivale a sofrer nem mais nem menos, mas sim sofrer dignamente. Pois o sofrimento foi, é e será inevitável, e sempre acontecerá, seja a existência louvada ou amaldiçoada. Mas, mesmo que nada possa erradicar o tormento, é necessário um temperamento capaz de suportá-lo, não evitá-lo. É verdade que o melhor teria sido nada, seria não ter nascido, e não há qualquer fundamento ou justificativa diante desse fato terrível, mas, já tendo se cumprido o inevitável, é preciso resignar-se desesperadamente e saber-se parte de um universo incoerente, no qual, portanto, nossa existência não tem sentido, optando pela decepção, pelo desapego, pelo riso e pelo tédio, porque nunca se pode melhorar o que já está feito.
Ora, esse conformismo desesperado de que fala Cioran não equivale à mediocridade, sendo antes a aceitação revoltada do inevitável. Entender que o nosso desconforto é tão insuperável e irremediável quanto o amor, a doença, o clima, o nascimento e a morte. “Neste mundo nada está em seu lugar, começando pelo próprio mundo. Não devemos surpreender-nos então com o espetáculo da injustiça humana. E igualmente vão repudiar ou aceitar a ordem social: somos obrigados a sofrer suas transformações para melhor ou para pior com um conformismo desesperado, como sofremos o nascimento, o amor, o clima e a morte.”[16]
Cioran não se apega neuroticamente à possível solução do mundo, porque sabe que qualquer empreitada, realizada ou em vias de realizar-se, estará sempre fadada ao mais contundente fracasso; trata-se de aprender, pois, a conviver com esse nada surpreendente que somos nós, uma vez que o desengano provocado pela experiência do vazio faz com que não sejamos mais arrastados pelo turbilhão de uma ideia. Esta é a única forma de agir sem apegar-se, com vistas a tornar-se nada, o desapego de toda ideia e ilusão, aprender a viver sem metas nem projetos, sabendo que tudo, o eu incluído, carece de fundamento: “E com que quantidade de ilusões devo ter nascido para poder perder uma a cada dia!”[17]
VII
Cioran encontra nesse conformismo desesperado uma fortaleza ética que lhe confere a habilidade de suportar tanto o agradável quanto o terrível da existência. Há em sua obra uma espécie de invulnerabilidade que torna sua filosofia um modo de vida dificílimo de se assumir. Cumpre advertir, de resto, que esta é uma tarefa impossível que, não obstante, deve ser tentada. Aqui não há uma fórmula eficaz para semelhante empreendimento, mas antes uma necessidade forçada que impele à impossibilidade de cumprir o objetivo de maneira definitiva. No final das contas, seguimos sendo humanos, e é improvável despir-se completamente deste pesar. Assim, as consequências destes questionamentos conduzem a comportamentos dificilmente realizáveis, pois nos convidam a renunciar a uma filosofia puramente especulativa que é, por isso mesmo, incompatível com a vida.
O temperamento de Cioran tem algo macabro e de cômico ao mesmo tempo. Só é vislumbrada a insubstancialidade cósmica, mas é impossível alcançar a libertação. Alcançar semelhante feito implica cair do tempo, tarefa impossível para homens tão alienados pelo seu ego: “Penso em C., para quem beber café era a única razão de existir. Um dia, quando eu lhe falava, com a voz agitada, sobre os méritos do budismo, ele me respondeu: ‘O Nirvana, sim, mas com café.’ Todos temos alguma mania que nos impede de aceitar irrestritamente a felicidade suprema.”[18]
Nossa condição mendicante nos impele sempre à ação, ao desejo e ao sofrimento. Fugir dessa circularidade implica algo difícil como romper os laços que nos unem aos outros. Nossa situação nos impede de alcançar a quietude, não podemos renunciar à ilusão de considerar essencial o que é apenas quimera, é impossível arrancar-nos a necessidade da idolatria e, por isso, Cioran busca o impossível, sabe que não vai conseguir, e só resta, então, um humor negro a lembrar que nada vale a pena. Pois o absurdo não é cura ou remédio, servindo apenas para expressar a contradição ou o conflito permanente que habita entre fatos e desejos, pensamentos e ações: “Infelizmente, não podemos exterminar os nossos desejos; só podemos debilitá-los, comprometê-los. Estamos encurralados em nós mesmos, no veneno do ‘eu’. Só […] imaginamos […] escapar… Até mesmo o Buda após a Iluminação não era senão Sidarta Gautama mais o conhecimento.”[19]
Porém, o filósofo busca o irrealizável, e esta é a única tarefa digna de admiração em alguém com um humor tão peculiar: “… sem dúvida, ele está convencido da falsidade, do vazio, do absurdo; mas também que não há nada fora dele, que não há mudança possível, que todas as alternativas são a mesma alternativa … O desiludido não é um descrente, tampouco um incrédulo, mas alguém que que no nada, logo no impossível.”[20]
Esse humor o leva a declarar-se um “Buda de pacotilha”, alguém que grita blasfêmias desesperadas contra a terrível e avassaladora ordem das coisas, com o humor de Jó, mas sem lepra, como um místico, mas maldito, um santo, mas sem fé: “‘Não fica bem’, me dizia você, ‘praguejar o tempo todo contra a ordem das coisas.’ ‘É culpa minha se sou apenas um novo rico da neurose, um Jó em busca de uma lepra, um Buda de pacotilha, um Cita indolente e extraviado?’”[21]
Este insone tem consciência da circularidade e do vazio de sua fala. O que faz é: deixar de fazer, por meio de uma lucidez escrita que, além de ser uma forma de desilusão e desapego, é também, conscientemente, uma quimera ridícula. Ele nunca pretende ganhar ou ter a verdade em termos absolutos, ela não é profetizada, nem remédios são dados, mas sim joga com um vislumbre do absurdo, como quem, graciosamente e infelizmente, perdeu todas as suas forças e não tem escolha senão existir resistindo à rebelião no meio de um mundo alienado.
Esse temperamento, tão característico de Cioran, exclui todos os remédios. Nascer e morrer significa perder. A partir daqui não há possibilidade de redenção, mas também de equivocar-se. O pessimista tem sempre razão, ao passo que o otimista, mais cedo ou mais tarde, se revelará um iludido. O romeno sabe que seu desconforto é incurável, e se resigna ao veneno corrosivo do eu: “Há algo de tão indefinível nesta palavra: futilidade – como se o Buda ma tivesse sussurrado num cabaré.”[22] A libertação não é possível; na realidade ninguém jamais conseguiu renunciar ao “eu”, mas tão-somente debilitá-lo, suspendê-lo por alguns momentos privilegiados, e, no caso de Cioran, isto se dará mediante uma escrita que está vinculada a um modo de vida: “Não escrevo para me livrar do que poderia chamar de minhas obsessões; eu escrevo para atenuá-las.”[23]
No entanto, por mais que o desapego seja uma tarefa improvável e tão vazia como tudo o mais, valeria a pena tentá-lo como uma terapia contra aquele maldito eu que impõe a supremacia sobre o mundo. A lucidez é como “uma pausa no sangue”, um “gotejar da alma”. Trata-se de tomar consciência de que jamais poderemos nos salvar, pois jamais desistiremos de nossos desejos, mas o que podemos pelo menos conseguir é, talvez, arrebatar um pouco de seu poder, apertá-los e espancá-los de vez em quando. Porém, apesar de nossa impossibilidade de cura, para esse insone ainda é possível amar a insignificância. Apesar de existir uma calamidade e tudo ser infundado, ainda é possível sorrir da vida. É por isso que Cioran não é inteiramente budista, otimista, pessimista, mas sim um piadista sombrio. “A serenidade do príncipe pensador não entenderia nunca que seja possível ver-se como ele e ainda assim amar a insignificância. Teria o Buda sido também um professor? Ele sistematizou demais sua renúncia … Com certeza condenaria o extravio de quem arrasta seu nada entre os mortais, e não entenderia como no vazio do mundo ainda sorriamos para a vida.”[24]
O filósofo propõe o impossível, não pode abandonar a si mesmo, e julga que ninguém pode fazê-lo. Eis o último obstáculo à libertação, de forma que já não se propõem curas, limitando-se a expressar um mal-estar incurável que consiste no simples fato de ser humano. Assim, hoje um vírus nos assola e procuramos desesperadamente por uma cursa, mas nossa verdadeira doença consiste em ser o que somos. Ou nas palavras de Cioran: “Nada revela melhor nossa decadência do que o espetáculo de uma farmácia: todos os remédios desejáveis para todos os nossos males, e nenhum para o nosso mal essencial, do qual nenhuma invenção humana poderá nos curar”.[25]
De modo que recorrer ao absurdo e tentar o impossível, estando certo do fracasso, é um meio eficaz contra a ansiedade e contra o terror de ser homem. Trata-se de levar a cabo uma busca para deixar de buscar, pois cair no tempo é viver condenado à inquietude, onde nenhum desejo poderia ser satisfeito. Por isso, a revelação da insubstancialidade vem cumprir uma função de desapego que, embora impossível de realizar, pelo menos tornará possível debilitar ou apaziguar a terrível força dilacerante dessa servidão, pela busca desta impossibilidade: “Limitar-se ao vazio não é também uma forma de busca? Sem dúvida, mas é buscar a ausência de busca, aspirar a uma meta que elimina todas as outras. Vivemos inquietos porque nenhuma meta nos satisfaz […]. O vazio […] não põe um termo a todos os nossos desejos? E o que são os desejos, em seu conjunto, ao lado de um único instante em que não perseguimos nem experimentamos nenhum! A felicidade não está no desejo, mas na ausência de desejo, mais precisamente no entusiasmo por essa ausência, em que gostaríamos de revolver-nos, abismar-nos, desaparecer, exclamar…”[26]
A revelação do absurdo tem a virtude terapêutica de debilitar nossa enfermidade metafísica, a ignorância primordial que nos leva a considerar como essencial o que na verdade é infundado: “Quando abandonamos o reino do ilusório e nos obstinamos em substitui-lo pelo indestrutível, resvalamos na mentira. Se mentimos menos com o vazio, é porque não o buscamos por si mesmo, pela verdade que se supõe conter, mas por suas virtudes terapêuticas; conseguimos com ele uma cura, imaginamos assim corrigir o mais antigo desvio do espírito, o de supor que algo existe.”[27] Essa experiência é uma revelação mediante a qual vida e morte reduzem-se a nada. Portanto, embora se trate também de uma quimera, vale a pena tentá-la, pois é precisamente isto o que torna suportável o peso da vida: “Se há esperança de salvação fora da fé, deve ser procurada nessa faculdade de enriquecer-se em contato com a irrealidade. Inclusive se a experiência do vazio não passasse de um engano, mereceria ser tentada. O que se propõe, o que se tenta, é reduzir a nada a vida e a morte, e isto com o único propósito de torná-las, ambas, suportáveis para nós.”[28]
Nestas sugestões impossíveis, a mensagem é aprender a perder com dignidade. “Fracassar na vida é acessar a poesia – sem o suporte do talento.”[29] Então, ou nos abrimos para o vazio, ou continuamos na idolatria. Resignar-se ao vazio é também continuar desenvolvendo-se nas quimeras do ser, mas sem fanatismos, ou seja, sabendo que o mundo é um simulacro e que não há substituição possível; após saber isto, já não é tão fácil ser seduzido pela febre que gera o turbilhão histórico.
Conclusão
O que o filósofo tem a dizer sobre a desesperança diante da pandemia, e por que mergulhar em seu pensamento pode proporcionar um certo sentimento gratificante? Como foi dito, sofrer com dignidade não significa deixar de pensar ou de agir, mas pensar e agir com lucidez. Pensamos contra a miséria do pensamento e agimos sem fanatismo. A partir desse despertar peculiar, a vida é penar e gozar, um jogo sem nenhum propósito. Rir diante do abismo, viver sem ambições, sem qualquer objetivo final, dissociado do fruto do ato, pois a lucidez sabe que “a esperança é uma virtude de escravos”, que o pessimista continua a levar a vida muito a sério, porque no final ele sobrevive aos seus infortúnios, que só o otimismo constrói doutrinas e que “só os otimistas se suicidam”. De tal forma que é confortante, em tempos de pandemia e confinamento, ler o filósofo do desespero, porque hoje mais do que nunca é necessário que o ser humano aprenda a rodear-se de uma vez por todas do vazio que o condiciona e o espanta.
Porém, é difícil alcançar a decepção e o desapego, pois nossa enfermidade metafísica nos impede a todo momento, nosso desconforto incurável nos leva a refugiar-nos na busca de um sentido, e vivemos na necessidade de encontrar alicerces onde não há nenhum, e nunca haverá nada a não ser um absurdo sem fundo. O terror condena o homem a fugir em busca de quimeras reconfortantes, para as ilusões do ato, para os simulacros da história e do desejo, para a exaltação de si e uma infinidade de ideais que supostamente levariam ao aperfeiçoamento da espécie humana.
Talvez a pandemia tenha sido a melhor coisa que poderia ter acontecido conosco. Já que nosso anseio por normalidade tinha sido um suspiro constante. Talvez essa contingência seja nossa grande oportunidade de aprender a mergulhar no absurdo, nossa chance de aprender a “ficar confortável” na inanidade, de desfrutar o prazer de não fazer nada, a quietude do vazio e do confinamento. Este estranho vírus colocou-nos à prova e este acontecimento leva-nos a repensar o sentido da vida e o lugar que o ser humano ocupa no cosmos. Bem, pela lucidez de Cioran, o homem nada mais é do que a pior praga de todas, a doença mais terrível, a vida humana não tem propósito, não tem sentido, mas isso é extraordinário! Pois agora cada um de nós deve encontrar um caminho com a consciência de sua absurdidade.
Incompletos e contraditórios, não queríamos ir trabalhar, mas agora que estamos em casa frente a frente com o nosso nada, também corremos aterrorizados, esperando ansiosamente que tudo volte a ser como era antes. Para a lucidez, a esperança é um vício de quem não despertou. E a normalidade não é mais que um pesadelo em marcha. Portanto, este vírus nos arrastou mais uma vez para as profundezas primitivas de nós mesmos: um beco sem saída, liberdade no meio do deserto, revelação da inanidade do ser. Talvez para Cioran uma vantagem da situação atual seja escapar dessa normalidade, pois ela está determinada pelo tempo e pelo terror do nada. Negar o sofrimento é permanecer ingênuo. Negar o tormento é negar o melhor de nós mesmos: o prazer. Portanto, sofrer com dignidade significa saber viver, e saber viver significa aprender a esparramar-se nas fontes da insubstancialidade.
Antes do confinamento, o homem tinha a obrigação de ocupar o tempo, de matar o tédio a qualquer custo, e tudo isso com medo de se encontrar. Todos os dias, coisas novas têm de ser inventadas para preencher o vazio. Mas esse vírus veio para nos lançar em direção a nós mesmos: ao sem sentido. E agora não podemos suportar o confinamento porque estamos bastante acostumados a escapar de nossa própria insignificância, de modo que queremos voltar, da lucidez de Cioran, à normalidade do horror. Diante disso, talvez ele nos dissesse que o verdadeiro tormento era a vida que já levávamos, mas não nos tínhamos apercebido disto.
Tudo já era demasiado, tudo estava saturado, as cidades estavam em colapso, nós também estávamos contaminados de corpo e alma, existencialmente exaustos, física e mentalmente. Agora temos mais tempo do que nunca, mas não queremos ficar presos, porque nos repugna ver com clareza. Nessa ânsia de normalidade, o homem tinha esquecido que estava vivo. Sempre houve muita correria sabe-se lá para onde, o homem foi se esquecendo de si mesmo, mas agora continua se esquecendo e isso fica evidente na ansiedade de querer voltar àquela vida cotidiana. Acreditamos que a prisão é a nossa casa, porém, a prisão somos nós mesmos, o nosso desejo, que nos leva à agir incessantemente, a cair nas garras da história.
Temos pressa de preencher todos os vazios à qualquer preço, o horror se apoderou de nós, assim como o desejo neurótico de retornar a essa ingênua cotidianidade; mas, para a lucidez, o sofrimento é o que dá sabor à existência. É por isso que Cioran nos diria: encontre seu lugar no tormento e desfrute desse tormento, desfrute de você, mergulhe no vazio, desfrute da inatividade, aquela sabedoria mineral primordial. Que a angústia tenha um destino heroico e criativo, pois aprender a estar à vontade no desastre significa saborear a vida com lucidez.
A lucidez encontra certo gosto ou até um sabor no desastre, na medida em que o atroz acaba entretendo, de tal forma que o panorama atual também pode ser considerado um convite a esse despertar repentino. É preciso tirar proveito do isolamento, ler livros pendentes e reler os favoritos, plantar flores, abraçar seu animal de estimação, escutar música e desaparecer nela, tocar um instrumento e fazer uma música, aprender um novo idioma, cantar nossa desgraça, pintar o inominável, escreva nossa agonia com desespero, assista filmes de arte, mas, principalmente, ter senso de humor diante do irremediável.
Em meio a tanta febre, Cioran torna-se um purgativo, pois basta perceber o presente em que estamos imersos e tentar intuir honestamente o catastrófico resultado que nos espera, para subitamente sentir-se identificado com seu pensamento desiludido. Sem dúvida, a experiência de ler o autor romeno é uma experiência que transtorna, que provoca, que transforma: “[…] creio que um livro deve realmente ser uma ferida, deve perturbar a vida do leitor de uma forma ou de outra. […] Um livro que deixa o leitor do mesmo jeito que antes de lê-lo, é um livro fracassado. ”[30]
Esse “açoite” que provoca a sua leitura é um exercício que debilita nossos preconceitos, comunicando-nos a maneira como este filósofo teve de suportar a existência num mundo tão complexo como o nosso. A decepção constante, o desapego de todo desejo e ação, considerar o nascimento como o pior, recorrer à escrita aforística e ter sempre a ideia do suicídio à mão, eis alguns dos caminhos que permitem suportar o peso da existência. Apesar dessas ideias, sua leitura, em vez de provocar amargura, desperta um sentimento gratificante e libertador, pois saber que nada do que se diz e se faz vale a pena é algo que gera um grande alívio, mostrando-nos uma forma peculiar de conceber a realidade com de maneira desinteressada.
É necessária a desilusão diante destes tempos, a decepção diante de uma sociedade alienada, entendendo que não há como remediar o irremediável, aprendendo a ser perdedores dignos. É este o grande legado de Cioran, que, mais do que mediocridade, conduz a um despertar muito peculiar. Nada pode escapar às garras do tempo. Mas saber disso pode ser libertador, pois a partir de então o indivíduo lúcido deixa de ser o centro do mundo. Para este filósofo, o pior desastre já passou: nascer. Logo, vive. Ele experimentou a insubstancialidade e escreve, portanto, sabendo que, na pior das hipóteses, pode pôr um fim aos seus dias. Sua lucidez opta pela inação em uma sociedade de viciados no devir. Aprende a viver sem ilusões em um mundo saturado de ideologias efêmeras. Abandona toda discussão rabugenta e absolutista por um pensamento lúdico, capaz de reconhecer a insignificância de todo discurso, inclusive o seu. Considera o nascimento a pior calamidade, para assim tornar a existência suportável diante de um cenário que superestima a vida, sofrendo portanto de um medo excessivo de morrer, que paradoxalmente gera um medo excessivo de viver.
A lucidez cioraniana é impossível. Mas quem quer fazer o contrário? O recurso a esta improbabilidade deve, ao menos, diminuir a febre, alterar as redes da realidade, conduzindo a um apaziguamento faz desapegar, levando a uma resignação perante a qual não há solução. Assim, não se pretende encontrar uma nova forma de preencher ou fugir do absurdo, pois é sabido que qualquer tentativa de remediar o irremediável conduzirá ao desastre. Trata-se de aprender a conviver com a inanidade, torná-la um lugar habitável e suportar assim, de modo digno, a existência.
O que nos conecta com tudo é o sofrimento, mas através da escrita fragmentária e visceral, o autor romeno, além de convencer, consegue suportar a vida, e é por isso que, em seus textos, não se compromete totalmente com as ideias, tendo a liberdade intelectual e lúdica de mostrar o contrário na página seguinte. O filósofo retorna ao mundo das quimeras, mas com uma nova visão. A única coisa que lhe resta é o engano, o vazio sem nirvana, a santidade sem a fé, a enganação cósmica, mas com muito humor: “Ser cego ou perecer: não há outra escolha.”[31]
Cioran é como um manual de antissuperação pessoal, ao contrário dos milhões de best-sellers de autoajuda, uma obra contra o eu dominante dominador do mundo, instruções que devem ser destruídas após ter chegado ao topo com sua ajuda: se ter nascido é o pior, então, aconteça o que acontecer, tudo será suportável, a pessoa está preparada para tudo, porque a pior de todas as calamidades já foi superada; se as ilusões são abandonadas, as decepções também são abandonadas; Se o homem é entendido como um ser incurável, então ele passa a viver realmente, porque sabe que nada e ninguém virá salvá-lo, e isso nos liberta de Deus, dos outros e de nós mesmos, pois sabemos que nada poderá mudar o que já somos, e deixamos para trás a busca ofegante por remédios, tendo percebido, após a experiência privilegiada e atroz do absurdo, que não há cura e nunca haverá. Assim, sua leitura impele a um não agir que age desinteressadamente e um falar que não busca persuadir nem fanatizar-se definitivamente por nada.
Seu trabalho nos joga no vazio fontanal, mas será que queremos isso? Nosso horror perene nos leva a rejeitar o real. Fugimos por todos os meios possíveis. Procuramos verdades suportáveis para nunca nos encontrarmos com a verdade irreparável, com o nada desconcertante que somos. Buscamos dar sentido a todas as coisas e milhões de quimeras redentoras são inventadas para estar a salvo do real. Mas a busca de um sentido nos levou inevitavelmente a reduzir o infinito ao finito, a transformar o cru ou indigesto em algo cozido ou digerível. A obra de Cioran nos impele a um silêncio capaz de expressar-se, pois o vazio não termina em um silêncio inquisidor, mas em um silêncio capaz de uivar, em um absurdo que pode expandir a imaginação humana para o outro lado da razão, um lado que abandona o pensamento dominante do mundo e nos lança na criação lúcida.
Agora, isso não significa que devemos estar necessariamente em pandemia. No fundo, Cioran não teria interesse em voltar nem em não voltar à vida cotidiana, mas, já que estamos neste atoleiro, tomemos o confinamento como um exercício espiritual que nos lança à lucidez de suportar o espanto e, não obstante, ter a coragem e o humor de extrair as últimas consequências dos acontecimentos em torno do sentido da existência e do lugar que ocupamos no cosmos. Cioran não preferiria a situação nova, nem normalidade, sendo na verdade um comediante nostálgico que, com uma ironia raivosa, responderia a este cenário: “Deveríamos ter-nos contentado, piolhentos e serenos, à companhia das bestas, definhar ao lado delas por mais milênios, respirar o odor dos estábulos e não o dos laboratórios, morrer de nossas doenças e não de nossos remédios, rodopiar em torno do nosso vazio e afundar nele docemente.”[32]
Em semelhante lucidez, só resta resignar-se desesperadamente, voltar à normalidade, a este pesadelo em marcha, mas agora cientes de sua insignificância; ou permanecer cara a cara com este nada desconcertante que nós somos, aprendendo a encontrar um gozo doentio nesse tormento. Nossas vidas não precisam ser decifradas, não vale a pena, nem se remedia, porque não temos cura, a existência não pode ser demonstrada nem acreditada, porque nada há que a justifique. Nesta vida, trata-se de aprender a fluir no sem-sentido que ela nos tira e nos presenteia…
NOTAS:
[1] CIORAN, E. M., Cahiers : 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997, p. 212-1.
[2] « Les hommes ont besoin de points d’appui, ils veulent la certitude coûte que coûte, même aux dépens de la vérité. » CIORAN, E. M., La chute dans le temps, Œuvres. Paris : Gallimard (coll. Quarto), 1995, p. 1110.
[3] CIORAN, E. M., A tentação de existir. Trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’Água, 1988, p. 86.
[4] SAVATER, Fernando, “El último dândi. Un pensador ante los cambios de Europa”, El País, 25 de octubre de 1990, p. 40.
[5] CIORAN, E. M., “O escroque de abismos”, Silogismos de la amargura. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 29.
[6] CIORAN, E. M., “Soy un hombre del fragmento”, Revista Unión, Cuba, abril de 1999, p. 39.
[7] CIORAN, E. M., Silogismos de la amargura, p. 26.
[8] CIORAN, E. M., Aveux et anathèmes, Œuvres, p. 1696.
[9] CIORAN, E. M., Conversaciones. Trad. de Carlos Manzano. Barcelona: Tusquets, 1996, p. 69.
[10] CIORAN, E. M., “Portrait du civilisé”, La chute dans le temps; “Retrato do homem civilizado”. Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. In: “Duas diatribes”, Revista (n.t.) Nota do Tradutor. Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. ano IX, 2º vol., nº 17, dezembro de 2018. Disponível em: https://www.notadotradutor.com/revista17.html
[11] CIORAN, E. M., Do inconveniente de ter nascido. Trad. de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 6.
[12] CIORAN, E. M., Silogismos de la amargura, p. 56.
[13] CIORAN, E. M., El ocaso del pensamiento. Trad. de Joaquín Garrigós. Barcelona: Tusquets, 2000, p. 11.
[14] CIORAN, E. M., Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1217.
[15] CIORAN, E. M., Silogismos da amargura, p. 21-22.
[16] CIORAN, E. M., “Os anjos reacionários”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 59.
[17] CIORAN, E. M., “Fisionomia de um fracasso”, Breviário de decomposição, p. 220.
[18] CIORAN, E. M., Aveux et anathèmes, Œuvres, p. 1669.
[19] CIORAN, E. M., Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1226.
[20] ARRANZ, Manuel, Prólogo. In: Cuadernos de Talamanca. Valencia: Pre-Textos, 2002, p. 4.
[21] CIORAN, E. M., “O circo da solidão”, Silogismos da amargura, p. 69-70..
[22] CIORAN, Emil, El ocaso del pensamiento, V, 124.
[23] CIORAN, E. M., “Viver com la idea del suicidio es estimulante: entrevista a E. M. Cioran por J. Casado”, El País, Madrid, 28 de novembro de 1987, p. 36.
[24] CIORAN, Emil, El ocaso del pensamiento, VII, p. 156.
[25] CIORAN, E. M., Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1225.
[26] CIORAN, E. M., Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1222.
[27] CIORAN, E. M., Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1223.
[28] CIORAN, E. M., Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1229.
[29] CIORAN, E. M., Silogismos da amargura, p. 14.
[30] CIORAN, E. M., Conversaciones, p. 19-20.
[31] CIORAN, E. M., A tentação de existir, p. 181.
[32] CIORAN, E. M., “Portrait du civilisé”, La chute dans le temps ; “Retrato do homem civilizado”. Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. In: “Duas diatribes”, Revista (n.t.) Nota do Tradutor. Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. ano IX, 2º vol., nº 17, dezembro de 2018. Disponível em: https://www.notadotradutor.com/revista17.html