Em seu curso de 1980 sobre Espinosa, Deleuze observa o seguinte:
Literalmente, eu diria que se fazem de idiotas. Fazer-se de idiota. Fazer-se de idiota será sempre uma função da filosofia.[1]
Desde o início, a filosofia está intimamente ligada ao idiotismo. Todo filósofo que produz um novo idioma, uma nova linguagem, um novo pensamento, terá sido necessariamente um idiota. Só o idiota tem acesso ao completamente Outro. O idiotismo torna acessível ao pensamento um campo de imanência de acontecimentos e singularidades que escapa a qualquer subjetivação e psicologização. A filosofia é uma história de idiotismos. Sócrates, que só sabe que nada sabe, é um idiota. Descartes também é um idiota, que põe tudo em dúvida. Cogito ergo sum é um idiotismo. Uma contração interna do pensamento torna possível outro começo. Descartes pensa na medida em que pensa o pensamento. O pensamento recupera o estado virginal no qual ele se refere a si mesmo. Ao idiota cartesiano, Deleuze opõe outro idiota:
O antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo […]. O novo idiota não quer, de maneira alguma, evidências, […] ele quer o absurdo — não é a mesma imagem do pensamento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamento, isto é, criar.[2]
Hoje, os tipos do excêntrico, do louco e do idiota parecem ter desaparecido da sociedade. A conexão digital e a comunicação totais aumentam significativamente a coerção por conformidade. A violência do consenso reprime o idiotismo. Botho Strauss está bem ciente da diferença entre o conformismo de hoje e a convenção burguesa:
Para ele, é como se todos os outros falassem de maneira finamente coordenada. Ajustados até o grau de concordância mais palatável. […] Uma convenção muito mais intransigente do que qualquer outra anterior.[3]
O idiota é um idiossincrata. Idiossincrasia significa literalmente uma mistura peculiar dos sucos corporais e a hipersensibilidade resultante daí. Onde é necessário acelerar a comunicação, a idiossincrasia representa um obstáculo devido à sua defesa imunológica contra o Outro. Ela bloqueia o intercâmbio comunicativo ilimitado com o Outro. Portanto; a imunossupressão é necessária para acelerar a comunicação. Ela é maciçamente suprimida para acelerar a circulação da informação e do capital. A comunicação atinge sua velocidade máxima onde o Mesmo reage ao Mesmo. A resistência e a rebeldia da alteridade ou do estranhamento perturbam e retardam a comunicação plana do Mesmo. Precisamente no inferno do Mesmo a comunicação atinge sua velocidade máxima.
Diante da coerção da comunicação e da conformidade, o idiotismo representa uma prática da liberdade. O idiota, por sua própria natureza, é o desligado, o desconectado, o desinformado. Ele habita o fora impensável que escapa à qualquer comunicação e conexão:
O idiota se revolve como uma rosa arrancada no redemoinho de seres humanos determinados — seres humanos em consenso. Incorporadas, pertencentes a uma concordância milagrosa.[4]
O idiota é o moderno herético. Originalmente, heresia significa escolha. Assim, o herético é alguém que dispõe de livre escolha. Ele tem a coragem de se desviar da ortodoxia. Corajosamente, livra-se da obrigação de conformidade. O idiota como herege é uma figura de resistência à violência do consenso. Ele resgata o encanto do forasteiro. Em vista da crescente obrigação de conformidade, aguçar a consciência herética seria hoje mais urgente do que nunca.
O idiotismo opõe-se ao poder neoliberal de dominação, à comunicação e à vigilância totais. O idiota não «comunica». Ou melhor, se comunica através do não comunicável. Assim, ele se recolhe em silêncio. O idiotismo erige espaços abertos de silêncio, quietude e solidão nos quais é possível dizer algo que realmente merece ser dito. Já em 1995, Deleuze anunciava essa política do silêncio. Ela é dirigida contra a psicopolítica neoliberal que obriga à comunicação e à informação:
A dificuldade hoje não é mais que não podemos expressar livremente nossas opiniões, mas criar livres espaços de solidão e silêncio em que encontremos algo a dizer. As forças repressivas não nos impedem de expressar nossa opinião. Ao contrário, elas até nos obrigam a isso. Que libertação é ao menos uma vez não ter que dizer nada e poder ficar em silêncio, porque só então temos a possibilidade de criar algo cada vez mais raro: algo que realmente valha a pena ser dito.[5]
O idiot savant tem acesso a um conhecimento completamente distinto. Ele se eleva sobre o horizontal, sobre o estar meramente informado e conectado:
O idiot savant, como anteriormente se chamava o autista, deveria se libertar do conceito, que talvez pudesse ser aplicado àqueles aventureiros que estão ligados de maneira diferente do que apenas entre si.[6]
O idiotismo inaugura um espaço virginal, a distância que o pensamento necessita para se preparar para uma fala inteiramente distinta. O idiot savant vive da distância, como o estilita. Uma tensão vertical o capacita a uma concordância superior que o torna sensível aos acontecimentos, às emissões do futuro:
Estilita, santo do pilar, antena. As ondas da emissão excessiva produzem na boca do santo o mesmo ruído dos sinais fracos que o idiota recebe do mundo.[7]
Inteligência significa escolher entre (do latim inter-legere). Ela não é completamente livre, na medida em que está presa a um entre determinado pelo sistema. Não tem nenhum acesso ao fora, porque só tem a escolha entre opções dentro de um sistema. Portanto, não é de fato uma livre escolha, mas uma seleção de ofertas dispostas pelo sistema. A inteligência segue a lógica de um sistema. Ela é imanentemente sistêmica. Cada respectivo sistema define sua respectiva inteligência. Logo, a inteligência não possui nenhum acesso ao inteiramente Outro. Ela habita o horizontal enquanto o idiota toca o vertical na medida em que abandona a inteligência, ou seja, o sistema predominante: «O interior da idiotice é delicado e transparente como a asa de uma libélula; ele cintila com a inteligência superada».[8]
Em seu último texto, A imanência: Uma vida…, Deleuze eleva a imanência a uma fórmula de beatitude:
Pode-se dizer da pura imanência que ela é uma vida, e nada diferente disso. Ela não é imanência à vida, mas o imanente que não existe em nada também é uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência completa, beatitude completa.[9]
Por isso, a imanência é um imanente que «não existe em nada», porque não é imanente a outro, mas apenas a si mesma. Assim, ela é a «imanência da imanência». Não está submetida a nada. Ela se basta a si mesma. Sobre esse plano de imanência da vida não se pode erigir nenhuma ordem de dominação. O capital se manifesta como transcendência que aliena a vida de si mesma. A imanência como vida suspende essa relação de alienação.
A pura imanência é o vazio que não se pode nem psicologizar nem subjetivar. A vida imanente é em torno do vazio mais leve, mais rica, até mais livre.[10] Não é a individualidade ou a subjetividade, mas a singularidade que caracteriza o idiota. Em sua essência, portanto, ele se assemelha a crianças que ainda não são um indivíduo. Sua existência não é constituída por qualidades individuais, mas por acontecimentos impessoais:
Por exemplo, os recém-nascidos são todos parecidos e não têm nenhuma individualidade; mas eles têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjetivas. Os recém-nascidos, em meio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessados por uma vida imanente que é pura potência, e até mesmo beatitude.[11]
O idiota se assemelha ao homo tantum, «que não tem mais nome, embora ele não se confunda com nenhum outro».[12] O plano de imanência, ao qual ele tem acesso, é a matriz da dessubjetivação e da despsicologização. É a negatividade que arranca o sujeito de si mesmo e o liberta na «imensidão do tempo vazio».[13] O idiota não é um sujeito, é «antes uma existência em flor: simples abertura à luz».[14]
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
NOTAS:
[1] Gilles Deleuze. En medio de Spinoza. Buenos Aires: Cactus, 2008, p. 28. Cf. P. Menge, Faire l’idiot: La politique de Deleuze. Paris: Germina, 2013.
[2] Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a filosofia? 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2007, p. 84.
[3] Botho Strauss. Lichter des Toren: Der Idiot und seine Zeit. Munique : Diederichs, 2013, p. 10.
[4] Ibid., p. 11.
[5] Gilles Deleuze. «Mediators». In: Negotiations, Nova York, 1995.
[6] Strauss, Lichter des Toren, op. cit., p. 11.
[7] Ibid., p. 165.
[8] Ibid., p. 7. Clément Rosset distingue expressamente a idiotice da «ininteligência». Com isso, atribui à idiotice um potencial criativo: «Em geral, a idiotice é equiparada a ininteligência, considerada o contrário da inteligência. Dessa maneira, uma inteligência receptiva, flexível e prudente é oposta a uma idiotice ordenada como adormecida, insensível e mumificada. […]. Na verdade, não existe nada tão «receptivo, flexível e prudente que a idiotice» (Das Reale: Traktat über die Idiotie, Frankfurt: Suhrkamp, 1988, p. 183). A abertura e a receptividade sem limites distinguem a idiotice da ininteligência, que é limitada. A ininteligência é pobre de experiência. Logo, não tem nenhum acesso ao acontecimento: «A ininteligência tranca as portas atrás de si: ela sinaliza a proibição de determinados acessos a este ou àquele conhecimento e limita, dessa maneira, seu horizonte de experiência». A idiotice, ao contrário, é «aberta a tudo na medida em que transforma um objeto qualquer em um objeto de atenção e de possível engajamento». Ela é uma «vocação», um «sacerdócio, com todos os seus ídolos, sacerdotes e seguidores» (ibid., p. 185).
[9] Gilles Deleuze. «A imanência: Uma vida…». Trad. de Tomaz Tadeu. Educação & realidade, v. 27, n. 2, 2002, pp. 10-8.
[10] Sobre o conceito de vazio, cf. Byung-Chul Han, Philosophie des Zen-Buddhismus. Stuttgart: Reclam, 2002; Byung-Chul Han. Abwesen: Zur Kultur und Phjilosophie des Fernen. Berlim: Merve, 2007.
[11] Deleuze. «A imanência: Uma vida…»., op. cit., p. 14.
[12] Id.
[13] Id.
[14] Strauss, Lichter des Toren, op. cit., p. 175.