“Paleontologia”, de Cioran: uma meditação ascética sobre a carne e o esqueleto – Rodrigo Menezes

Paléontologie [Paleontologia] é um importante texto no conjunto da obra de Cioran, tanto pelo recorte temático quanto por sua peculiaridade estilística. O ensaio faz parte de Le mauvais démiurge (1969), o sexto livro escrito pelo pensador romeno em língua francesa (ainda inédito em língua portuguesa). Le mauvais démiurge é o quarto livro consecutivo de Cioran em língua francesa que se distingue dos dois primeiros, Breviário de decomposição e Silogismos da amargura, pela sua forma ensaística mais extensa e pela sobriedade discursiva, isenta de afetações líricas.

Se após o sucesso do Précis (ganhador do prêmio Rivarol), os Syllogismes seriam um fracasso de crítica e de público, graças a La Tentation d’exister (1956) Cioran tornará a ser um autor estrangeiro aclamado (recusando agora o primeiro de todos os prêmios literários que lhe seriam oferecidos ao longo da carreira, à exceção do primeiro). Após a grandiloquência lírica e barroca do Breviário, com sua poética da decomposição, e o laconismo irreverente dos Silogismos, A Tentação de existir inaugura um estilo discursivo do autor romeno até então desconhecido dos seus leitores franceses: o ensaio (essai). Os três livros seguintes (dos quais apenas o primeiro encontra-se traduzido e publicado em português) terão a mesma forma: História e utopia (1960), La Chute dans le temps (1964) e Le mauvais démiurge (1969).

Como outros livros de Cioran, Le mauvais démiurge combina ensaios e aforismos breves. É composto de 6 capítulos, dos quais 4 são ensaios[1] e 2 são conjuntos de aforismos.[2] O terceiro ensaio, “Paleontologia”, inicia uma reflexão de cunho ascético e, por assim dizer, soteriológico (uma teoria da libertação), por uma perspectiva oriental eminentemente budista que será retomada no quarto capítulo, L’Indélivré [O Não-Liberto].

Notas elucidativas: Cahiers e Caderno de Talamanca

Cioran anota nos Cahiers, em 5 de fevereiro de 1969: “Sou bogomilo e budista. É o mínimo que se depreende do Mauvais démiurge.”[3] Bogomilismo foi uma heresia gnóstica, “os ancestrais dos cátaros”, segundo Cioran, “cuja influência foi grande sobretudo na Bulgária”,[4] estendendo-se também à Romênia.[5] Se Le mauvais démiurge e Les nouveaux dieux, os dois primeiros ensaios do livro de 1969, correspondem à faceta bogomila (gnóstica) de Cioran, Paléontologie e L’Indélivré correspondem à sua faceta budista (oriental).

Outra fonte elucidativa das preocupações e intenções que se encontram na gênese de Le mauvais démiurge, e particularmente de “Paleontologia”, é o Caderno de Talamanca, escrito por Cioran durante uma estadia de férias na referida praia de Ibiza, na Espanha, no verão de 1966 (portanto 3 anos antes da publicação de Le mauvais démiurge). Muito do que se encontra aí consiste em notas mentais que servem como diretrizes temáticas para a redação de Le mauvais démiurge. “Quando voltar, decidirei se vou escrever o ensaio sobre o hipócrita ou sobre a redenção, dois projetos em que me divido há alguns meses.”[6] Prevaleceria a segunda alternativa: não só Paléontologie, como também L’Indélivré é um ensaio sobre a redenção.

Além de referências à tradição gnóstica (Evangelho de Tomé, os cátaros, o heresiarca Basilides), há neste pequeno Caderno de Talamanca mais de uma menção a Philipp Mainländer, filósofo alemão pessimista e obscuro discípulo de Schopenhauer: “Qual é o sentindo da ideia de redenção? Tentar ler o livro de Philipp Mainländer: Die Philosophie der Erlösung (A filosofia da redenção[7]).”[8] E poucas páginas adiante: “Não vejo claramente qual tom devo empregar em meu ensaio sobre a redenção. (Vou ter de ler Mainländer, reler E. von Hartmann e mergulhar de novo nos gnósticos.)”[9] Por mais que Cioran vincule a questão da libertação [délivrance] especialmente a Mainländer, o autor da Filosofia da Redenção não será citado nenhuma vez em Le mauvais démiurge. À diferença dos gnósticos e de ensinamentos budistas, Mainländer é uma referência ausente neste livro, encontrando talvez uma referência indireta no conjunto de aforismos intitulados Rencontres avec le suicide [Encontros com o suicídio]. O que se sobressai, desde o título do livro e dos capítulos, é a dupla orientação assinalada na nota dos Cahiers previamente citada: a heresia gnóstica (no horizonte espiritual e cultural do Ocidente) e o budismo (no Oriente).

Da embriaguez lírica do Breviário à sobriedade reflexiva de Le mauvais démiurge

O teor de “Paleontologia”, e de Le mauvais démiurge em geral, difere significativamente do “pensamento interjetivo” do Précis de décomposition, da expressão lírica e febril, dir-se-ia desesperada, dos textos que compõem o livro de estreia de Cioran como escritor de língua francesa.[10] O Précis é um livro gritado (o grito de um “esfolado vivo”), “inflamado” e “inflamável”, livro que atualiza (e emula) a atmosfera insone e febril do primeiro livro no âmbito da vida romena de Cioran: Nos cumes do desespero (1934)

Intitulado inicialmente Exercícios negativos, o Breviário é uma grande e duradoura Negação: desaprovação, recusa, insatisfação total. Rebelião e impotência se misturam na metafísica da impureza (ontologia negativa) que delineia nas suas páginas. Constata-se aí certo regozijo na (poética da) decomposição, certo charme trágico de estar perdido, de onde um orgulho da Queda e do Fracasso ou, nas palavras de Peter Sloterdijk, “um orgulho da incurabilidade, que se manifesta numa zombaria refratária voltada contra todas as tendências de esclarecimento.”[11] Noutras palavras, nenhuma saída, nenhuma salvação, nenhuma “grande saúde” (Nietzsche) no horizonte gangrenoso do Breviário.

O Breviário é um livro incendiário e irrespirável, uma calamidade poética, um artefato insólito que envenena e dissolve crenças, ideais, esperanças e sonhos. Nele, tudo se decompõe, e o mundo mesmo é uma imensa ferida a céu aberto… Mesmo o ceticismo praticado aí parece demasiado negativo. O Cético cioraniano, “apaixonado por suas dúvidas, mostra-se fanático pelo ceticismo”.[12] Exercitando-se no hamletismo da indolência, o autor do Breviário se compraz na decomposição, desdenhando de todas as pretensões de salvação ou qualquer outro ideal supremo, rejeitando e desmentindo, como quimera, especialmente a salvação cristã.

À embriaguez lírica do Breviário opõe-se a sobriedade meditativa de ensaios como “Paleontologia” e “O Não-Liberto”. Outro tom, outra ênfase, outro desenlace. Numa prosa convivial e amena que destoa enormemente da poética da decomposição, com a atmosfera infernal que lhe é própria, os ensaios sobre a libertação de Le mauvais démiurge dão a conhecer um logos mais expositivo que performático. Cioran mostra-se nestes ensaios um pensador isento de patetismos, dialético e argumentativo, “generoso” em fazer-se claro (contrariando a tendência poética “tenebrista” apontada por Sloterdijk), em expor e desenvolver abertamente as suas ideias – ou, mais propriamente, as suas obsessões essenciais. Neste caso, a obsessão da morte, um tópico que sempre esteve na pauta do dia no que concerne ao pensamento existencial de Cioran, desde os seus primeiríssimos escritos ainda em romeno.

Urgência do desprendimento de um “especialista no problema da morte”

Da juventude insone, “nos cumes do desespero”, à serenidade da meditação sobre a morte em “Paleontologia”, será um longo e tortuoso itinerário intelectual. Ao final de um texto intitulado “Eu e o mundo”, ainda em seu primeiro livro, publicado quando Cioran tinha 23 anos, lemos: “Escrito hoje, 8 de abril de 1933, dia em que completo 22 anos. Sou invadido por uma estranha sensação ao imaginar que me tornei, nessa idade, especialista na questão da morte.”[13] Ironicamente, levaria mais de 30 anos para que o especialista da morte viesse a distinguir com toda a clareza as evidências às quais antes virava as costas.[14] Trata-se, pois, de tirar as últimas consequências da obsessão da morte, de fazer um “bom uso do esqueleto”.[15]

Passando para a sua produção francesa, no Breviário (1949) há o importante tríptico “Variações sobre a morte”. Nos Silogismos (1952), este aforismo: “A morte coloca um problema que substitui todos os outros. Há algo mais funesto para a filosofia, para essa ingênua crença na hierarquia das perplexidades?”[16] Em La Chute dans le temps (1964), um ensaio sobre La plus ancienne des peurs [O mais antigo dos medos], a propósito de Tolstói (particularmente Ivan ilitch). E se recuarmos dois livros, parando em A Tentação de existir (1956), vale citar esta passagem, de aparência autorreferencial, que prefigura a teoria da libertação pelo vazio de Le mauvais démiurge:

O grande sim é o sim à morte. É possível proferi-lo de várias maneiras…
Há fantasmas diurnos que, prisioneiros da sua ausência, vivem à margem, caminham com passos velados ao longo das ruas, não olhando para ninguém. Não há sombra de inquietação nos seus olhos nem nos seus gestos. Tendo deixado de existir para eles o mundo exterior, vergam-se a todas as solidões. Atentos à sua distracção, ao seu desprendimento, pertencem a um universo não declarado, situado entre a recordação do inaudito e a iminência de uma certeza. O seu sorriso faz pensar em mil pavores vencidos, na graça que triunfa sobre o terrível; passam através das coisas atravessem a matéria. Terão alcançado as suas próprias origens? Ou descobriram em si próprios as fontes da claridade? Nenhuma derrota, nenhuma vitória os abala. Independentes do Sol, bastam-se a si próprios. São iluminados pela Morte.

“A tentação de existir”, A Tentação de existir

“A questão da salvação [salut] está incessantemente presente em Cioran. É preciso buscar libertar-se do inferno do mundo.”[17] Poucos intérpretes levaram a sério o controvertido tema da “salvação” em Cioran como Sylvie Jaudeau. Ela tem toda razão em se perguntar logo em seguida: “Mas pode-se assimilá-la à busca da gnose? Parece que a salvação indicada por Cioran é contrária à concepção geralmente ensinada pelos gnósticos. Ele nos propõe uma salvação fora do saber.”[18] Ela tem razão, e a resposta é negativa: se há uma “salvação” concebível para Cioran, ela não se pauta na fé cristã e tampouco se inscreve na história religiosa do Ocidente como uma forma sui generis de gnose; o seu ceticismo o impede de crer tanto na salvação cristã quanto na salvação gnóstica. A libertação [délivrance] contemplada por Cioran não tem nada a ver com Deus nem com uma pretensa imortalidade da alma; é a libertação pelo vazio; nas palavras de John Gray, não a esperança da  imortalidade, mas a busca da mortalidade,a lucidez como consciência de nossa total destrutibilidade (finitude, contingência, transitoriedade).[19] Assim, se a ontologia negativa e a dimensão crítica (a pars destruens) do pensamento de Cioran são de índole gnóstica (“Criação fracassada”, “mau demiurgo”, “Queda no tempo”), sua dimensão propositiva (pars construens), existencialmente falando, tem a face voltada para o Oriente budista. Trata-se não da redenção pelo conhecimento, ao modo dos gnósticos, mas da redenção “pela ultrapassagem do conhecimento”.[20] Por fim, se há uma filosofia da libertação, uma reflexão inequívoca acerca da délivrance no conjuntode Exercícios negativos que é a obra de Cioran, encontra-se em Le mauvais démiurge, nestes dois ensaios complementares: Paléontologie e L’Indélivré.

Mise-en-scène do ensaio

O ponto de partida do ensaio é uma visita acidental, em virtude de um temporal numa tarde de verão, ao Museu de História Natural em Paris. Da contingência da visita, que poderia nunca ter acontecido, passa-se à necessidade das evidências que se encontrariam dentro do Museu: Cioran se depara, lá, para o seu terror e o seu maravilhamento, com uma inesperada “feira de crânios”, com uma “gargalhada em todos os níveis da zoologia”.[21] É como se nós, subitamente, nos víssemos como seremos: “uma lição, não, um acesso de modéstia”.[22]

Em nenhum outro lugar se está mais bem servido em matéria de passado. Ali, o possível parece inconcebível ou grotesco. Tem-se a impressão de que a carne se eclipsou desde a sua aparição, que nem mesmo chegou a existir, que não pode ter estado agarrada a esses ossos tão solenes, tão cheios de si. Ela parece uma impostura, uma superstição, um disfarce que nada oculta. Mas, era só isso? E, se não vale nada mais, como consegue me inspirar repulsa ou terror?[23]

Vale destacar as referências evocadas acerca do duplo motivo do horror e da urgência do desprendimento. São referências ocidentais e (sobretudo) orientais; modernas e antigas; filosóficas, poéticas e religiosas. Logo ao início do ensaio, são evocados Baudelaire (poeta), Jonathan Swift (escritor) e o Buda: mestres do horror à carne que “estiveram obcecados por sua nulidade, que fizeram dela grande caso”.[24] E encontramos pelo caminho “um Padre da Igreja”, que exagera em qualificar a carne como “noturna” (é “enganar-se sobre a sua natureza e “conceder-lhe demasiadas honras”[25]), “monges budistas”,[26] “um texto budista”,[27] um pouco de “sabedoria védica”,[28] o Prajñāpāramitā[29] o Dhammapada[30] e alguns “textos mahayanistas”[31] (a propósito das 18 variedades do vazio), Holbein e Baldung Grien,[32] dois pintores alemães que exploraram em suas pinturas o tema medieval da Dança macabra,[33] Santo Inácio de Loyola[34] e Santo Tomás de Aquino,[35] Pascal e,[36] por fim, não uma referência budista mas hinduísta: o Katha Upanishad.[37] Este último aparece no parágrafo final, à guisa de antítese à tradição mahayanista[38] do budismo (no que se refere à oposição entre atman e de anatman, como premissa ontológica na busca da libertação):

Diz-se no Katha-Upanishad, a propósito do atman, que ele é ‘alegre e sem alegria’. Eis um estado a que se acede tanto pela afirmação de um princípio supremo quanto pela sua negação, tanto pelo desvio do Vedanta quanto pelo do Mahayana.[39]

No Ocidente, a oposição entre atman e anatman corresponderia, grosso modo, à oposição entre a tese ou afirmação da existência de uma alma imortal (atman; a psykhé platônica) e a tese contrária, sua negação (anatman), a afirmação da não-realidade da alma (em termos de substância ou essência). Noutras palavras, o postulado metafísico da qualidade divina e eterna de nossa natureza fundamental (que subsistiria por si mesma, separadamente), por um lado, e a suspensão cética do juízo, ou mesmo a negação “niilista”, deste mesmo postulado metafísico (não há Deus, não há alma imortal, tudo vem a ser e tudo deixa de ser). Reconhecendo-se cético em relação a todas as ideias e descrente em relação a todos os ideais, Cioran não se considera apto senão para seguir “pelo desvio do Mahayana”, ou seja, pela negação do princípio supremo (alma, Deus).

Segundo Mircea Eliade, “pelo mesmo motivo que o leva à negação de qualquer teoria, Buda opõe-se à doutrina brâmane do Eu (ātman) como elemento invariável do agregado humano, sem contudo afirmar o contrário”,[40] ou seja, mantendo-se na posição que poderíamos vincular, no Ocidente, à epokhé cética (suspensão do juízo, sem afirmar nem negar determinada crença ou doutrina sobre a realidade última dos seres). Assim também, quando um asceta itinerante, Vaccha, lhe apresenta inúmeras teses e antíteses, o Buda as nega, uma a uma, “proclamando-se ‘livre de qualquer teoria’.”[41] Guardadas as devidas diferenças, o “não-liberto” Cioran também é (ou gostaria de ser) perfeitamente “livre de qualquer teoria”.

Quando Eliade afirma que, “ao contrário do que muitos eruditos disseram, o budismo não é ‘pessimista’”, Cioran estaria inclinado a concordar. Nem Schopenhauer é tão pessimista assim, segundo os critérios de Cioran. Trata-se originalmente, explica Eliade, “de uma doutrina muito característica no conjunto das religiões do mundo, doutrina não afirmativa, mas em primeiro lugar, negativa. O caminho do budismo é o caminho da aniquilação do Eu e, portanto, do mundo dos fenômenos.”[42] O budismo não é “pessimista”; a negatividade de que fala Eliade não é inequivocamente “negativa” (tal como estamos predispostos a entender “o negativo” enquanto tal); a positividade totalitária com a qual estamos culturalmente intoxicados talvez dificulte a compreensão de que as (quatro) nobre verdades do budismo não são nem deprimentes nem destrutivas, pois o seu efeito é salutar, libertador, e o que a clarividência (Cioran) destrói é ilusório, é a ilusão mesma, fonte de sofrimento, medo, ansiedade. O “caminho da aniquilação do Eu”, de que fala Eliade, é o caminho percorrido, em logos, em “Paleontologia”, desde a acidental visita ao Museu, até a conclusão (positiva) do ensaio. O conceito de irrealidade universal enunciado em “Paleontologia” não é senão a percepção originária da “realidade” mesma, despida das ilusões e dos pretextos com as quais nós a envolvemos para dar uma fachada antropomórfica ao vazio.

Cumpre ter em mente o problema da “libertação” (délivrance), tão recorrente no Caderno de Talamanca – em notas mentais, como diretrizes para a futura redação de Le mauvais démiurge. Cumpre ter em mente também o que Cioran anota nos Cahiers: que o mínimo que se depreende de Le mauvais démiurge é que o seu autor seria “bogomilo” (gnóstico) e “budista”. Em Paleóntologie e L’Indélivré, Cioran está meditando sobre a libertação (délivrance), uma forma de libertação possível, ao seu alcance, “à mão[43]; na ausência da fé, o que Cioran almeja não é a salvação da alma após a morte (ao modo cristão), mas, em suas palavras, “o nirvana na vida – proeza rara, extremidade praticamente inacessível –”,[44] a libertação ou desprendimento em relação à fonte comum de onde brota o desejo, a ilusão, o terror metafísico: “esse maldito eu”, a consciência de si, a ilusão de uma identidade essencial.

Seria de se perguntar que relação haveria entre heresia gnóstica (gnose, a salvação pelo conhecimento) e budismo (despertar e libertação em chave budista mahayanista, nirvana). Eliade e Culianu tangenciam a resposta em seu Dicionário das religiões, sem aprofundar-se nela. Somos informados pelos historiadores romenos que “a doutrina do Mahāyāna aparece inicialmente na literatura dos sūtras da Gnose Transcendente (prajñāpāramitā) cujos primórdios devem ser situados em torno do ano 100 d.C.”[45] O horizonte de espiritualidade budista negativa que interessa a Cioran é exatamente este: budismo Mahāyāna e, mais especificamente, a escola Madhyamaka de Nagarjuna. A data de origem da referida tradição (100 d.C.) é mais ou menos a mesma do surgimento, no Ocidente, da heresia gnóstica no âmbito do cristianismo primitivo. Cumpre notar que Prajñāpāramitā, uma das referências de “Paleontologia”, é traduzido por Eliade e Culianu por “Gnose Transcendente”, que seria assim uma variedade de conhecimento salvífico ou antes libertador: uma “gnose”, sim, mas não na acepção normalmente vinculada à heresias gnósticas dualistas (radicalmente “metafísicas”), elas também exaustivamente estudadas por Eliade e Culianu, sem a prerrogativa de realidades/entidades metafísicas transcendentes. Talvez possamos entender, a partir dos comentários dos compatriotas de Cioran, a anotação do Caderno de Talamanca sobre a libertação/redenção não pelo conhecimento, mas pela superação do conhecimento pelo conhecimento.

A libertação almejada por Cioran não coincide, portanto, com a salvação cristã segundo o dogma cristão, ou qualquer outra religião monoteísta ocidental. Nem com a salvação pelo conhecimento dos gnósticos. Ela está mais para esse “nirvana na vida” ao qual se refere o autor de “Paleontologia”.

É normal, e inclusive esperado, que o tema da libertação suscite muitas dúvidas e questionamentos no leitor de Cioran, ainda mais não tendo lido senão os primeiros livros da produção francesa do filósofo romeno, como com o Breviário de decomposição e Silogismos da amargura. Grande parte da dificuldade hermenêutica em torno da questão da libertação em Cioran deriva de sua proximidade e mesmo, poder-se-ia dizer, “cumplicidade” involuntária, com o cristianismo ortodoxo. Mas, mesmo superada esta dificuldade primeira, e estando clara a matriz oriental, budista, da concepção soteriológica desenvolvida por Cioran, subsiste ainda uma dificuldade referente à recepção do budismo no Ocidente, e o significado de alguns dos conceitos-chave do pensamento budista. A começar por nirvana. Aqui, é necessário retornar à distinção entre o budismo Theravada ou Hinayāna (“veículo menor”) e o Mahāyāna (“grande veículo”), e suas respectivas concepções da natureza da “iluminação” espiritual (tendo em vista seus desdobramentos práticos) e do estatuto mesmo do “iluminado”. Eliade e Culianu:

É uma mudança do ideal de perfeição que marca a passagem do Hinayāna para o Mahāyāna. Enquanto o adepto do budismo hinayāna aspira a tornar-se um arhat, ou seja, um ser que não mais sairá do estado de nirvāna para voltar ao odioso samsāra, ou ciclo de reencarnações, o adepto do Mahāyāna deseja ser um Bodhisattva, ou seja, um ser que, mesmo tendo atingido a Iluminação, sacrifica seu bem-estar ao de toda a humanidade, preferindo manifestar-se no mundo a retirar-se para o nirvāna. O Bodhisattva não será um Pratyeka Buddha, um Buda silencioso, mas um Iluminado que fala, age, socorre os infelizes: nova perspectiva que acreditamos ser influenciada pelas correntes da devoção hindu (bhakti).[46]

Assim, em vez do rigorismo do tipo “ou tudo ou nada”, segundo o qual o Iluminado se elevaria a um estado divino de pura indiferença, uma existência sublimada e etérea, alheia ao mundo, é possível pensar a “iluminação” e a “libertação”, em chave budista (mahayanista), como um perpétuo “work in progress”, um exercício interior permanente e virtualmente infinito que em nada permite a certeza de ter “chegado lá”, de ter alcançado o que se busca de uma vez por todas. Longe de nós exaltar como um “Iluminado” aquele que se rebaixa como um “Não-Liberto”, um “Réprobo”, um “frenético da libertação” [frénétique de la délivrance].[47] Em todo caso, é importante não idealizar nem absolutizar essa “libertação”, cuja urgência, não obstante, Cioran confessa em “Paleontologia”. Por outro lado, uma vez que entendemos a natureza (negativa) da “libertação” em questão, ela deixa de parecer tão improvável, fora de alcance, como seria o caso se dependesse da fé para merecer a salvação de sua alma por um Deus misericordioso: para merecer o Paraíso após a morte. Por mais que tivesse alcançado um grau elevado de clarividência e desprendimento, a experiência integral comunicada pela obra de Cioran sugere que ele estaria mais para a existência de um Boddhisattva do que um arhat ou um Pratyeka Buddha, conforme à descrição de Eliade e Culianu. Em “Obsessão do Essencial” (Breviário), após descrever um itinerário espiritual que leva para fora da “comunidade dos viventes”, dessa “comunidade de interesses e de esperança” que constitui a sociedade, Cioran escreve:

Os que não permanecem no interior da realidade que cultivam, os que transcendem o ofício de existir devem ou pactuar com o inessencial, voltar atrás e integrar-se na eterna farsa, ou aceitar todas as consequências de uma condição separada, e que é superabundância ou tragédia, conforme a olhemos ou a soframos.[48]

Cioran tem a experiência de “transcender o ofício de existir”, aceitando “todas as consequências de uma condição separada”, assim como tem a experiência de “voltar atrás e integrar-se na eterna farsa”, pactuando com o inessencial. “O horror do acessório paralisa-me. Ora, o acessório é a essência da comunicação (e portanto do pensamento), é o sangue e a carne da palavra e da escrita. Querer renunciar-lhe é o mesmo que tentarmos fornicar com o nosso esqueleto.”[49] A “decomposição”, da qual o Breviário dá uma demonstração tão ostensiva, pode ser vista como um índice da medida em que Cioran permanece preso à sensualidade da carne, à volúpia das sensações, à “tentação de existir”, de como tende a recuar diante do Essencial, do que mais importa: la délivrance.  A “condição separada” em questão não deve ser entendida no sentido etimológico da categoria do “sagrado” ou “santo” (separado do profanum), mas simplesmente como uma figura da solidão. Mas inclusive a solidão é, no caso de Cioran, uma experiência mundana, urbana, uma solidão inapelável em meio aos seus semelhantes; amável, convivial, solidária, para quem esperava um misantropo intratável e sem amigos.

A busca da libertação, ou simplesmente do desprendimento (détachement), é uma tarefa árdua e espinhosa, repleta de contratempos e armadilhas. Por exemplo, a soberba, o risco de orgulho espiritual – idolatria da clarividência ou apego à busca do desprendimento. Cioran mostra-se perfeitamente consciente, em “Paleontologia”, destes riscos – e este reconhecimento é determinante no sentido de reafirmar a irônica ambiguidade (e o paradoxo) do délivré inaccompli, desse enigmático Indélivré. É digno de nota que, ao assinalar este perigo, ele evoque não uma referência oriental, budista, mas um católico: Santo Inácio de Loyola. Ademais, Cioran tinha aspirações que talvez fossem incompatíveis (e de fato eram na sua percepção) com uma carreira religiosa: uma carreira literária. Escrever dispensando-se o “acessório” carnal é como querer “fornicar com um esqueleto”. “O sábio em nós arruína todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo.”[50]

A julgar por Le mauvais démiurge, um livro decisivo no conjunto da obra pelas teses que enuncia, e a julgar pelas anotações secundárias mencionadas (especialmente a dos Cahiers) poder-se-ia dizer que o gnosticismo corresponde à pars destruens do pensamento filosófico (metafísico) de Cioran (pessimista, niilista), ao passo que o budismo corresponde à pars construens, à contrapartida positiva e propositiva (soteriológica) do seu pensamento. Dito de outro modo, quando se trata de representar-se este mundo (a “Criação fracassada”), Cioran pensa como um gnóstico; mas, em se tratando de buscar uma saída (libertação) desse estado de coisas (do “inferno deste mundo”), ele pensa como um filósofo (dialético) budista como Nagarjuna. A lucidez proporciona então uma certeza libertadora por sua ausência de conteúdo. Não dispondo senão do seu próprio “nada”, é preciso tirar algum proveito dele: o niilismo tenebroso dá lugar a um júbilo supremo e inaudito. Para concluir, duas anotações dos Cahiers sobre o tema da libertação (délivrance):

Até onde posso lembrar, o budismo sempre me tentou. Mas também eu sempre o rechacei no último momento. Eu amo a busca da libertação [la quête de la délivrance] mais do que a libertação. Se não, faz tempo que teria encontrado a paz e a serenidade, e talvez mais. Quando penso que, entre os medos mais “sérios” que eu experimentei na minha vida, o de tornar-me santo não foi o menor.”[51]

Fico espantado com meus recursos de tristeza; de ondem podem provir? São literalmente inesgotáveis. Que progresso espiritual poderia eu fazer com esse peso no sangue?
Quando falo de “libertação” [délivrance], não estou a fazer literatura; estou respondendo a um apelo surgido de meu espírito e de minha fisiologia, de tudo o que tenho de bom e de mau, de tudo o que há de religioso na minha desolação. O único “mito” ao qual eu adiro sem restrição é o do Paraíso perdido.[52]


NOTAS:

[1] O primeiro, o segundo, o terceiro e o quinto capítulos, respectivamente “Le mauvais démiurge”, “Les nouveaux dieux”, “Paléontologie” e “L’Indélivré”.

[2] O quarto e o sexto capítulos, respectivamente “Rencontres avec le suicide” e “Pensées étranglées”.

[3] CIORAN, Cahiers: 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997, p. 683.

[4] CIORAN, Entretien avec François Bondy, Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, p. 9.

[5] Lucian Blaga dedica uma longa parte de autobiografia a esta heresia gnóstica tipicamente balcânica. BLAGA, Lucian, “Fârtate e Nefârtate”, A Barca de Caronte. Trad. de Fernando Klabin. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 502-510.

[6] CIORAN, Caderno de Talamanca. Trad. de Flávio Quintale. Belo Horizonte: Âyiné, 2019, p. 25.

[7] O substantivo alemão Erlösung pode traduzir-se tanto por “redenção” como por “libertação”, numa perspectiva heterodoxa, filosófica e não religiosa, de pensar o que seria o bem supremo do homem em face da vida e da morte (não coincidindo com a salvação da alma ao modo cristão).

[8] CIORAN, Caderno de Talamanca, p. 36.

[9] Ibid., p.47.

[10] Cf. “O pensamento interjetivo”, in Breviário de decomposição. “Uma alma que não esteja perdida? Onde está, para que se faça o seu processo, para que a ciência, a santidade e a comédia apoderem-se dela!”

[11] SLOTERDIJK, Peter, “A gnose como psicologia negativa”, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 94.

[12] CIORAN, “Os dogmas inconscientes”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 84.

[13] CIORAN, “Eu e o mundo”, Nos cumes do desespero. Trad. de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2012, p. 28.

[14] “As evidências às quais eu antes virava as costas, agora as distingo com toda a clareza. A vantagem que saco delas é que já não sinto nenhuma obrigação com respeito à minha carne, a toda carne.” CIORAN, “Paléontologie”, Le mauvais démiurge, Œuvres. Paris: Gallimard, 1995, p. 1196.

[15] Ibid., p. 1198.

[16] CIORAN, Silogismos da amargura. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 28.

[17] JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme. Paris: José Corti, 1990, p. 62.

[18] Ibid., p. 63.

[19] GRAY, John, Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Trad. de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007, p. 144-145. O título de um dos capítulos de Straw Dogs (2002), “O Não-Salvado” [The Unsaved], é claramente uma alusão a L’Indélivré. A epígrafe é este aforismo de Cioran: “A certeza de que não existe salvação é uma forma de salvação, é mesmo a salvação. A partir daí, tanto se pode organizar a própria vida como construir uma filosofia da história. O insolúvel como solução, como única saída…” CIORAN, Do Inconveniente de ter nascido. Trad. de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 173.

[20] CIORAN, Caderno de Talamanca, p. 20.

[21] CIORAN, « Paléontologie », Le mauvais démiurge, Op. cit., p. 1192.

[22] Ibid., p. 1192.

[23] Ibid., p. 1192.

[24] Ibid., p. 1192.

[25] Ibid., p. 1192.

[26] Ibid., p. 1193.

[27] Ibid., p. 1193.

[28] Ibid., p. 1195.

[29] Ibid., p. 1194.

[30] Ibid., p. 1202.

[31] Ibid., p. 1196.

[32] “Não necessito de Holbein nem de Baldung Grien: em matéria de macabro, recorro a meus próprios meios.” Ibid., p. 1198.

[33] “Na Idade Média, se empenhavam na salvação, acreditavam energicamente: o cadáver estava na moda; a fé era vigorosa, indomável, amava-se o lívido e o fétido, sabia-se do benefício que se pode tirar da podridão e da fealdade. Hoje em dia, uma religião edulcorada só se apega a fantasmas gentis, à Evolução e ao Progresso. Não é ela que nos fornecerá o equivalente moderno da Dança macabra.” Ibid., p. 1193.

[34] “Atribuir a Deus os nossos êxitos de toda espécie, crer que nada provém de nós, eis, segundo Inácio de Loyola, o único meio eficaz de lutar contra a soberba. A recomendação vale para os estados fulgurantes em que a intervenção da graça parece obrigatória, mas não para o desprendimento, esse trabalho de minagem [travail de sape] longo e penoso do qual o eu é a vítima: como não envaidecer-se com ele?” Ibid., p. 1200.

[35] “‘Nenhuma criatura’, observa Santo Tomás, ‘pode alcançar um grau mais alto de natureza sem deixar de existir.’ No entanto, se o homem intriga, é precisamente por querer superar a sua natureza. Não chega a consegui-lo, mas os seus esforços desmedidos não podiam deixar de alterá-lo, de desnaturá-lo.” Ibid., p. 1200.

[36] Pascal teria compreendido que é mais decente apiedar-se do Homem do que de si mesmo. Ibid., p. 1200.

[37] Ibid., p. 1201.

[38] Convenciona-se distinguir entre a tradição Hīnayāna (também designada Theravada), “pequeno veículo”, e a Mahāyāna, “grande veículo”. Historicamente, a tradição do “pequeno veículo”, de cunho sacerdotal e monástico, é mais antiga do que a tradição do “grande veículo”.

[39] CIORAN, « Paléontologie », Le mauvais démiurge, op. cit., p. 1201.

[40] ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P., “Budismo”, in Dicionário das religiões. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 70.

[41] Ibid., p. 70.

[42] Ibid., p. 69.

[43] Cioran alude à noção heideggeriana de Zuhandenheit, a qualidade do que está “à mão” do homem enquanto “ser-aí” (Dasein): utensílios, dispositivos, e recursos, materiais e simbólicos, como instrumentos auxiliares da habitação humana no mundo e no tempo. “Se não voltei ao museu, estive lá em espírito quase todos os dias, não sem experimentar certo benefício: o que há de mais calmante do que ruminar essa última simplificação dos seres? Subitamente, a imaginação despojada de febre, nós nos vemos como seremos: uma lição, não, um acesso de modéstia. Um bom uso do esqueleto… Deveríamos nos servir dele nos momentos difíceis, ainda mais que o temos à mão.” CIORAN, “Paléontologie”, Le mauvais démiurge, op. cit., p. 1198.

[44] Ibid., p. 1201.

[45] ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P., “Budismo”, in Dicionário das religiões. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 75;

[46] Ibid., p. 75.

[47] CIORAN, Cahiers : 1957-1972, p. 533.

[48] CIORAN, “Obsessão do Essencial”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 110-111.

[49] CIORAN, Do inconveniente de ter nascido, p. 150.

[50] CIORAN, “Confissão resumida”, Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 151.

[51] CIORAN, Cahiers : 1957-1972, p. 308.

[52] Ibid., p. 357.

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Um comentário em ““Paleontologia”, de Cioran: uma meditação ascética sobre a carne e o esqueleto – Rodrigo Menezes”

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