“E il naufragar m’è dolce in questo mare”
LEOPARDI, “L’Infinito”
Para dar voz às suas experiências capitais e “obsessões essenciais”, Cioran amiúde recorre a metáforas teológicas e mitológicas, a uma linguagem metafísica, religiosa e/ou mística: “o mau demiurgo”, “a Criação fracassada”,[1] “Queda” (no tempo, do tempo), “despertar” (éveil), “nostalgia” (de um “Paraíso” ou Absoluto perdido[2]), “dilaceração”, despedaçamento” (Écartèlement), “êxtase da existência pura, das raízes imanentes da vida”, “êxtase como exaltação na imanência, como iluminação neste mundo, como visão da loucura deste mundo” (Nos cumes do desespero), “lucidez como equivalente negativo do êxtase”, “o olho do Conhecimento” (Le mauvais démiurge), “Deus”, “Deidade/Divindade” (Breviário) e “essência de Deus” (Le mauvais démiurge), “o Nada”, “Vazio” e “Vacuidade”, “o Invisível” (La chute dans le temps), “o Indestrutível” (História e utopia), “o Essencial” (Breviário). Em “Paleontologia”, importante ensaio acerca da libertação (délivrance) a meio-caminho entre a gnose e o budismo (tardio, escola Madhyamaka), Cioran diz que a carne é “não apenas uma sede de doenças, mas ela mesma doença, um nada incurável, ficção degenerada em calamidade. A visão que tenho dela é a de um coveiro empestado de metafísica” (Le mauvais démiurge).
“O Essencial” (com maiúscula), tema de um dos textos do Breviário de decomposição (“Obsessão do Essencial”), parece coincidir com a concepção de το τιμιοτον (to timiotaton, “o que mais importa”) que Chestov, um dos filósofos prediletos de Cioran,[3] retoma de Plotino.[4] “O Essencial” é representado por Cioran em chave mística apofática (negativa): um “espaço sem horizonte” no qual já não há perguntas nem respostas, uma irrealidade improvável na qual já não se “tropeça em nenhum objeto, apenas no obstáculo difuso do Vazio” (Breviário, 2011, p. 108-109). É possível entendê-lo, em chave budista, como pertencente à esfera das verdades superiores,[5] para empregar a distinção (acolhida por Cioran) entre “verdades de erro” (samvriti, ligado a samsara) e “verdades verdadeiras” (paramartha). Se partirmos da clássica metáfora, analisada por Hans Blumenberg,[6] da navegação temerária e do eventual (provável) naufrágio que dela resulta, o Essencial seria um “espaço” sem contornos nem limites, indeterminado e virtualmente infinito, inóspito e “irrespirável”. O Essencial, segundo Cioran, nos põe na pista de um horizonte de pensamento e espiritualidade helenísticos, a meio-caminho entre ceticismo, neoplatonismo e gnosticismo.[7]
A navegação – temerária ou prudente – é uma metáfora que se faz presente nos textos de inúmeros filósofos, poetas e escritores, de Platão a Epicuro, de Pascal a Leopardi, de Nietzsche a Cioran. Encontramo-la também em Philipp Mainländer: “Na filosofia, isto é, na reta filosofia, só é possível navegar perto do litoral: a experiência tem de ser sempre visível. Quem deixa que o seu barco rume somente em direção ao ‘oceano ilimitado’, expede com as suas próprias mãos a sua sentença de morte como filósofo.”[8] Isso não deixa de soar bastante kantiano. Ora, não é outra coisa que a genealogia da obra de Cioran – “Antifilósofo”, “Pensador de ocasião” – parece descrever, como se fosse um longo “Adeus à filosofia” (que começa Nos cumes do desespero, apesar de o texto assim intitulado pertencer ao Précis). A julgar pelo seu primeiro livro, ainda em romeno, é como se a lucidez insone de Cioran “dissolvesse” toda “terra firme”, todo “porto seguro”, e a experiência de sua leitura fosse não tanto como uma “navegação” em “mar aberto”, em “águas profundas”, mas uma “deriva” em meio à tormenta, sem perspectiva de avistar, no horizonte, um porto seguro ao qual retornar. A exemplo do sugestivo título de um livro de poemas de Manoel de Barros, Gramática expositiva do chão, o que toda essa metafórica marítima busca significar é, inversamente, e empregando um jargão filosófico, a ausência de fundamento e de substrato do ser (que se funda sobre nada e não é, segundo Cioran, senão uma pretensão do nada em querer tornar-se algo). Poder-se-ia falar, a propósito de Cioran, de uma Gramática expositiva do abismo:
Após a publicação do Breviário em espanhol, dois estudantes andaluzes me perguntaram se era possível viver sem fundamentación. Respondi-lhes que era verdade não ter encontrado nunca uma base sólida em lugar nenhum e, no entanto, ter conseguido subsistir porque, com os anos, a gente se habitua a tudo, até a vertigem. E depois não estamos despertos e não nos interrogamos o tempo todo, sendo a lucidez absoluta incompatível com a respiração. Se estivéssemos, a cada momento, conscientes do que sabemos, se, por exemplo, a sensação da falta de fundamento fosse ao mesmo tempo contínua e intensa, cometeríamos suicídio ou cairíamos na idiotia. […] À minha maneira, devo ser um lutador, já que não sucumbi às minhas ruminações.
Exercícios de admiração, 2011, p. 156
Cioran parece ter plena consciência do caráter desanimador, para dizer o mínimo, de sua “visão das coisas”. Ele sabe muito bem, como demonstra a citação acima, que a sua perseverança na vida depende de uma infidelidade prática (o “esquecimento”) em relação aos seus próprios princípios e convicções: viver é compactuar com a farsa universal. “Ser cego ou perecer:[9] não há outra escolha. Semelhante aos que descobrem a vida pelo caminho transviado da morte,[10] precipitar-me-ei sobre o primeiro engano, sobre tudo o que possa lembrar-me o real perdido” (A Tentação de existir, p. 181). Se, a julgar por Mainländer (filósofo alemão herdeiro de Schopenhauer e de Kant), a “reta filosofia”, sempre prudente, limita-se à navegação costeira, sem distanciar-se do continente, sem nunca perder de vista o “porto seguro”, Cioran dá “Adeus à (reta) filosofia” por sua inclinação temerária a “navegar” – ou simplesmente abandonar-se à deriva – sem condições mínimas de visibilidade nas águas profundas e insondáveis do “Essencial”; atraído pelo longínquo e pelo inóspito enquanto tais, deixa-se arrastar pelas correntezas do Indeterminado, sucumbe à tentação de perder-se e naufragar na “imprecisão do Essencial”…
Só prosperam em filosofia os que se detêm no momento oportuno, os que aceitam a limitação e o conforto de um grau razoável de inquietude. Todo problema, quando se toca seu fundo, leva à bancarrota e deixa o intelecto a descoberto: […] Infeliz daquele que, chegado a um certo momento do essencial, não se deteve! A história mostra que os pensadores que subiram até o final pela escada das perguntas, que puseram o pé no último degrau, o do absurdo, só legaram à posteridade um exemplo de esterilidade, enquanto que seus colegas, que pararam no meio caminho, fecundaram o curso do espírito; serviram a seus semelhantes, transmitiram-lhes algum ídolo bem trabalhado, algumas superstições polidas, alguns erros disfarçados de princípios e um sistema de esperanças.
“Obsessão do Essencial”, Breviário de decomposição, 2011, p. 109.
Aqui, Cioran descreve um itinerário espiritual que lhe é familiar, um “itinerarium mentis in nihilum” (Volpi) que, levando para fora da vida (entendida como um sistema de ilusões, a totalidade da Ilusão), não poderia deixar de evocar metáforas como “naufrágio”, “bancarrota”, “fracasso”, “desastre”. A lucidez é uma estranha volúpia, próxima da vertigem – algo que Liliana Herrera captou muito bem, desde o subtítulo do seu livro sobre Cioran: lo voluptuoso, lo insoluble. Eis o itinerário da lucidez cioraniana, da ilusão desmanchada pelo ennui ao vazio da nudez primordial: “Um grão de clarividência nos reduz à nossa condição primordial: a nudez; uma ponta de ironia nos despe desse disfarce de esperanças que permite que nos engamos e imaginemos a ilusão: todo caminho contrário leva para fora da vida. O tédio [ennui] é apenas o começo desse itinerário…” (Breviário, 2011, p. 27) Mas Cioran hamletiza – vacila, flutua, transita entre o Essencial e o inessencial, entre “verdades irrespiráveis” e “superstições salutares” (Écartèlement, Œuvres, 1995, p. 1415), o desespero e a frivolidade. É um veleidoso do Essencial: “Os que não permanecem no interior da realidade que cultivam, os que transcendem o ofício de existir devem ou pactuar com o inessencial, voltar atrás e integrar-se na eterna farsa, ou aceitar todas as consequências de uma condição separada, e que é superabundância ou tragédia, conforme a olhemos ou a soframos” (Breviário, 2011, p. 110-111).
Pela ótica metafórica da navegação temerária e o seu desenlace negativo (“naufrágio”), a carreira na heresia (que é a carreira da doença: ennui, nostalgia, ansiedade, insônia) conduzirá a um paradoxal fracasso (ratage), do qual Cioran – enfatuado com a certeza do seu nada – terminará por orgulhar-se. O ennui é só o começo desse itinerário… Desequilibrado por “decreto divino” ou pelo acaso da “química demente”, O Fracassado cioraniano é um “metafísico involuntário”,[11] uma existência “condenada” à interioridade e à profundidade, à desilusão (logo, à lucidez). O Fracassado é uma figura da heresia como destino temerário da lucidez (proporcional à “consciência da infelicidade”[12]). “O fracasso é o paroxismo da lucidez; o mundo se torna transparente para o olho implacável do fracassado, para a sua sensibilidade apática e inaderente. Um fracassado sabe tudo, mesmo sendo inculto”, escreve o jovem Cioran em Lacrimi şi Sfinţi (Lágrimas y santos, 2017, p. 152), sem dúvida prefigurando o “olho do Conhecimento” tematizado em Le mauvais démiurge, que “até um iletrado pode possuir, situando-se desta maneira acima de qualquer savant” (Œuvres, p. 1199). Substituamos “o fracassado” por “homem lúcido”: “Um homem lúcido mede suas ‘febres’ a cada passo, espectador de suas próprias paixões, sempre sobre os seus traços, abandonando-se equivocamente às invenções de sua tristeza. Na lucidez, o conhecimento é uma homenagem à fisiologia” (Amurgul gândurilor). Numa entrevista, já ao final da vida, Cioran dirá que “o bem-sucedido em tudo é necessariamente superficial. O fracasso é a versão moderna do nada. […] Ao ser perfeitamente sadio física e psiquicamente, falta um saber essencial. Uma saúde perfeita é a-espiritual”, afirma ele a Sylvie Jaudeau (Entrevistas com Sylvie Jaudeau, p. 18). Por fim, refletindo sobre um “horror impreciso” que seria ainda mais nocivo para a vitalidade do que a doença (“que é luta”, atividade, dinamismo), o autor do Breviário afirma que “o equilíbrio orgânico é incompatível com a profundidade interior. […] Só é saudável em nós aquilo pelo que não somos especificamente nós mesmos: […] Só somos nós mesmos pela soma de nossos fracassos” (Breviário de decomposição, 2011, p. 82-83).
Um dos traços distintivos do pensamento cioraniano, pelo qual ele se distancia do existencialismo francês, se dá a conhecer através dessa “obsessão do Essencial” fadada ao fracasso, e que não carece de relação com a “tentação religiosa de irreligiosidade” inscrita no Breviário (Breviário de decomposição, 2011, p. 44), ou com essa “paixão do absoluto” (ou do nada) numa alma cética, à qual Cioran se refere em Lacrimi şi sfinţi (Lágrimas y Santos, 2017, p. 143). Para Cioran, parecer haver uma “fatalidade essencial” que precede a existência, um “impulso para o pior” (Do inconveniente de ter nascido) que faz de toda existência uma existência natimorta. A “obsessão do Essencial”, como se pode constatar por este mesmo texto e outros (como “As duas verdades”, de Écartèlement), não é senão a obsessão do Vazio, desse nada fundamental que se interpõe, como se lê em “Paleontologia” (de Le mauvais démiurge), entre a carne e o esqueleto: entre nós e nós mesmos. O pensamento de Cioran não se configura como um “existencialismo”; não é um simples humanismo, nem um simples ateísmo. Encontramos, em vez disso (e este é o seu “desvio temerário”), um niilismo místico da inexistência, o que situaria Cioran, uma vez mais, a meio-caminho entre o Ocidente cristão ou gnóstico e o Oriente budista.
Peter Sloterdijk interpreta o seu pensamento como um “inexistencialismo da incurabilidade, dotado de tons cripto-romenos e dácio-bogomilos.”[13] Esta representação é altamente significativa e fecunda tendo em vista os nossos propósitos hermenêuticos. Em seu intuicionismo criativo, Sloterdijk cunha o neologismo “inexistencialismo” para singularizar o niilismo místico de Cioran. Outro mérito da sua exegese é a atenção dada à especificidade genética (“dácio-bogomila”) do pensamento cioraniano, cujo fundus animæ é balcânico, romeno, transilvano. Mais de cinquenta anos antes (em dezembro de 1950), Ştefan Baciu[14] escrevia, no Diário Carioca, por ocasião do prêmio Rivarol concedido ao Précis: “Cioran, como Anti-Tudo, é naturalmente também um grande antiexistencialista.”[15] Por fim, Mario Andrea Rigoni também captou o contraste irredutível entre Cioran e o assim-chamado existencialismo, tão em voga na França e na Europa da segunda metade do século XX, saudando o autor romeno como L’Anti-Sartre.[16] O pensamento de Cioran não é um existencialismo porque, em seu niilismo místico, transcende o existencial, em sua finitude e determinação, em direção ao infinito e ao indeterminado (o apeiron, para falar como Anaximandro), por transcender o “horror do já visto, do sabido desde sempre”, em direção à visão inaudita e reveladora do êxtase (Bréviario, 2011, p. 121).
Cioran representa a si mesmo como um “animal religioso incompleto” que, não obstante, padece “duplamente de todos os males” (Breviário, 2011, p. 175). Religioso pela nostalgia, pela paixão (cética) do absoluto ou do nada – e “incompleto” pelas mesmas razões. Ele se assume como “Antifilósofo” após concluir que é “impossível descobrir em Kant e em todos os filósofos alguma fraqueza humana, algum acento de verdadeira tristeza”, porque, “comparada à música, à mística e a poesia, a atividade filosófica provém de uma seiva diminuída e de uma profundidade suspeita que guardam prestígios somente para os tímidos e os tíbios” (Breviário, 2011, p. 68-69). O “Pensador de ocasião”, que abomina toda ideia indiferente, fala assim: “Nem sempre estou triste, logo não penso sempre”; “A tristeza é a poesia do pecado original”, e “feliz daquele que pode dizer: ‘Tenho o saber triste’” (Breviário, 2011, p. 127, 175, 183). Não se pode ignorar, como bem observa Sylvie Jaudeau, a pulsão metafísica e o pathos místico que animam o pensamento negativo de Cioran, por mais antimetafísico que possa parecer – e que de fato seja, a julgar pelo paradigma do metafísico. A Negação cioraniana é ao mesmo tempo criadora e libertadora (“terapêutica” num sentido profundo e filosófico, para além da acepção clínica do termo): um exercício espiritual (askesis) que pretende “dar em algo”.
A carreira na heresia de Cioran, da qual a Confissão resumida é um atestado inequívoco, descreve o itinerário de um pensamento insone e temerário às voltas com essa “obsessão do Essencial”, de um pensamento místico (negativo) que transcende o existencial em direção ao Absoluto ou ao Vazio, enfim, de um pensamento filosófico-religioso (heterodoxo) que parece situar-se nalgum lugar entre as filosofias helenísticas “crepusculares”, a heresia gnóstica e o budismo tardio. A obra de Cioran, uma autobiografia espiritual disfarçada (ou nem tanto[17]), narra o drama e a odisseia de uma lucidez insone, desesperada, em busca de repouso e tranquilidade (eis a toda “salvação”), o “despertar” (éveil) do espírito “no fundo de um inferno no qual cada instante é um milagre” (Le mauvais démiurge, Œuvres, 1995, p. 1259). Cioran é um “animal religioso incompleto que padece duplamente de todos os males” porque, se possui a consciência da Queda e o pathos nostálgico de um “Paraíso perdido”, não possui, entretanto, a fé cristã representada pela figura do seu pai, sacerdote (e que muitas vezes lhe parece ser, compreensivelmente, o único caminho em direção a Deus[18]). Essa incompletude, que assinala em um primeiro nível de leitura a carência da fé cristã, parece ocultar, em um nível subjacente, uma autodeterminação positiva, em termos da imagem que Cioran tem de si mesmo, que tende a apagar-se através da aparência do mais inequívoco niilismo e do mais inconsolável dos pessimismos; a autodeterminação de um filósofo religioso “crepuscular”, de um “metafísico involuntário” e sem sistema, de um místico heterodoxo, meio gnóstico, meio budista, o místico de uma lucidez como “equivalente negativo do êxtase” (Le mauvais démiurge). Paradoxalmente, ela faz de Cioran (espírito da dualidade) um pensador duplamente herético: herege entre os hereges, como bem observou Seligson, um gnóstico “antignóstico”, sem gnose nem salvação. Para Cioran, a heresia é dissidência e ruptura em relação a si mesmo, à “ortodoxia do eu”, com seus “dogmas inconscientes” (Breviário), mais do que em relação a uma ortodoxia religiosa ou política (isso também). Segundo Sylvie Jaudeau, “Cioran chega a voltar-se contra suas tendências e a recusar a própria gnose quando esta parece proclamar mais a possibilidade de uma saída”.
Poderíamos falar a seu respeito de um gnóstico envenenado por uma lucidez que nega a fé e a salvação. Um gnosticismo sem deus, que despreza a luz e o além-mundo, afirmando-se na mais completa derrelição, enfim, ainda mais gnóstico, pois ainda mais dolorosamente consciente do exílio. […] Cioran, herdeiro do cristianismo, mas admirador das filosofias orientais, lança uma ponte entre duas tradições, o culto cristão da mortificação da carne e o respeito do corpo da tradição oriental. Rejeitando uma herança que o tinha moldado, mas inadequado para a espiritualidade contemporânea, ele tende para novos horizontes espirituais que, infelizmente, não pode integrar de maneira total.[19]
JAUDEAU, Cioran ou le dernier homme (1990)
Enfim, uma das maiores dificuldades hermenêuticas, a propósito de Cioran, é compreender a distância que há entre a crença de que os grandes problemas da existência são insolúveis e o mais puro irracionalismo. Outra é entender que o místico-religioso, em Cioran (no que concerne à experiência individual do autor, às suas obsessões essenciais), não tem nada a ver com a religião e com a fé cristãs, com a esperança da salvação da alma (imortal) após a morte, tal como ensinado pelo cristianismo ortodoxo do seu pai, no catolicismo romano e nas diversas denominações protestantes. O princípio de heresia cioraniano se manifesta na indeterminação constitutiva da sua obra, entre filosofia, poesia, religião e mística – uma indeterminação que pode remeter tanto ao horizonte helenístico da Antiguidade tardia como ao romantismo do século XVIII. Uma vez mais, impõe-se o to timiotaton de Chestov (a partir de Plotino), uma chave de compreensão confiável da “obsessão do Essencial” cioraniana. O que mais importa seria a “trindade perdida do Romantismo” a que se refere Leo Gilson Ribeiro, em entrevista com Eugène Ionesco, para o Jornal do Brasil, em novembro de 1960: “o bloco indissolúvel Religião-Filosofia-Arte”. Ionesco responde: “É possível, porque a Arte deve servir a uma comunidade de forma total e porque a Arte é, antes de mais nada, uma unidade ou a descoberta de uma unidade perdida.”[20] Cioran sente que essa unidade não foi perdida no Oriente, enquanto se lamenta pelo racionalismo do Ocidente que não faz senão erigir uma “feira” de novos ídolos sobre os cadáveres dos deuses defuntos. Concluamos com as palavras finais de “Paleontologia”, onde “o essencial” tornará a ser tematizado:
Diz-se no Katha-Upanishad, a propósito do atman, que ele é “alegre e sem alegria”. Eis um estado a que se acede tanto pela afirmação de um princípio supremo quanto pela sua negação, tanto pelo desvio do Vedanta quanto pelo do Mahayana. Por mais distintas que sejam, as duas vias se encontram na experiência final, no deslizamento para fora das aparências. O essencial é menos uma questão de saber em nome de quê se deseja libertar-se do que de saber até onde se pode avançar no caminho da libertação. Quer nos dissolvamos no absoluto ou no vazio, é, em todo caso, uma alegria neutra a que aspiramos: alegria sem determinação nenhuma, tão desnuda quanto a ansiedade, contra a qual pretende ser o remédio, mas da qual não é senão a culminação, a conclusão positiva.
Le mauvais démiurge
MENEZES, Rodrigo Inácio R., “‘Obsessão do Essencial’: navegação temerária, naufrágios e horizontes de libertação em Cioran”, Portal E.M. Cioran Brasil, 4/12/2021.
NOTAS:
[1] Die verfehlte Schöpfung [A Criação fracassada], título de Le mauvais démiurge em alemão que, por sinal, muito agradou ao seu autor: “Eu me interessei pela Gnose, é evidente. Disso resultou um livrinho, Le mauvais démiurge, cujo título em alemão, Die verfehlte Schöpfung (La Création ratée), me agrada. Não se pode imaginar o Criador senão como malfeitor ou, no mínimo, incompetente. Esta concepção, após um eclipse de alguns séculos, retorna hoje com força. Mas eu não careço de humor a ponto de me erigir em teólogo.” (Entretiens, p. 157).
[2] “Eu não sou daqui; condição de exilado em si; em nenhum lugar estou chez moi – não-pertença absoluta ao que quer que seja. O paraíso perdido – a minha obsessão de cada instante.” (Cahiers, p. 19)
[3] Relembrando os seus anos romenos, Cioran diz a Lea Vergine que na juventude “lia Buda, eu tinha uma antologia budista em alemão, era o meu livro de cabeceira, que eu lia antes de dormir. […] O meu filósofo de cabeceira era Chestov, um judeu russo que teve certa influência na França antes da guerra. O seu discípulo, Fondane, um judeu romeno, era o meu melhor amigo…” (Entretiens 133-134)
[4] “Já tive a ocasião de apontar que em Plotino encontramos a melhor, ou antes, a mais completa definição da filosofia. À pergunta: o que é a filosofia? – ele responde: το τιμιοτον (o que mais importa).” CHESTOV, Leão, As revelações da morte, p. 55.
[5] Trata-se de uma distinção de inspiração budista acolhida por Cioran entre “verdade de erro” (samvriti, ligado a samsara) e “verdade verdadeira” (paramartha). Essa teoria das duas verdades já aparece incipientemente em “Paleontologia”, Le mauvais démiurge (1969), e será explicitamente formulada, tendo o budismo tardio (escola Madhyamika) como fonte, dez anos depois em Écartèlement (1979).
[6] “O homem conduz sua vida e ergue suas instituições sobre terra firme. Todavia, procura compreender o curso da sua existência na sua totalidade, de preferência, com a metáfora da navegação temerária.” BLUMENBERG, Hans, Naufrágio com espectador: paradigma de uma metáfora da existência, p. 21.
[7] Não que o conjunto de perspectivas e horizontes de pensamento que conformam a obra de Cioran se limitem ao universo helenístico, ou ao mundo ocidental (judaico-cristão, greco-romano). Ele também se abre para uma pluralidade de perspectivas assimiladas da cultura oriental: budista, taoísta, hindu. Entretanto, é conhecida a afinidade eletiva de Cioran com o mundo helenístico e essas “filosofias crepusculares” que, segundo ele, dão o tom nesse contexto da Antiguidade tardia: “Entre os filósofos só interessam aqueles que, já não tendo o que pensar, partiram em busca da felicidade. Assim surgem as filosofias crepusculares, mais consoladoras do que as religiões, pois nos libertam de toda a proibição. Deles emana um doce cansaço, no qual repousamos como um leito macio de dúvidas. Com Epicuro, os pensamentos voam levemente sob as palmeiras, e o céu é como o leque que mantém frescas suas incertezas. Os filósofos crepusculares – demasiado cheios de sombras para ainda acreditar no que quer que seja – nos embalam como um mar que se recusou a afogar-nos. Seu sorriso esboça esse higiênico tudo é permitido, tão necessário após os envenenamentos e restrições dos santos. Essas dúvidas aromáticas e envolventes, quando gostaríamos de morrer felizes à sombra de um sorriso!” (Lágrimas y Santos, 2017, p. 67)
[8] MAINLÄNDER, Philipp, “Prólogo”, Filosofía de la redención (antología), p. 45.
[9] No original francês: Être dupe ou périr, “estar enganado ou perecer”, em que o adjetivo dupe, do substantivo duperie, designa uma pessoa que é iludida ou ludibriada mais ou menos facilmente, ou que se deixa facilmente enganar.
[10] Muito embora a tradução portuguesa de A Tentação de existir (Relógio D’Água, Lisboa, 1988) seja no geral muito boa, ela peca nesta passagem ao traduzir par le détour de la mort (literalmente “pelo desvio da morte”) como “pelo caminho transviado da morte”, o que lhe imputa uma conotação moralmente depreciativa que não está contida no termo original: détour. Não se entende como détour possa traduzir-se por “caminho transviado”: que “se transviou” ou “afastou-se do caminho certo” (ex.: juventude transviada). Não há nada de “transviado” ou “imoral” neste détour de la mort em vida e, a julgar pelo horizonte hermenêutico estendido de Cioran (entre Ocidente e Oriente), diríamos inclusive (em diálogo com as vertentes budistas às quais Cioran remete o seu pensamento) que não há nada de “niilista” nisso.
[11] “Acesso involuntário a nós mesmos, a doença nos obriga à ‘profundidade’, nos condena a ela. O doente? Um metafísico involuntário.” (Silogismos da amargura, 2011, p. 109).
[12] Título do texto do Breviário, citado anteriormente, a propósito da incurabilidade do animal enfermo: “Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados; mas, quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registros do Incurável” (Breviário de decomposição, 2011, p. 46).
[13] SLOTERDIJK, Peter, “Cioran ou l’excès de la parole sincère”, Cahier L’Herne Cioran, p. 234.
[14] Como se descobre pelo artigo, Ştefan Baciu (1918-1993), apenas 7 anos mais novo que Cioran, foi seu aluno na breve experiência que este teria, na cidade de Braşov (ainda “nos cumes do desespero”, por causa da insônia), como professor de um importante liceu (Gheorge Lazar). Como Cioran, Baciu é um expatriado romeno, mas, à diferença do professor de liceu tresloucado e cativante, acabaria conseguindo asilo no Brasil (onde desembarcou em 1949). Baciu construiria uma importante carreira jornalística e cultural no Brasil, tendo trabalhado no jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Ao final da vida, mudou-se para o Havaí, onde viveu pelo resto da vida.
[15] BACIU, Ştefan, “Prix Rivarol 1950”, Diário Carioca, 3 de dezembro de 1950, p. 6.
[16] RIGONI, Mario Andrea, “E. M. Cioran. La rivincita dell’anti-Sartre”, Corriere della Sera, 28 de fevereiro de 2011, p. 35.
[17] Entendemos que a obra de Cioran se inscreve, como um conjunto de exercícios espirituais heterodoxos, no interstício de uma tradição filosófica que seria comum aos gêneros das Confissões e dos Ensaios indistintamente (gêneros discursivos de cunho mais “existencial” do que os tratados e sistemas filosóficos). Parafraseando Harold Bloom, diríamos que a obra de Cioran é uma autobiografia espiritual, uma “canção (elegíaca) do eu” (a song of the self). BLOOM, Harold, Presságios do milênio: Anjos, sonhos e imortalidade, p. 20.
[18] “Que lástima que para chegar a Deus tenha que se passar pela fé!” (Silogismos da amargura, p. 68)
[19] JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme, p. 98.
[20] RIBEIRO, Leo Gilson, “Brecht é discípulo de Piscator. Entrevista com Ionesco”, Suplemento Dominical do JB, Jornal do Brasil, 5/6 de novembro de 1960, p. 17.