“Prix Rivarol 1950” – Ștefan BACIU

Diário Carioca, Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 1950

Foi em Setembro de 1936 que entrou na nossa sala de aula um jovem professor de filosofia. Estavamos no último ano de estudos no célebre e antigo liceu em uma das mais lindas cidades de província, na Rumânia. Parece, porém, que um século da ruiva passou através do país, pois tudo foi destruido em minha pátria. Arrancaram da fachada da escola o nome do honrado bispo e barão, os alunos foram espalhados aos quatro ventos, alguns até se apressaram em seguir o caminho que leva para debaixo da terra. Mesmo o nome da cidade — Brasov —foi trocado pelo de Stalin — quer dizer a Ouro Preto romena não mais se chama assim como o determinaram Deus e a história.

Estamos, porém, em setembro de 1936. O professor de filosofia com um topete louro-acastanhado e olheiras profundas, tão jovem que parecia um colega mais idoso, estava à nossa frente, algo hesitante e surpreso. Era Emil Cioran — e para alguns de nós o seu nome já significava alguma coisa. O nosso novo professor destacou-se dos jovens pensadores que conquistaram um nome a partir de 1930. Embora houvesse outros excelentes, como Constantin Noica e Stefan Teodoresco, que era profundamente ligado à obra de Descartes, Emil Cioran tornou-se, pelos seus sons patéticos, o mais original e o mais talentoso de todos. Os grandes pensadores ortodoxos da Rumânia, que foram também seus mestres, não conseguiram aplacar-lhe a sêde da tragédia da verdade e do saber e, assim, resolveu Cioran seguir caminhos desconhecidos. Os filósofos da universidade entraram quase todos em conflito com o novo pensador, com exceção talvez do “Mefista” — Nae Ionesco, um Léon Bloy romeno-ortodoxo, misturado com Pascal, que ousou afirmar a alguns dos seus alunos: “Estou firme e seguro com ambos os pés no torrão de nosso Barragan e cuspo entre os olhos de Descartes!”. Os outros, os “bons” pensadores e professores nada significavam para o jovem iconoclasta. Em 1934, o primeiro livro de Cioran foi distinguido com o grande prêmio das “Fundações Reais para literatura e arte”. Lembro-me bem que se notaram nos bastidores da alta instituição alguns casos de “desmaio intelectual”. O livro, intitulado “No auge do desespero”, foi, porém, recebido tempestuosamente.
Através dele, um jovem de espirito metafisicamente atribulado falou pela primeira vez uma nova linguagem, — sem exagero “no auge do desespero”. Vida e morte, amor e existência, tudo foi estraçalhado, revolvido e apregoado, para restar somente a verdade nua e assustadora. Cioran falou com Deus e com a natureza como se eles fossem seus devedores, sacudiu os conceitos antigos, bem conhecidos, e não receou empregar na sua obra as palavras mais duras. Os honrados senhores entreolharam-se assustados e desajeitados: “Como é possível que o filho de um pároco trate tão grosseiramente as noções mais sagradas?” Cioran, porém, estava muito acima deles, e procurou a salvação na música, na insônia e na loucura.

Creio, hoje em dia, poder afirmar que, em pouco tempo, travei amizade com o professor de filosofia — fora das relações de mestre e aluno. Ambos, atormentados pelos nossos demônios interiores, permanecíamos inclinados, durante dias inteiros, sobre os nossos autores preferidos (na sua última obra, Cioran menciona alguns: Kleist, Cérard de Nerval, Otto Weininger) e os discutiamos em seguida, durante horas e dias, em “reuniões” sem fim, num “café”, ou em longos passeios, sob o céu semeado de estrelas. Outrora —como agora — Cioran era um “Anti-Tudo”: antifilósofo — isso em primeiro lugar — anticlerical, anti-humano e anti-heróico. Falavamos sobre Kirkegaard, Windelband, e também sobre Hoelderlin, Novalis e o nosso “velho Unamuno”, sobre Max Stirner e Paul Valéry. Aprendi, naqueles dias, multa coisa com o meu amigo-professor, cujas noites de insônia faziam-me pensar várias vezes nos chinelos de Empedocle. Afigura-se-me, porém, só agora, que se formou naquela época na cidadezinha romena, a primeira base do existencialismo filosófico. Cioran, como Anti-Tudo, é naturalmente também um grande antiexistencialista . Esta opinião, absolutamente pessoal, não modifica, porém, em coisa alguma a situação. Se a lingua romena não fosse uma das que, na Europa e no mundo, possuem importância apenas local, a humanidade já teria ouvido falar, muitos anos antes de Sartre, sobre uma filosofia que pode ser chamada de existencialista. Quando Cioran publicou os seus livros “Lágrimas e Santos” e “Mudança da Fisionomia da Rumânia” Jean Paul Sartre tinha chegado apenas a “Le Mur”. As duas obras citadas são — sem exagero — as primeiras palavras de um novo modo de pensar na filosofia européia. Como, porém, Cioran é às vezes também muito Anti-Cioran, duvido que estes livros cheguem a ser traduzidos.

Em 1940, Cioran viajou para Paris, a fim de dedicar-se aos estudos e, na grande desordem causada pela guerra, perdi inteiramente a sua pista. Estava, porém, firmemente convencido, durante esta dezena de anos, de que Emil Cioran não poderia calar-se.

Prestei atenção, aqui no Rio, quando um repórter literário informou de Paris que um livro do romeno E. M. Cioran obtivera um grande sucesso. Frequentemente o mundo parece urna pequena aldeia, e o livro de Cioran chegou depressa às minhas mãos: “Précis de décomposition”, N. R. F., da Gallimard-Les Essais, XXXV. O poeta e pensador estava — no meio da Europa — novamente no “auge do desespero” e derramou nele tanta melancolia que o poeta Augusto Frederico Schmidt escreveu num excelente artigo que o livro do Cioran é o mais horroroso que ele já leu. E realmente é assim! Para mim, porém, isso não significa outra coisa senão o encontro com o espírito construtivo da desordem universal, do cáos lírico do nada e do tudo. Iwan Karamazoff e Zarathustra falam destas páginas com uma força e com um impulso que se originam dos profetas: o filho do paróco prega a sua religião! Um filósofo? De maneira alguma! “Desviei-me da filosofia no instante em que não me foi possível encontrar uma fraqueza humana, um som de profunda tristeza, em Kant e nos outros filósofos. Quase todos eles terminaram bem, e este o maior argumento antifilosófico”. Torna-se, porém, um filósofo, quando afirma: “Desde Beethoven a música se dirige aos homens: antes dele ela só falava a Deus. Bach e os grandes italianos não conheceram este deslizar ao homem, o falso titanismo —que desfigura a arte mais pura — desde o Surdo”. Nas suas noites de eterna insônia Cioran despediu-se de tudo e ficou nu diante de si mesmo. Contemplando-se minuciosamente exclamou: “Seja para sempre maldita a estrela sob a qual nasci, que nenhum céu a proteja, que ela desapareça do universo como um grão de poeira inquieta. E o instante traidor que me arremessou entre os homens seja para sempre apagado do rol dos tempos”.

Quem fala assim? Mamon on Deus? Quem clama assim? Hamlet ou Raskolnikoff? Quem se queixa assim? Smerdiakoff ou Werther? Quem acusa assim? o louco Nietzsche, o anti-homem, ou é somente a nossa própria voz, que se reconheceu num único momento? Quero dar a resposta a Cioran: “Odeio a vida muito amada!”

O”Prix Rivarol” é o maior premio literário da França, conferido anualmente a autores cuja lingua materna não seja o francês. Em 1950 concorreram nada menos de 128 autores, de mais de 30 países. O globo terrestre estava bem representado e o “juri era brilhante: André Gide, Jean Schlumberger, Gabriel Marcel, para citar somente os maiores nomes. E foi E. M. Cioran quem recebeu a grande honra entre os quase 130 livros: “Prix Rivarol de 1950”. Literariamente falando, trata-se de um sucesso mundial esplêndido. A Rumânia, a Rumânia atormentada, consegue de novo falar… Interrogo-me somente se Cioran, com os apertos de mão e as fotografias para a imprensa, não se recolheu profundamente em si mesmo e ficou mortalmente aflito por causa dos louros que coroam somente monumentos, túmulos e clássicos. O meu professor do filosofia do ano de 1935 disse uma vez aos alunos: “É uma vergonha ser laureado”. Sim, mas sobre a vergonha do absoluto resta a vitória do perfeito.

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