
“Cioran – desespero, instruções de uso“. A revista francesa Magazine Littéraire dedicou o seu número de de maio de 2011 a Emil Cioran, no centenário do seu nascimento. O dossiê, organizado por Maxime Rovere, intitulado Cioran – désespoir, mode d’emploi, apresenta diversos artigos sobre o filósofo romeno radicado na França. [PDF]
Entre os autores relacionados, estão Patrice Bollon (Cioran, l’heretique, 1997), Peter Sloterdijk, Nicolas Cavaillès (Cioran, le corrupteur corrompu, 2005), Simona Modreanu (Le Dieu Paradoxal de Cioran, 2003), entre muitos outros.
Trata-se do segundo dossiê da Magazine Littéraire dedicado a Cioran. O primeiro havia sido em dezembro de 1994, com o título: Cioran, aristocrate du doute (“Cioran, aristocrata da dúvida”). Abaixo, o texto introdutório deste novo dossiê, no ano do centenário de Cioran, escrito por Maxime Rovere, o organizador do número.
Cioran, cem anos de finitude
por Maxime Rovere
Enquanto os vendedores de felicidade invadem as livrarias, a obra de Cioran, nascido faz agora um século, confunde-nos e revela-se uma excepção: ensina-nos que o desespero, a angústia e a desordem valem bem mais do que a insaciável e aborrecida demanda da felicidade. O século XX mostrou-o bem: entre a inocência e o totalitarismo, entre o fanatismo e a atitude angélica, os entusiasmos de todos os tipos fizeram os humanos correr os maiores riscos logo que estes se convenceram de terem soluções e procuram impor normas de comportamento. A fim de nos precaver, Cioran passou a vida a explorar, com a minúcia de um geómetra, as zonas de sombra e as fendas: é aí que se encontram, mais modestas, mais humanas, mas não sem capacidade para fugir, para voar, aquilo a que chama «as ideias negras». Marcado pelos horrores e pelas errâncias do seu século, aos quais por um curto tempo aderiu num impulso que considerou o seu «pecado de juventude», Cioran tornou-se assim uma espécie de explorador às avessas: invertendo o caminho inventado por Platão, incarna a figura de um pensador conscientemente regressado à caverna, cuja voz, por vezes mordaz, outras vezes exaltante, nos chega das profundezas.
Por este motivo, ele é o primeiro e o único dentro do seu género. De fato, como já Susan Sontag e Peter Sloterdijk recordaram, a sua escrita está para além de uma certa maneira de filosofar: não se trata de articular ideias num sistema, nem de produzir conceitos. Pensar, para Cioran, significa antes definir uma certa posição (uma atitude, se quisermos) que testemunha menos a afirmação de um espírito do que as contradições de um ser singular diante da existência. É aqui que ele se reconcilia, de uma só vez, com uma tradição antiga da qual é, em determinado sentido, o derradeiro representante. Que o pensamento se torne principalmente prático, estilo de vida, projectado para além da ondulante fronteira colocada entre o público e o privado, esse foi um caminho percorrido desde Sócrates até Plotino que se esgotara no final da Antiguidade. Até mesmo na escolha da pobreza, na forma como procurou conservar-se à margem de qualquer profissão (mesmo a de escritor), encontramos em Cioran uma imagem moderna de Diógenes, reconhecível mas «adaptada», como nos filmes, à época contemporânea. A velha pipa abandonada na rua pode transformar-se numa bela mansarda.
No entanto, os Antigos procuravam a perfeição humana, o que Cioran jamais deseja: constrangido pela História, mostrou sempre sede de tudo, salvo de absoluto. Com mais confiança nos problemas do que na sua resolução, fez da escrita um outro terreno das suas experiências – o espelho no qual foi possível contemplar, corrigir e confirmar, por assim dizer, os contornos da sua atitude perante a vida. Na precisão do seu léxico, no timbre da sua sintaxe, na originalidade das suas «boas palavras», podemos erradamente encontrar um fascínio pelo «estilo», mas a verdade é que Cioran atravessou a época de todos os formalismos sem jamais renunciar a inscrever a literatura numa realidade existencial. Entre a escrita e a existência, porém, o decalque não é imediato: os livros de Cioran fornecem os meios de apreender a força das palavras de uma maneira nova, como um jogo que contém ao mesmo tempo o exercício mental e a experiência verbal. O suicídio, por exemplo, é nele, simultaneamente, um motivo literário e uma hipótese que ajuda a viver. Longe de indiciar um temperamento mórbido, esta escrita aponta para uma certa forma de verdade no interior da qual, tal como Nietzsche já tinha previsto, compete a cada um definir a sua própria medida.
Tradução de Rodrigo Menezes, 25/06/2011