Entrevista: “A aliança estratégica de Sloterdijk” – Ciro KRAUTHAUSEN

O fascismo midiático nos EUA não é um risco. É algo que já está aí. Do ponto de vista da teoria dos meios de comunicação, o fascismo é o monotematismo no poder. Se uma opinião pública se estrutura de tal maneira que a uniformização aumenta demais, temos um sintoma pré-fascista.

Peter Sloterdijk

Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 4 de maio 2003

Diálogo com um estudante alemão de marketing, de 23 anos: “Vou entrevistar um filósofo”. “Ah, é? Quem?”. “Peter Sloterdijk”. “Mas então não é um filósofo. É “o” filósofo”. O episódio, que arranca um sorriso do pensador, é eloquente: o autor da “Crítica da Razão Cínica” conquistou o status de estrela da mídia, pelo menos na Alemanha. Ele tem seu próprio programa de televisão (“O Quarteto Filosófico”) e é reitor de uma universidade especializada em design e novas mídias, em Karlsruhe.
Tudo isso contrasta com sua marginalização nos círculos da filosofia acadêmica, onde pouquíssimos o consideram digno de citação. Em 1999, Sloterdijk manteve um áspero confronto com Jürgen Habermas e muitos outros intelectuais por causa de um texto em que o primeiro postulara a inevitabilidade do melhoramento genético do ser humano (“Regras para o Parque Humano”). Para seus caluniadores, é pouco mais que um charlatão. Mas ele se defende nesta entrevista realizada em sua casa em Karlsruhe, uma cidade no sudoeste da Alemanha, onde nasceu há 55 anos.

O que separa o sr. do mundo acadêmico?

A partir do século 19 (pensemos em Kierkegaard, Schopenhauer ou Nietzsche), o mundo dos filósofos se divide entre aqueles que, como eu, buscam uma aliança com os meios de comunicação de seu tempo (naquela época, a literatura; hoje, a imprensa, o rádio e a televisão), e aqueles que não o fazem, apostando no clássico vínculo entre a universidade e as editoras de livros como seu único biótopo cognitivo.

Não será que seu método é muito mais associativo?

Não, não é isso. Eu sou um fenomenólogo e um narrador. Às vezes os filósofos acadêmicos me acusam de não argumentar em meus textos. Mas não é verdade. Em meus textos se argumenta, sim, mas de uma maneira diferente. De resto, os autores acadêmicos deveriam celebrar a revitalização de sua disciplina com uma terapia de células literárias frescas. O ressentimento não é bom conselheiro.

O sr. costuma alterar a acepção corrente e até acadêmica dos termos e criar palavras novas.

Toda arte se baseia nesses efeitos. Cada um trabalha com os elementos de que dispõe -o pintor, com cores e formas; o escritor, com conceitos e palavras-, e o trabalho consiste em inscrever novas possibilidades nesse material. Eu não utilizo uma linguagem usual. A maior parte da prosa acadêmica se constrói com componentes pré-fabricados, como estantes discursivas da Ikea que a própria pessoa monta. Meu intento é voltar a desenvolver uma sintaxe mais complexa, com um estilo mais verbal, menos nominal que o que predomina hoje na ciência.

Seu livro “Esferas”, em que o sr. indaga sobre os espaços circulares habitados pelo ser humano, é uma obra muito hermética.

Eu sou um imunologista teórico. Essa é a filosofia contemporânea. Estamos pensando como o ser humano arquiteta a segurança de sua existência. Como ele vive? Como previne futuras eventualidades e catástrofes? Como se defende? Como se integra em suas culturas, entendidas como comunidades de luta? É uma mudança de paradigma: da filosofia para uma imunologia geral.

O sr. se considera um polemista?

Não sou um polemista, acho que a maioria das polêmicas é medíocre. Os alemães polemizam quase sempre com armas cegas, com o porrete, e não com o florete. Eu diria que no terreno do debate intelectual não há mal-entendidos, mas apenas estratégicas leituras enviesadas e sistemáticas, más interpretações. Muitos não indagam o significado dos textos, e sim seu potencial de escândalo. Pense em todos aqueles que nos últimos 24 meses foram acusados de antiamericanismo no Ocidente. É um clichê polêmico aproveitado por uma série de autores nos meios de comunicação. É difícil aceitar que, num país que se apresenta ao mundo como se fosse o berço da democracia, se possa chegar a tal extremo de uniformização voluntária da imprensa. O verdadeiro nome desse mecanismo é epidemia semântica. É uma forma de guerra biológica contra a própria população. Essas epidemias também existem em outros países: uma democracia saudável é, de fato, uma sociedade que padece de várias epidemias temáticas ao mesmo tempo, uma “multimorbidade”. O que é temível e fascistóide é o monotematismo. Sob esse ponto de vista, é preciso vigiar os EUA com muita atenção. Cabe esperar uma reincidência dos norte-americanos na democracia, mas neste momento eles são presa de uma perigosíssima crise monotemática que aponta para a auto-abolição da democracia.

O senhor quer dizer que existe um risco de fascismo midiático nos EUA?

Não é um risco. É algo que já está aí. Do ponto de vista da teoria dos meios de comunicação, o fascismo é o monotematismo no poder. Se uma opinião pública se estrutura de tal maneira que a uniformização aumenta demais, temos um sintoma pré-fascista. Claro que é preciso relativizar a afirmação, pois a unidirecionalidade é um efeito da mídia que não pressupõe uma central de comando. Não se trata necessariamente de um fascismo ao estilo do Führer. É o fascismo da homogeneização… [+]

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