“A filosofia no quarto de despejo” – Mauro TRINDADE

Revista Manchete, 15 de julho de 1995

E. M. Cioran, considerado o maior pensador de nosso tempo, vivia como um estudante pobre em Paris

Depois de décadas a assombrar um sótão na rive gauche de Paris, o soturno e brilhante filósofo Emil Michel Cioran encerrou no dia 20 de junho passado sua brava lula contra o mal de Alzheimer. Rei dos aforismos, arauto da tristeza e da finitude da vida, o escritor romeno preferiu viver na penumbra cultural do que sob a luz dos modismos intelectuais franceses. Quando Jean-Paul Sartre e seus seguidores arrulhavam em bandos existencialistas na década de 40, Cioran já andava na contramão com seu estilo seco e máximas pessimistas. Depois cortava a verborragia ideológica dos anos 60 com sua desesperança no futuro e já anunciava o fim das utopias. Nos 80, simplesmente deixa de escrever. “Agora todos dizem o que eu sempre disse”, resmungava o vampiro cansado.

O escritor romeno Emil Michel Cioran deixou uma das mais ricas e criativas obras da filosofia de nosso século, mas passou os últimos 35 anos da vida num quarto de empregada, cedido por uma admiradora de seus livros.

Tão impressionante quanto a sua obra, era a simplicidade com que vivia. O maior escritor em língua francesa da atualidade morava numa mansarda liliputiana, no alto de um prédio no Quartier Latin, onde as visitas tinham de driblar os livros espalhados pelo chão e, quem se sentasse na cadeira, não podia esticar os pés, sob risco de sujar a cama. Pouco mais do que um quartinho de empregada ou de um universitário pobre.

Na verdade, Cioran passou a maior parte de sua vida como um estudante. Em Rasinari, vilarejo da Transilvânia onde nasceu em 1911, Cioran se enfiava na livraria da cidade, roendo, todas as manhãs, os últimos lançamentos. “Apenas um. em um canto, parecia esquecido há meses, Bestia umana, a tradução italiana de La Bête Humaine, de Zola. Dos 11 aos 14 anos, a minha única lembrança é o título do livro.”

A afirmação pode parecer apenas um jogo de palavras, às quais Cioran manipulava com refinada maestria. Mas sua visão da humanidade e de si mesmo não eram mais dulcorosas do que o título do livro naturalista. Sua própria concepção de mundo era baseada numa origem maligna. Em O Mau Demiurgo, de 1969, sugere uma herética criação realizada pelo “príncipe do mal”.

Num comentário amargo sobre sua própria obra, ele escreve que “extraí de minhas entranhas, para injuriar a vida e me injuriar. O resultado? Suportei-me melhor, como suportei a vida melhor. Cada um se vira como pode.” Cioran se virou como bolsista na França, de onde nunca mais saiu. Passou a escrever num francês “esvaziado de toda a carga afetiva, de um rigor inumano e infernal”. Seu primeiro livro na nova língua é o belo e ácido Breviário da Decomposição (Rocco), que escreveu enquanto passeava de bicicleta através da França ocupada pelos nazistas. Os mesmos nazistas pelos quais mostrou alguma admiração na juventude, para, em 1956, realizar seu mea culpa no livro A Tentação de Existir.

Não se deve levar ao pé da letra o que Cioran escreveu

Nenhuma posição de Cioran deve ser levada às últimas conseqüências. Ele mesmo gostava de associar sua literatura aos aforismos moralistas franceses do século XVIII, pensamentos enxutos que deveriam ser sorvidos, em toda sua ironia e amargura, como uma eau de vie depois do banquete da vida. Seu tradutor brasileiro, José Thomaz Brum, oferece-nos a imagem de um homem gentil e carinhoso, que sabia apreciar muito bem os prazeres da vida e alguém capaz de partilhar a mesa, os livros e os sentimentos com as pessoas que lhe eram caras. Deixou mais de uma dúzia de obras e um certo travo amargo na boca dos contentes.

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