“John Gray e o equívoco do gnosticismo” – Rodrigo MENEZES

Em A alma da marionete (The Soul of the Marionette, 2015), John Gray dava indícios de compreender equivocadamente o assim-chamado “gnosticismo”: a gnose da heresia gnóstica surgida no cristianismo primitivo, nos primeiros séculos da nossa era, e ressurgida na Idade Média, entre os cátaros e outros grupos religiosos sectários. Ele escreve:

Hoje em dia, muitas pessoas têm uma visão gnóstica do mundo sem se dar conta disso. Acreditando que os seres humanos podem ser plenamente entendidos pelos termos do materialismo científico, rejeitam qualquer ideia de livre-arbítrio. Mas não poderiam abrir mão da esperança de se assenhorar do próprio destino. Passaram então a acreditar que de algum modo a ciência permitirá à mente humana escapar das limitações que determinam sua condição natural. Em boa parte do mundo, e particularmente nos países ocidentais, a fé gnóstica de que o conhecimento pode proporcionar aos seres humanos uma liberdade fora do alcance de qualquer outra criatura tornou-se a religião predominante.

GRAY, A Alma da marionete, p. 14.

Não há nada em comum entre o “conhecimento”, “a ciência” (materialista), de que fala Gray, e o conhecimento gnóstico, a gnose enquanto modo peculiar de “conhecimento”. O materialismo científico não só não tem nada de “gnóstico”, como seria válido afirmar que nada é mais antignóstico do que o moderno materialismo científico. Grosso modo, é a distinção entre episteme e gnosis (de onde a máxima délfica do gnôthi seauton, “conhece-te a ti mesmo”) que Gray ignora, talvez propositadamente (tendo em vista a sua formação filosófica inglesa). Se o materialismo científico moderno pressupõe a derrocada da metafísica e da teologia, de onde a “morte de Deus” (e o ateísmo científico subsequente), o gnosticismo, com sua fantasia de salvação pelo conhecimento de si (isto sim é gnosis, não um conhecimento epistêmico das leis naturais do mundo como res extensa), e sua transcendência infinita em direção a um Deus “alienígena” (Alien God, segundo Hans Jonas), o gnosticismo enquanto mentalidade religiosa de salvação é tão desfavorecido pelo paradigma materialista quanto o cristianismo tradicional.

A ciência moderna, como o próprio Gray argumentará em Sete tipos de ateismo (Seven types of atheism, 2018), pode até pretender explicar todas as coisas (fenômenos naturais objetivos), mas não pode dotar a existência humana, subjetivamente concebida, de um único sentido ou significado que seja. Não existe uma “ciência da felicidade”, ou uma “ciência positiva do sentido da vida”; se existisse, “despovoaria a terra em um dia” (Cioran). Nenhuma ciência (no sentido moderno, naturais ou humanas) pode erigir-se em autoridade existencial para determinar como cada indivíduo deve viver ou o que deve fazer para ser feliz (ou alcançar qualquer outro objetivo humano).

É mais ou menos o que afirma Schopenhauer ao atribuir à filosofia exclusivamente o poder de decifrar o “enigma do mundo”, ao passo que a ciência, todas as ciências reunidas, com todas as suas explicações acumuladas, não saberiam contribuir para a elucidação desse “enigma”, que exige uma compreensão imediata e absoluta unicamente possível pela via da introspecção, na interioridade. Em matéria de gnose (conhecimento e compreensão de si, enquanto espírito que se reflete e pensamento que se pensa), a ciência, tal como nós a entendemos, não tem nada a dizer e não decide nada. Antes do que o materialismo científico, a posição de Cioran nos parece muito mais “gnóstica”: “Objeção contra a ciência: este mundo não vale a pena ser conhecido” (Silogismos). Uma posição existencial similar, radical em sua recusa da ciência como autoridade absoluta, encontra-se em Chestov (“filósofo de cabeceira” de Cioran), que retoma de Plotino a noção de to timiotaton, o que mais importa (o “Essencial” segundo Cioran):

Já tive a ocasião de indicar que é em Plotino que encontramos a melhor, ou seja, a definição mais completa da filosofia. À pergunta: o que é filosofia? Ele responde: “o que mais importa” (to timiotaton).
Acima de tudo, esta definição destrói, sem nem pensar, ao que parece, as barreiras que, desde a antiguidade, separavam a filosofia das esferas vizinhas da religião e da arte: o artista, o profeta procuram, sim, eles também, “o que mais importa ” Além disso, a definição de Plotino não apenas não submete a filosofia ao controle e à direção da ciência, mas as opõe. A ciência é objetiva, indiferente; ela não se importa com o que é importante e o que não é. Ela contempla friamente o inocente e o culpado, não conhece piedade nem raiva. Mas onde não há indignação nem piedade, onde se olha com indiferença o inocente e o culpado, onde todos os fenômenos são apenas classificados e não qualificados, não pode haver distinção entre o que é importante e o que é insignificante. Segue-se que a filosofia, definida como “o que mais importa”, não é, de forma alguma, ciência. Eu irei mais longe. Deve necessariamente se opor à ciência e precisamente no que diz respeito à sua soberania.

CHESTOV, Les révélations de la mort, Les Cahiers Jérémie, 2011, p. 38.

A suspeita de que John Gray está predisposto a compreender equivocadamente o “conhecimento” gnóstico, a despeito da sua excelência em outras áreas da filosofia, confirma-se em Sete tipos de ateísmo, onde ele afirma que “para Platão – a origem do gnosticismo na filosofia ocidental – o mundo do tempo que passa é um véu que encobre uma realidade espiritual imutável” (GRAY, 2021, p. 38). O problema está no aposto que diz que “Platão é a origem do gnosticismo na filosofia ocidental”. Uma vez mais, aqui, a confusão problemática entre o autoconhecimento (gnosis) socrático e o conhecimento como ciência positiva, objetiva e sistemática (na contramão do “tudo que sei é que nada sei”).

Que Platão (ou o Sócrates platônico) seja a origem do gnosticismo, na filosofia ocidental ou em geral, é uma afirmação que não se sustenta. Admitindo-se que para Platão haja um “véu” a encobrir a verdadeira realidade do ser, isto não implica necessariamente nenhum pessimismo cósmico (muito pelo contrário, o platonismo é uma filosofia “solar”, um otimismo da razão). Ora, a julgar por Hans Jonas, Henri-Charles Puech, Ioan Culianu, entre outras autoridades eruditas em matéria de gnosticismo (até mesmo Harold Bloom, crítico literário norte-americano, anglo-saxão como Gray, mas excepcionalmente sensível à gnose e à mística em geral), o que singulariza o fenômeno gnóstico, no seu contexto de surgimento na Antiguidade tardia, é uma dupla negatividade contra (1) o paradigma filosófico grego de um kosmos harmonioso e racionalmente ordenado “para o melhor” (no caso do animal racional, para a sua felicidade) e (2) contra a teleologia histórica inaugurada pelo cristãos que sairiam da disputa das interpretações cristológicas como os vencedores “ortodoxos” (a ideia de que a história segue um curso predeterminado pelo desígnio de Deus para a sua Criação, seguindo o esquema de vida, morte e ressurreição de Cristo), culminando numa Redenção final e na instauração do Reino de Deus na terra.

O gnosticismo, então e agora, em minha opinião, se levanta como um protesto contra a fé apocalíptica, mesmo quando o faz dentro de uma dessas fés, como fez sucessivamente no judaísmo, cristianismo e Islã. A religião profética torna-se apocalíptica quando a profecia falha, e a religião apocalíptica torna-se gnóstica quando o apocalipse falha, como felizmente sempre falhou e, devemos esperar, voltará a falhar.

BLOOM, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade, p. 31.

O termo que designa negatividade gnóstica, entre o racionalismo grego e o milenarismo apocalíptico cristão, é acosmismo, uma atitude que hoje se qualificaria de “niilista”, e que seria impensável em Platão, Aristóteles ou qualquer filósofo grego. O gnóstico não se sente consubstancial (pertencente) a este mundo, e nem mesmo reconhece a sua “cosmicidade”. Sloterdijk aborda o tema da grande Negação gnóstica em Pós-Deus (Nach Gott, 2017). Segundo ele, na pista de Hans Jonas (também alemão), a negação que está em jogo no existencialismo e no niilismo modernos seria herdeira específica desse fenômeno de hibridismo e sincretismo da Antiguidade tardia que é o gnosticismo: “o produto da helenização aguda do cristianismo”, segundo Adolf von Harnack.

O fato do mundo sempre se antecipa a qualquer negação. A tese de que algo é não pode ser enfraquecida por qualquer antítese. Mas a partir do momento em que a diferença gnóstica entre “no mundo” e “do mundo” é estabelecida, abre-se um campo de negabilidades do mais alto nível de generalizações. Este é imediatamente invadido por enormes energias mitológicas e teológicas. Agora, os diques simbólicos, que represavam a negatividade psíquica, podem ser rompidos. A diferença gnóstica gera uma nova língua de insatisfação com o mundo – ela solta a língua do espírito mudo da grande negação.

SLOTERDIJK, Pós-Deus, p 75.

Equacionar gnose e ciência moderna – equívoco no qual se destaca Eric Voegelin – é o mesmo que tratar indiscriminadamente essas duas modalidades de conhecimento que os gregos denominavam episteme (conhecimento positivo, objetivo, demonstrável) e gnosis (conhecimento de si, por introspecção e reflexão, na experiência interior, para falar como Bataille). A filosofia de Chestov sozinha é mais “gnóstica”, ao reivindicar “o que é mais importante” (Plotino), do que todas as ciências positivas reunidas, no entendimento de Gray. Os cristãos gnósticos que perderam a disputa pela ortodoxia, nos primeiros séculos da era comum, não eram “platônicos” só porque se interessavam pela sua filosofia ou porque veneravam Platão como um mestre de sabedoria (de fato, alguns diálogos platônicos foram descobertos junto com os evangelhos apócrifos em Nag Hammadi, em 1945). O “demiurgo” do Timeu está longe do “mauvais démiurge” dos gnósticos (e do próprio Cioran). Assim como Platão e Sócrates não são “gnósticos”, no sentido que os hereges cristãos afirmavam ser, negando (desaprovando) o mundo em sua totalidade (que é a totalidade do Mal), e ao mesmo tempo afirmando a posse de um conhecimento místico libertador, indicador da verdadeira natureza espiritual e da origem divina do gnóstico (“fora deste mundo”), para a qual a sua alma saberá retornar (e onde, em certo sentido, já se encontra, nunca tendo saído de lá).

REFERÊNCIAS:

BLOOM, Harold, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade. Trad. de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.

CHESTOV, Lev, Les Révélations de la mort. Trad. de Boris de Schœlezer. Les Cahiers Jérémie, 2011.

CIORAN, E. M., Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

CIORAN, E. M., Le mauvais démiurge, in: Œuvres. Paris: Gallimard, 1995.

CIORAN, E. M., Silogismos da amargura. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

GRAY, John, A alma da marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2018.

GRAY, John, Sete tipos de ateísmo. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2021.

SLOTERDIJK, Peter, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019.


MENEZES, Rodrigo Inácio R. Sá, “John Gray e o equívoco do gnosticismo”, Portal E.M. Cioran Brasil, 6 de janeiro de 2022.

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