“Viver sem crença nem descrença” – John GRAY

O Deus do monoteísmo não morreu, apenas saiu de cena por algum tempo para reaparecer como humanidade — a espécie humana caracterizada como agente coletivo em busca da autorrealização na história. Entretanto, assim como o Deus do monoteísmo, a humanidade é obra da imaginação. A única realidade suscetível de ser observada é o animal humano multitudinário, com seus objetivos, valores e modos de vida conflitantes. Como objeto de culto, essa espécie rebelde apresenta algumas desvantagens. O monoteísmo à velha maneira tinha o mérito de reconhecer que muito pouco se pode saber a respeito de Deus. Desde uma época tão remota quanto a do profeta Isaías, os fiéis reconhecem que a deidade pode ter-se retirado do mundo. Esperando algum sinal da presença divina, encontraram apenas deus absconditus – um Deus ausente.

O resultado da tentativa de abolir o monoteísmo é exatamente o mesmo. Seguidas gerações de ateus viveram na expectativa da chegada de uma espécie verdadeiramente humana: os trabalhadores comunitários de Marx, os indivíduos autônomos de Mill e o absurdo Übermensch de Nietzsche, entre muitos outros. Nenhuma dessas criaturas fantásticas chegou a ser vista por olhos humanos. Uma espécie verdadeiramente humana continua tão inapreensível quanto qualquer deidade. A humanidade é o deus absconditus do ateísmo moderno.

Um ateísmo livre-pensador começaria por questionar a generalizada fé na humanidade, mas não há muita perspectiva de os ateus contemporâneos abrirem mão da reverência a esse fantasma. Sem a crença de que estão na vanguarda de uma espécie em progresso, dificilmente eles seriam capazes de seguir em frente. Só conseguem conferir sentido à própria vida mergulhando nesse absurdo. Sem ele, enfrentariam pânico e desespero.

Segundo as teorias grandiloquentes herdadas do positivismo pelos ateus de hoje, a religião vai desaparecer à medida que a ciência continuar avançando. Mas, apesar de a ciência estar progredindo com mais rapidez que nunca, a religião prospera — às vezes de maneira violenta. Os crentes seculares afirmam que se trata de um fenômeno passageiro e sem significado — com o tempo, a religião vai mesmo declinar e desaparecer. Mas sua raivosa frustração com o ressurgimento das fés tradicionais mostra que eles próprios não acreditam em suas teorias. Para eles, a religião é tão inexplicável quanto o pecado original. Os ateus que demonizam a religião enfrentam um problema do mal tão insolúvel quanto o que se apresenta ao cristianismo.

Quem quiser entender o ateísmo e a religião precisa deixar de lado a suposição popular de que são opostos. Quem for capaz de ver o que há de comum entre uma teocracia milenarista na Münster do início do século XVI e a Rússia bolchevista ou a Alemanha nazista terá uma visão mais clara do panorama moderno. Quem perceber que as teologias que afirmam o caráter inefável de Deus e certos tipos de ateísmo não estão tão distantes assim aprenderá algo a respeito dos limites do entendimento humano.

O ateísmo contemporâneo é uma continuação do monoteísmo por outros meios. Donde a infindável sucessão de substitutos de Deus, como a humanidade e a ciência, a tecnologia e as visões tão humanas do transumanismo. Mas não há necessidade de pânico nem de desespero. Crença e descrença são posturas adotadas pela mente diante de uma realidade inimaginável. Um mundo sem Deus é tão misterioso quanto um mundo impregnado de divindade, e a diferença entre os dois pode ser menor do que se imagina.

GRAY, John, “Viver sem crença nem descrença (conclusão)”, Sete tipos de ateísmo. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2021.

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