Não me sinto à vontade com este livro, em que gostaria de ter esgotado a possibilidade de ser. Não é que me desagrade totalmente. Mas odeio sua lentidão e sua obscuridade. Gostaria de dizer a mesma coisa em poucas palavras. Gostaria de liberar seu movimento, salvá-lo daquilo que o atola. O que, de resto, não seria fácil nem satisfatório.
Na maneira de pensar que introduzo, o que conta nunca é a afirmação. Acredito, decerto, naquilo que digo, mas sei que levo em mim o movimento que exige que a afirmação, mais longe, acabe por desvanecer. Se fosse preciso me dar um lugar na história do pensamento, seria, acredito, por ter discernido os efeitos, em nossa vida humana, do “desvanecimento do real discursivo”, e por ter tirado da descrição desses efeitos uma luz evanescente: essa luz deslumbra talvez, mas anuncia a opacidade da noite; não anuncia mais do que a noite.
Muitas vezes me parece, hoje, que estava errado em jogar um jogo crepuscular com uma espécie de leviandade, avançando candidamente hipóteses, sem estar em condições de dar continuidade aos trabalhos que elas implicavam. Não obstante, meu orgulho de outrora me agrada mais do que me incomoda. Agora, esforço-me por ser grave – conduzo uma pesquisa mais lenta – e, no entanto, não posso duvidar de que só a desenvoltura de um jogo corresponde a essa situação indevida em que a necessidade deixa o espírito.
Esse jogo do “real discursivo” e de seu desvanecimento existe de fato. Ele exige a honestidade, a lealdade e a generosidade do jogador (não há generosidade sem lealdade). Mas quando excedo o “real discursivo”, não há mais do que um jogo, e a honestidade de que falo não é a da lei. A lei funda o real, cria seu valor absoluto, mas não existiria se não fosse a chantagem de um misticismo que ela tira da morte e da dor. A morte e a dor, que são o princípio da servidão (não há escravos sem o temor da morte e da dor), são também os fundamentos místicos da lei.
Só o pensamento violento coincide com o desvanecimento do pensamento. Mas ele exige uma obstinação minuciosa e só cede à violência – seu contrário – no final, e na medida em que, tornado ele próprio, contra si mesmo, a violência, liberta-se da moleza em que durava. Mas o aniquilamento do pensamento – não deixando subsistir, denunciada, espectral, mais do que a coerência servil do pensamento e seus múltiplos desfalecimentos, alegres ou trágicos – não pode desviar para outrem a violência que o funda. A violência ligada ao movimento do pensamento não deixa escapatória.
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Vou me deter num ponto que, ao que parece, pouco tem a ver com o movimento de A experiência interior. Gostaria de situar meu pensamento em suas perspectivas estritas, longe do mundo de facilidade onde podem apreciá-lo a baixo custo.
Na origem da baixeza, percebo o valor enfático atribuído à espécie humana. Sem dúvida alguma, a diferença entre o animal e o homem tem fundamento, já que o homem se opõe à natureza. Mas o homem tem dificuldade em superar a vantagem que levou. O homem diz de si mesmo: “sou divino, imortal, livre…” (ou diz com gravidade: “a pessoa”). Mas não é tudo. Cada um admite ingenuamente, sem controle, princípios que se dão por inatacáveis: – consideramos inumano matar, mais inumano ainda comer o homem… Acrescentamos normalmente que não é menos odioso explorá-lo. Não oponho nada a esses princípios; e mesmo odeio aqueles que não os observam direito (aliás, regra geral, eles os reverenciam tanto quanto os infringem). Mas isso é misticismo – e hipocrisia. A exploração do homem pelo homem, por mais odiosa que seja, está dada na humanidade. Mesmo a antropofagia, quando de uso, coexiste com o interdito de que é a violação ritual.
Ainda uma vez, não gosto nem da exploração nem do assassinato (e quanto aos canibais, não preciso dizer…); e admito, sem pestanejar, que exploremos, abatamos e comamos os animais. Mas não posso duvidar de que essas reações sejam arbitrárias. São cômodas, a humanidade sem elas seria ainda mais baixa do que já é. É, entretanto, covarde ver aí mais do que uma atitude eficaz e tradicional. O pensamento que não limita esse arbitrário àquilo que ele é é místico.
O que faz do humanismo místico uma platitude é a incompreensão da especificidade humana que ele implica. É próprio do homem opor-se ao bicho num movimento de náusea. Mas a náusea que nos funda assim não cessa: ela é mesmo o princípio de um jogo que anima nossa vida de um extremo ao outro. Nunca somos mais humanos do que quando nos recusamos um ao outro no horror. A propensão à náusea tem mais força quando se trata de povos inteiros: ela atua a partir de então às cegas! Mas quando se trata de indivíduos ou de classes, ela tem objetos precisos. A oposição de um homem àquele cuja atitude julga imunda é a mesma que opõe inicialmente o homem ao bicho. Ela não tem a mesma nitidez: é desde então atacável e, o mais das vezes, fundada no erro. Quando é contestada, um novo modo de oposição, e de achincalhamento, começa: a oposição tem então por objeto o próprio princípio da oposição entre si dos homens de diferentes tipos! Se faço um último esforço, indo ao extremo da possibilidade humana, rejeito na noite aqueles que, por uma covardia que não se confessa, pararam no meio do caminho.
Nisso, afasto-me do misticismo de maneira mais real do que a massa de meus contemporâneos. Sinto-me, pelo contrário, o próprio despertar, estando no plano da exigência do pensamento no estado da fera acuada. No final, o rigor é o ponto em que estou de acordo com os juízos confessos dos homens. A tensão e o ressecamento do espírito, o rigor, o desejo de forçar a moleza em seu último refúgio…, sinto como uma graça uma espécie de fúria que me opõe à facilidade. Mas muitas vezes a indolência é o aspecto nu, o aspecto obsceno do rigor.
Essas fraquezas e esses equívocos involuntários de meu livro, essas alegrias e essas angústias que nada fundam nunca têm sentido além de si mesmos, sendo apenas o apanágio do jogo. O tom frequentemente amarrado de minhas frases, pesadas demais, expõe uma abertura ilimitada que o jogo, se não é mais o inferior, tolerado, da seriedade, proporciona ao espírito inoperante (ao espírito soberano, que nunca é risível nem trágico, mas um e outro a uma só vez, infinitamente). Só a seriedade tem um sentido: o jogo, que não o tem mais, só é sério na medida em que “a ausência de sentido é também um sentido”, mas sempre desgarrado na noite de um não-sentido indiferente. A seriedade, a morte e a dor fundam sua verdade obtusa. Mas a seriedade da morte e da dor é o servilismo do pensamento.
BATAILLE, Georges, “O suplício”, § II, A experiência interior (seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953 : Suma ateológica, vol. I). Trad. de Fernando Scheibe. 1. ed. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2016. (Filô/Bataille)