(…) Tomé lhe diz: “Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” Diz-lhe Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim.”
O EVANGELHO DE JOÃO, que contém esse trecho, é um livro notável que muitos gnósticos reclamam a si e utilizam como fonte primária para o ensinamento gnóstico. Contudo, a igreja emergente, apesar de certa oposição ortodoxa, incluiu João no Novo Testamento. O que levou João a ser considerado aceitável pela “ortodoxia”? Por que a igreja aceitou João, ao passo que rejeitou escritos como o Evangelho de Tomé e o Diálogo do Salvador? Ao refletir sobre essa questão, é preciso lembrar que quando se viaja pelos Estados Unidos vemos cartazes com essas palavras de João nas igrejas locais. Seu propósito é claro: por indicar que só encontramos Deus por meio de Jesus, o escrito, no contexto contemporâneo, implica que só o fazemos pela igreja. De modo similar, nos primeiros séculos desta era, os cristãos preocupados em fortalecer a igreja institucional poderiam apoiar-se nas palavras de João.

As fontes gnósticas fornecem uma perspectiva religiosa diferente. Segundo o Diálogo do Salvador, por exemplo, quando os discípulos fazem a mesma pergunta a Jesus (“Qual é o lugar para onde estamos indo?”), ele responde: “permaneçam no lugar que possam alcançar!” O Evangelho de Tomé relata que quando os discípulos perguntam para onde deveriam ir, ele diz apenas: “Existe luz em um homem iluminado e ele ilumina o mundo inteiro. Se ele não brilhar, ele é a escuridão.” Sem legitimar qualquer instituição, ambos os enunciados dirigem-se a outrem em vez de a si mesmo — à capacidade interna de um ser de encontrar sua própria direção para a “luz interior”.
O contraste delineado acima, claro, é de certa forma simplista. Os seguidores de Valentino demonstraram — de modo convincente — que muitos pronunciamentos e histórias nos escritos de João permitem esse tipo de interpretação. Mas cristãos como Irineu aparentemente decidiram que, em contrapeso, o Evangelho de João (sobretudo, talvez, em sequência após Mateus, Marcos e Lucas) poderia servir às necessidades de uma instituição emergente.
À medida que a igreja organizava-se politicamente, abrigava em seu âmbito muitas ideias e práticas contraditórias, já que elementos divergentes suportavam sua estrutura institucional básica. Nos séculos III e IV, por exemplo, centenas de cristãos católicos adotaram formas ascéticas de autodisciplina, buscando a revelação religiosa na solidão, em visões e em exaltações místicas. (Os termos “monge” e “monástico” provêm da palavra grega monachos, que significa “solitário” ou “um só”, e que o Evangelho de Tomé usa, com frequência, para descrever os gnósticos.) Em vez de rechaçar o movimento monástico, a igreja tomou providências, no século IV, para submetê-lo à autoridade episcopal. O estudioso Frederik Wisse sugeriu que os monges que viviam no monastério de São Pacômio, próximo ao penhasco onde os textos foram encontrados, poderiam ter guardado os documentos de Nag Hammadi em sua biblioteca devocional. Mas em 367, quando Atanásio, o poderoso arcebispo de Alexandria, enviou uma ordem para expurgar todos os “livros apócrifos” com “heréticas” tendências, um (ou muitos) monge pode ter escondido os preciosos manuscritos na jarra e a enterrado na montanha de Jabal al-Tarif, onde Muhammad Ali a encontrou 1.600 anos mais tarde.
Além disso, à medida que a igreja, apesar de suas divergências internas, tornou-se cada vez mais uma unidade política entre 130 e 400, seus líderes tenderam a tratar seus oponentes — uma grande diversidade de grupos — como se eles, também, constituíssem uma unidade política opositora. Quando Irineu denunciou os hereges como “gnósticos”, referiu-se menos a um consenso doutrinal específico entre eles (na verdade, Irineu quase sempre os castigava pela variedade de suas crenças) do que ao fato de resistirem a aceitar a autoridade do clero, o credo e o cânone do Novo Testamento.
O que — caso houvesse algo — os diversos grupos que Irineu chamava de “gnósticos” tinham em comum? Ou, para situar a pergunta em outro contexto, o que os vários textos descobertos em Nag Hammadi tinham em comum? Uma resposta simples não abrangeria todos os diferentes grupos que a ortodoxia atacava, ou todos os diferentes textos da coleção Nag Hammadi. No entanto, sugiro que o problema com o gnosticismo, do ponto de vista ortodoxo, não era apenas que os gnósticos quase sempre divergissem da maioria em questões específicas já abordadas aqui — a organização da autoridade, a participação das mulheres, o martírio: os ortodoxos reconheciam que os chamados “gnósticos” compartilhavam uma perspectiva religiosa fundamental, que consistia em uma antítese das reivindicações da igreja institucionalizada.
Os cristãos ortodoxos insistiam em que a humanidade precisava encontrar uma maneira além de seu próprio poder — uma via divina — para aproximar-se de Deus. E isso, diziam, a Igreja católica oferecia àqueles que estariam perdidos, sem a presença de Deus: “Fora da Igreja católica não há salvação.” A convicção deles baseava-se na premissa de que Deus criara a humanidade. Como Irineu dizia: “Nesse aspecto, Deus difere da humanidade; Deus cria, mas a humanidade foi criada.” Um é agente original, o outro, o recipiente passivo; um “é perfeito”, onipotente, infinito; o outro, imperfeito e finito. O filósofo Justino Mártir diz que, ao reconhecer a grande diferença entre a mente humana e Deus, abandonou Platão e converteu-se em um filósofo cristão. Ele relata que antes de sua conversão um ancião questionou seu pressuposto básico, perguntando: “Que afinidade, então, existe entre nós e Deus? A alma é também divina e imortal, bem como uma parte da mente régia?” Falando como um discípulo de Platão, Justino respondeu sem hesitar: “Com certeza.” Contudo, quando as perguntas posteriores do ancião o levaram da certeza à dúvida, diz que percebeu que a mente humana não pode encontrar Deus por si mesma e precisa, em vez disso, ser iluminada pela revelação divina — por meio das Escrituras e da fé proclamada pela igreja.
Mas alguns gnósticos vão mais além, alegando que a humanidade criou Deus — e, assim, a partir de seu potencial interior, descobriu a revelação da verdade. Essa convicção pode subjazer ao comentário irônico do Evangelho de Filipe:
(…) Deus criou a humanidade; [mas agora os seres humanos] criam Deus. Assim é o mundo — seres humanos criam deuses e adoram suas criações. Seria adequado que os deuses adorassem os seres humanos!
Segundo o mestre gnóstico Valentino, a humanidade manifesta a vida e a revelação divinas. A igreja, diz, consiste nessa parte da humanidade que reconhece e celebra sua origem divina. Mas Valentino não usa essa expressão em seu sentido contemporâneo, referindo-se à humanidade em termos coletivos. Em vez disso, ele e seus seguidores pensavam em Anthropos (aqui traduzido como “humanidade”) como a natureza subjacente dessa entidade coletiva, o arquétipo, ou a essência espiritual do ser humano. Nesse sentido, alguns dos seguidores de Valentino, “aqueles (…) considerados mais talentosos” que os demais, concordavam com o professor Colorbasus, que disse que quando Deus se revelou, Ele revelou-se na forma do Anthropos. No entanto, outros, relata Irineu, asseveraram que
o pai primal de todos, o começo primal e o inescrutável primal é chamado Anthropos (…) e isso é o grande e obscuro mistério, ou seja, o poder que está acima de todos os outros e os envolve em seu abraço é chamado Anthropos.
Por essa razão, diziam os gnósticos, o Salvador denominava-se “Filho do Homem” (isto é, Filho do Anthropos). Os gnósticos sethianos, que chamavam o criador de Ialdabaoth (um nome aparentemente derivado do judaísmo místico, mas que aqui indicava sua posição inferior), afirmavam que por essa razão, quando o criador,
Ialdabaoth, tornou-se arrogante e vangloriou-se perante seus inferiores, dizendo: “Eu sou pai e Deus, e acima de mim não há ninguém”; sua mãe, ao ouvi-lo falar isso, repreendeu-o: “Não minta, Ialdabaoth, pois o pai de todos, o Anthropos primal, está acima de você; e ainda Anthropos, o filho de Anthropos.
Nas palavras de outro valentiniano, visto que os seres humanos criaram toda a linguagem da expressão religiosa, então, de fato, a humanidade criou o mundo divino: “(…) e esse [Anthropos] é, na verdade, o Deus acima de tudo.”
Muitos gnósticos, portanto, teriam concordado com a teoria de Ludwig Feuerbach, um psicólogo do século XIX, segundo a qual “teologia é na realidade antropologia” (o termo origina-se, é claro, de anthropos e significa o “estudo da humanidade”). Porque os gnósticos, ao explorarem a psique, explicitaram um tema que hoje é para muitos implícito — a busca da religião. Algumas pessoas que procuram seu direcionamento interior, como os gnósticos radicais, rejeitam as instituições religiosas como um obstáculo ao seu progresso. Outros, como os valentinianos, participam de bom grado nelas, embora considerem a igreja mais um instrumento de sua autodescoberta do que a necessária “arca de Noé da salvação”.
Além de definir Deus de formas opostas, os cristãos gnósticos e ortodoxos caracterizaram a condição humana de modo muito diverso. Os ortodoxos seguiram o ensinamento judaico tradicional, no qual o que separa a humanidade de Deus, além da dissimilaridade essencial, é o pecado do homem. A palavra que designa o pecado no Novo Testamento, hamartia, procede do esporte de arco-e-flecha; literalmente, significa “não acertar o alvo”. As fontes do Novo Testamento dizem que sentimos sofrimento mental e físico porque não atingimos a meta moral que almejávamos: “todos pecamos e não alcançamos a glória de Deus.” Então, segundo o evangelho de Marcos, quando Jesus veio para reconciliar Deus e a humanidade, ele anunciou: “Completou-se o tempo e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho.” Marcos diz que apenas Jesus podia curar e perdoar os pecados; só aqueles que recebiam sua mensagem de fé experimentavam a libertação. O Evangelho de João expressa a situação desesperada da humanidade isolada do Salvador:
Porque Deus não enviou o Seu Filho ao mundo (…) para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele! Quem nele crê não é condenado; quem não acredita já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho Único de Deus.
Muitos gnósticos, ao contrário, insistem em que a ignorância e não o pecado é que acarreta o sofrimento humano. O movimento gnóstico tinha algumas afinidades com os métodos contemporâneos de explorar o eu por meio de técnicas da psicoterapia. O gnosticismo e a psicoterapia valorizam, acima de tudo, o conhecimento — o autoconhecimento perceptivo. Concordam que, devido à sua ausência, uma pessoa sente-se levada por impulsos que não compreende. Valentino expressa esse fato como um mito. Relata como o mundo originou-se quando a Sabedoria, a Mãe de todos os seres, o gerou por meio de seu próprio sofrimento. Os quatro elementos que, segundo os filósofos gregos, constituem o mundo — a terra, o ar, o fogo e a água — são formas concretas de suas experiências:
Assim a terra surge de sua perplexidade; a água de seu terror; o ar do enrijecimento de sua tristeza; enquanto o fogo (…) era inerente a todos esses elementos (…) como a ignorância jaz oculta nesses três sofrimentos.
Então o mundo foi gerado pelo sofrimento. (A palavra grega pathos, aqui traduzida como “sofrimento”, também conota o recipiente passivo, não o iniciador, da experiência de alguém.) Valentino ou um dos seus seguidores menciona uma versão diferente do mito no Evangelho da Verdade,
(…) Ignorância (…) provoca angústia e terror. E a angústia solidifica-se como um nevoeiro, impossibilitando sua percepção. Por essa razão o erro é poderoso…
Muitas pessoas vivem, então, alienadas — ou, em termos contemporâneos, inconscientes. Desconhecendo suas próprias individualidades, elas não têm “raízes”. O Evangelho da Verdade descreve essa existência como um pesadelo. Aqueles que assim vivem sentem “terror, confusão, instabilidade, dúvida e divisão”, presos a “muitas ilusões”. Então, de acordo com a passagem que os estudiosos chamam de “parábola do pesadelo”, eles vivem
submergidos em seus sonos, encontrando-se em sonhos perturbadores. Ou (há) um lugar para onde eles estão fugindo ou, sem força, estão voltando (após) terem perseguido outros, ou estão envolvidos em causar desgraças, ou estão eles mesmos recebendo golpes funestos, ou caíram de lugares altos, ou voaram no ar embora não tenham asas. Novamente, às vezes (é como) se as pessoas lhes estivessem matando, apesar de não haver ninguém lhes perseguindo, ou são eles mesmos que estão assassinando seus vizinhos, por terem sido manchados com o seu sangue. Quando aqueles que estão passando por todas essas coisas acordam, eles não veem nada, aqueles que estão em meio a essas perturbações assim estão porque não são nada. Esse é o modo daqueles que puseram a sua ignorância à parte como o sono, deixando [suas funções] para trás como um sonho em uma noite. (…) Esse é o modo como cada um agiu, como se dormisse no tempo quando era ignorante. E esse é o modo como chegou ao conhecimento, como se tivesse acordado.
Quem permanece ignorante, uma “criatura alienada”, não se realiza. Os gnósticos dizem que uma pessoa assim “vive imersa na deficiência” (o oposto da realização). Porque a deficiência consiste em ignorância:
(…) Quem é ignorante, quando atinge o conhecimento, sua ignorância se esvai por si só; assim como a escuridão desaparece com a luz, a deficiência esvai-se com a realização.
A auto-ignorância é também uma forma de autodestruição. Segundo o Diálogo do Salvador, quem não compreende os elementos do universo, ou a si mesmo, está destinado ao aniquilamento:
(…) Aquele que não [compreende] como o fogo veio à existência, por ele será queimado, pois não conhece sua raiz. Aquele que não compreende primeiro a água, não sabe coisa alguma. (…) Aquele que não compreende como o vento que sopra veio à existência, será soprado junto com ele. Aquele que não compreende como o corpo que sustenta veio à existência, perecerá junto com ele. (…) Quem quer que não compreenda como veio ao mundo, não entenderá como irá…
Como — ou onde — alguém deve buscar o autoconhecimento? Muitos gnósticos têm em comum com a psicoterapia uma segunda premissa importante: ambos concordam — em oposição ao cristianismo ortodoxo — que a psique possui dentro de si o potencial para liberar-se ou destruir-se. Poucos psiquiatras discordariam das palavras atribuídas a Jesus no Evangelho de Tomé:
“Se revelar o que possui dentro de si, será salvo. Se não o desvelar, será destruído.”
Essa visão interior é apreendida gradualmente: “Reconheça o que está diante de seus olhos e o que está oculto se revelará.”
Esses gnósticos asseveram que a busca da gnosis conduz a um processo solitário e difícil, visto que ela luta com uma resistência interna. Eles caracterizavam essa resistência à gnosis como o desejo de dormir ou embriagar-se — ou seja, permanecer inconsciente. Então Jesus (que disse “Eu sou o conhecimento da verdade”) declara que quando veio ao mundo
encontrei-os entorpecidos; nenhum deles sedento. E minha alma tornou-se aflita pelos filhos dos homens, por serem cegos em seus corações e não terem visão; do vazio vieram ao mundo e vazios deixam o mundo. Mas, por enquanto, estão entorpecidos.
O professor Silvano, cujos Ensinamentos foram descobertos em Nag Hammadi, encoraja seus seguidores a resistir à inconsciência:
(…) acabe com o sono que pesa sobre você. Afaste-se do esquecimento que o envolve na escuridão (…) Por que persegue a escuridão se a luz está à sua disposição? (…) A sabedoria o convoca, contudo ainda deseja a insensatez. (…) um homem insensato (…) nada nos desejos da vida e se afunda. (…) ele é como um navio que o vento arremessa para a frente e para trás, e como um cavalo solto sem o cavaleiro. Esse (homem) precisa do cavaleiro que é a razão. (…) mas antes de qualquer coisa (…) conheça a si mesmo.
O Evangelho de Tomé também adverte que o autoconhecimento envolve uma perturbação interior:
Jesus disse: “Deixe aquele que busca continuar buscando até que encontre. Quando encontrar, ficará perturbado. Quando se tornar aflito, será surpreendido e reinará acima de tudo.”
Qual é a fonte da “luz” interior? Assim como Freud professava seguir a “luz da razão”, muitas fontes gnósticas concordam que “a lâmpada do corpo é a mente” (palavras atribuídas a Jesus no Diálogo do Salvador). Silvano, o mestre, diz:
(…) Traz seu guia e seu professor. A mente é o guia, mas a razão é o professor. (…) Viva de acordo com sua mente (…) Adquira força, pois a mente é poderosa (…) Ilumine sua mente (…) Acenda a lâmpada dentro de você.
Silvano prossegue:
Bata em si mesmo como quem bate em uma porta e caminhe sobre si mesmo como se percorresse uma estrada reta. Se caminhar nessa estrada, será impossível perder-se. (…)Abra a porta para si mesmo para que possa se conhecer (…) Aquilo que abrires para si mesmo se abrirá.
O Evangelho da Verdade expressa o mesmo pensamento:
(…) Se alguém possui conhecimento, ele recebe o que lhe pertence e o atrai para si mesmo (…) Aquele que receber o conhecimento dessa forma sabe de onde vem e para onde está indo.
O Evangelho da Verdade também expressa esta metáfora: cada um deve receber “seu próprio nome” — não, é claro, um nome comum, mas sua verdadeira identidade. Aqueles que são “filhos do conhecimento interior” obtêm o poder de falar seus próprios nomes. O mestre gnóstico assim se dirige a eles:
(…) Digam, então, de coração, que são o dia perfeito, e que em vocês habita a luz que jamais se apaga. (…) Vocês são a compreensão que foi trazida à luz (…) Preocupem-se consigo; não se preocupem com outras coisas que rejeitaram.
Então, segundo o Evangelho de Tomé, Jesus ridicularizou aqueles que pensavam que o “Reino de Deus”, em termos literais, era um lugar específico: “Se aqueles que os induzirem a dizer: ‘Veja, o Reino de Deus está no céu’, então os pássaros chegarão lá antes de vocês. Se eles disserem: ‘Está no mar’”, os peixes chegarão antes de vocês. Em vez disso, é um estado de autoconhecimento:
“(…) Ora, o Reino está, ao mesmo tempo, fora e dentro de vocês. Quando obtiverem o autoconhecimento, então serão conhecidos, e perceberão que são os filhos do Pai vivo. Mas, caso não conheçam a si mesmos, farão da pobreza sua morada, e serão essa pobreza.”
Porém os discípulos, pensando que esse “Reino” fosse um evento futuro, persistiram em suas perguntas:
Seus discípulos perguntaram a ele: “Quando (…) chegará o novo mundo?” Ele lhes disse: “O que buscam já chegou, mas não o reconheceis.” Os discípulos disseram a ele: “Quando virá o Reino?” [Jesus disse:] “Não virá estando à espera dele. Não será como dizer ‘Aqui está ele’ ou ‘Lá está ele’. Ao contrário, o Reino do Pai está espalhado por sobre a terra, e os homens não o veem.”
Esse “Reino”, então, simboliza um estado de transformação da consciência:
Jesus viu crianças sendo amamentadas. Ele disse aos seus discípulos: “Estas crianças sendo amamentadas são como aqueles que entram no Reino.” Eles lhe perguntaram: “Devemos nós, então, como crianças entrar no Reino?” Jesus disse a eles: “Quando fizerem dois de um, e quando fizerem de dentro como fora e de fora como dentro, e acima como abaixo, e quando fizerem o homem e a mulher um único e o mesmo, para que o homem deixe de ser homem e a mulher deixe de ser mulher (…) então entrarão [no Reino].”
No entanto, o “Jesus vivo” que Tomé rejeitava como ingênuo — a ideia de que o Reino de Deus era um evento real esperado na história — é a noção do Reino que os evangelhos sinóticos com muita frequência atribuem a Jesus em seu ensinamento. Segundo Mateus, Lucas e Marcos, Jesus proclamou a vinda do Reino de Deus quando os cativos obtivessem a liberdade, quando os doentes se curassem, os oprimidos fossem libertos e a harmonia prevalecesse no mundo inteiro. Marcos diz que os discípulos esperavam a chegada do Reino de Deus como um cataclismo que ocorreria durante sua vida, já que Jesus dissera que alguns deles viveriam para ver “o reino de Deus Todo-Poderoso”. Antes de sua prisão, diz Marcos, Jesus advertiu-os que, embora “o final ainda não chegara”, eles deveriam esperá-lo a qualquer momento. Os três evangelhos insistem em que o reino viria em um futuro próximo (apesar de conter algumas passagens indicando já a sua presença). Lucas fez Jesus dizer explicitamente: “O reino de Deus está dentro de você.” Alguns gnósticos cristãos, ao ampliar esse tipo de interpretação, esperavam que a liberação humana não aconteceria por meio de eventos reais na história, mas sim pela transformação interior.
Por razões similares, os cristãos gnósticos criticaram os pontos de vista ortodoxos de Jesus que o identificavam como alguém exterior e superior aos seus discípulos. Pois, de acordo com Mateus, quando os discípulos reconheceram quem era Jesus, pensaram ser o prometido Messias:
E Jesus foi com seus discípulos para a região de Cesaréia de Filipe; no caminho perguntou a eles: “Quem as pessoas dizem que eu sou?” Eles responderam: “Alguns dizem que é João Batista; outros, Elias; e outros, um dos profetas.” Então ele perguntou-lhes: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Sois o Cristo.”
Mateus acrescenta que Jesus abençoou Pedro pela precisão de seu reconhecimento, e declarou imediatamente que construiria a igreja sobre Pedro, por seu reconhecimento de Jesus como o Messias. Uma das mais antigas confissões cristãs declara simplesmente: “Jesus é o Senhor!” Mas Tomé conta uma história diferente:
Jesus disse a seus discípulos: “Comparem-me com alguém e digam com quem sou parecido.” Simão Pedro disse a ele: “És como um anjo justo.” Mateus disse: “És como um sábio filósofo.” Tomé disse a ele: “Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com quem te pareces.” Jesus disse: “Eu não sou o mestre de vocês. Porque beberam, ficaram embriagados com as fontes borbulhantes com que eu tenho me medido.”
Aqui, Jesus não nega seu papel de Messias ou de mestre, ao menos em sua relação com Pedro e Mateus. No entanto, aqui, eles — e suas respostas — representam um nível inferior de compreensão. Tomé, ao perceber que não pode atribuir um papel específico a Jesus, transcende, nesse momento de reconhecimento, a relação de discípulo e mestre. Ele converte-se no “Jesus vivo” que declara: “Aquele que beber de minha boca se tornará igual a mim. Eu mesmo devo me tornar ele, e as coisas que estão ocultas serão reveladas a ele.” As fontes gnósticas quase sempre mostram Jesus respondendo perguntas, assumindo o papel de professor, revelador e mestre espiritual. Mas, nesse caso, o modelo gnóstico aproxima-se do padrão psicoterápico. Ambos reconhecem a necessidade de uma diretriz, porém apenas como recurso provisório. O objetivo de aceitar a autoridade é o de aprender a superá-la. Quando alguém se torna maduro, não mais precisa de autoridade externa. O antigo discípulo se reconhece depois como o “irmão gêmeo” de Jesus. Quem, então, é o mestre Jesus? O Livro de Tomé, o Contendor o identifica simplesmente como o “conhecimento da verdade”. Segundo o Evangelho de Tomé, Jesus recusou-se a validar a experiência que os discípulos deveriam descobrir por si mesmos:
Eles lhe disseram: “Dize-nos quem és para que possamos acreditar em ti.” Ele lhes disse: “Vós lestes a face do céu e da terra, no entanto, não reconhecestes aquele que está diante de vós, e não sabeis ler este momento.”
E, frustrados, eles lhe perguntaram: “Quem és tu, a quem dirigimos essas perguntas”? Jesus, em vez de responder, criticou a pergunta: “Vós não percebeis quem eu sou pelas palavras que vos dirijo.” Já mencionamos que, segundo Tomé, quando os discípulos pediram a Jesus para mostrar-lhes o lugar onde estava para que eles também pudessem alcançá-lo, ele recusou-se, dizendo que deveriam descobrir seus recursos ocultos. O mesmo tema é abordado no Diálogo do Salvador. Quando Jesus conversava com seus três discípulos escolhidos, Mateus pediu a ele para mostrar o “lugar da vida” que é, diz ele, a “luz pura”. Jesus respondeu: “Cada um [de vocês] que tenha obtido o autoconhecimento a terá visto.” Mais uma vez, ele desviou-se da pergunta, impelindo o discípulo à sua autodescoberta. Quando os discípulos, esperando que ele lhes revelasse seus segredos, perguntaram a Jesus: “Quem é o que procura [e quem é aquele que] revela?”, ele respondeu que aquele que procura a verdade — o discípulo — é também aquele que a revela. Como Mateus continua a fazer perguntas, Jesus diz que ele mesmo desconhece a resposta: “Nem ouvi nada sobre assunto, exceto de você.”
O discípulo que atingir o autoconhecimento pode descobrir, então, até mesmo o que Jesus não pode ensinar. O Testemunho da Verdade diz que o gnóstico torna-se um “discípulo de sua [própria] mente” ao descobrir que sua mente “é o pai da verdade”. Ele aprende o que necessita saber por si mesmo em silêncio meditativo. Por conseguinte, considera-se igual a todos, mantendo sua independência diante de qualquer autoridade: “E ele é paciente com todos; iguala-se aos demais e também se mantém isolado deles.” Silvano, do mesmo modo, julga “a mente” como “um princípio condutor”. Quem quer que siga a direção de sua própria mente não precisa aceitar o conselho alheio:
Tenha um grande número de amigos, mas não de conselheiros. (…) Porém, se fizer [um amigo], não deposite confiança nele. Confie apenas em Deus como pai e amigo.
Por fim, os gnósticos que concebiam a gnosis como uma experiência subjetiva e imediata preocupavam-se, acima de tudo, com o significado interno dos acontecimentos. Aqui, de novo, eles divergem da tradição ortodoxa, que sustenta que o destino da humanidade depende dos eventos da “salvação da história” — a história de Israel, em especial das previsões dos profetas em relação a Cristo, sua vinda ao mundo, vida, morte e ressurreição. Todos os evangelhos do Novo Testamento, quaisquer que sejam suas diferenças, referem-se a Jesus como uma pessoa histórica. E todos eles confiam nas previsões dos profetas para provar a validade da mensagem cristã. Mateus, por exemplo, repete continuamente o refrão: “Isso se realizou para consumar as palavras dos profetas.” Justino, também, tentando persuadir o imperador da veracidade do cristianismo, indica como prova da realização da profecia: “E, na verdade, poderá ver por si mesmo e convencer-se pelo fato.” Mas, segundo o Evangelho de Tomé, Jesus considera irrelevante as previsões dos profetas:
Seus discípulos disseram a ele: “Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram em vós.” Ele lhes disse: “Vocês ignoraram o que vive em sua presença e falaram (apenas) dos mortos.”
Esses cristãos gnósticos viam os acontecimentos reais como secundários à percepção do seu significado.
Por essa razão, esse tipo de gnosticismo partilha com a psicoterapia uma fascinação pelo significado não-literal da linguagem, como uma tentativa de entender a qualidade interna da experiência. O psicanalista C. G. Jung interpretou o mito criado por Valentino como uma descrição do processo psicológico. Valentino relata como todas as coisas originaram-se do “eu profundo”, o “abismo” — em termos psicanalíticos, do inconsciente. Do “eu profundo” emergiram a Mente e a Verdade e, delas, por sua vez, a Palavra (Logos) e a Vida. E foi a palavra que gerou a humanidade. Para Jung, isso era um relato mítico da origem da consciência humana.
Um psicanalista pode encontrar significado também no prolongamento desse mito, quando Valentino conta como a Sabedoria, a filha mais nova do Casal primal, desejou ardentemente conhecer o Pai, interpretando isso como uma manifestação de amor. Suas tentativas para conhecê-lo a teriam levado à autodestruição, caso não tivesse encontrado um poder chamado Limite, “um poder que sustenta todas as coisas e as preserva”, que a libertou de seu distúrbio emocional e recobrou seu lugar original.
Um seguidor de Valentino, o autor do Evangelho de Filipe, explora a relação entre a experiência da verdade e a descrição verbal. Ele disse que “a verdade trouxe nomes à existência no mundo, porque é impossível conhecê-la sem esses nomes”. Mas a verdade deve ser revestida por símbolos: “A verdade não veio ao mundo despida, mas veio em tipos e imagens. O mundo não receberá a verdade em nenhuma outra forma.” Esse professor gnóstico critica aqueles que confundem a linguagem religiosa com a linguagem literal, professando a fé em Deus, em Cristo e na ressurreição ou na igreja como se fossem tudo “coisas” exteriores a si mesmas. Pois, explica, em uma linguagem comum, cada palavra refere-se a um fenômeno específico e externo; uma pessoa “vê o sol sem que seja um sol; e ela vê o céu, a terra e todas as outras coisas, mas ela não é essas coisas”. A linguagem religiosa, por sua vez, é a linguagem da transformação interna; quem percebe a realidade divina “converte-se no que vê”:
(…) Viu o espírito, tornou-se um espírito. Viu Cristo, nele se converteu. Ao ver [o Pai, você] transformou-se no Pai (…) consegue ver a si mesmo, e o que vir se [tornará].
Quem alcança a gnosis torna-se “não mais cristão, mas Cristo”.
Assim sendo, podemos observar que esse gnosticismo tinha um significado maior que um movimento de protesto contra o cristianismo ortodoxo. O gnosticismo também incluía uma perspectiva religiosa que, de modo implícito, opunha-se ao desenvolvimento do tipo de instituição na qual se converteu a antiga Igreja católica. Aqueles que esperavam “tornarem-se Cristo” possivelmente não reconheceriam as estruturas institucionais da igreja — seus bispos, padres, credos, cânones ou rituais — como detentoras da autoridade final.
PAGELS, Elaine, “Gnosis: autoconhecimento como conhecimento de Deus”, Os Evangelhos gnósticos. Trad. de Marisa Motta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
[…] PAGELS, Elaine, “Gnosis: autoconhecimento como conhecimento de Deus”, in: Os Evangelhos gnósticos. Trad. de Marisa Motta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. Disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/02/16/gnosis-elaine-pagels/ […]
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[…] PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnósticos. Trad. de Marisa Motta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. Excerto: “Gnosis: autoconhecimento como conhecimento de Deus”, disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/02/16/gnosis-elaine-pagels/ […]
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