“No início era a crise” – Marilia FIORILLO

Quanto mais o universo parece ser compreensível, mais ele se mostra sem objetivo.

STEVEN WEINBERG, Os três primeiros minutos

Os estudiosos de toda parte do mundo que se encontrariam em 1966 na Sicília para discutir o gnosticismo também desencadearam uma pequena guerra de opiniões, mais suave que a dos primeiros padres. O desfecho do encontro histórico sobre o gnosticismo, o Colóquio de Messina, foi um armistício, com concessões de lado a lado. Aceitou-se que Gnose e Gnosticismo eram termos que podiam ser usados em separado; o último, para episódios históricos, como os sistemas combatidos por Irineu e Tertuliano no século II d.C., e o primeiro como um termo mais genérico, o “conhecimento dos divinos mistérios reservados a uma elite”. Além disso, deliberou-se que todo gnosticismo, para merecer o nome, deveria ter:

  1. Uma cosmologia inspirada na idéia da centelha divina que se perdeu e se espalhou entre os homens, e que precisa ser desperta e reintegrada.
  2. Um dualismo anticósmico. Vimos que, para o gnóstico, o mundo foi um deslize da divindade, e que a tarefa não é só recuperar a integridade humana, mas criar condições para que a divindade retorne do exílio a seu lugar de direito. O postulado gnóstico de que o Deus supremo não é o criador do mundo tem uma implicação bastante prática — os que se acham autoridades não passariam de presunçosos falsos líderes, e essa duplicidade de comando apenas espelha a duplicidade da história cósmica. É imperativo que a divindade recupere sua alma integral, seu pneuma. Trata-se, portanto, de uma concepção dualista que leva a um desfecho monista. O cosmos devastado, arquitetado por um demiurgo inferior, pode ser reformado.

Outra decisão disputada do Colóquio foi a de que nem toda Gnose é Gnosticismo. A gnose gnóstica, para usar o pleonasmo enfático, seria só aquela que insiste na identidade entre o conhecedor, o objeto do conhecimento (a divindade) e os meios de conhecer (a gnose propriamente dita). Assim, a taxonomia foi completada, e a história reabilitada: apesar das descontinuidades, saltos e solavancos, existia uma história mundial do gnosticismo, detectável em épocas e latitudes diferentes, dos sethianos dos primeiros séculos aos maniqueus, aos paulicianos, bogomil e cátaros na Idade Média, e aos mandeanos do século XXI.

Entender o gnosticismo é captar a radiação de suas nuances, seu espectro de cores. O gnóstico não medita apenas sobre Deus, o universo, a vida e a imortalidade, mas sobre o próprio processo de conhecimento. Interessam-lhe ele próprio e a divindade, o cosmos e o mundo — nessa ordem. De resto, suas principais indagações são as convencionais em toda religião. Primeira: qual foi o enredo da Criação? Segunda: que correspondência há entre corpo e espírito, terreno e divino? Terceira: quem é o homem, para além da máscara da aparência? Quarta: como o homem se esquivará do mal e conquistará a imortalidade?

As quatro respostas são excêntricas:

Primeira: o roteiro da história da Criação é o de uma tragédia, cheia de som e fúria; é o drama de um Deus que foi vítima de seu próprio destino e teve de sair de cena; é o épico de numerosos insucessos, fracasso sobre fracasso, derrota sobre derrota; até se chegar ao mais imperfeito dos mundos, o nosso.

Segunda: a matéria é um desprezível fardo para o espírito.

Terceira: o homem é um Deus Absconditus, ou pelo menos tem essa vocação; ele está acima de tudo que há no cosmos, pois traz em si um fragmento da divindade.

Quarta: o mal é tão somente a ignorância.

E o que é conhecer, por fim?

Conhecer é relembrar. O homem só se livrará de sua condição decaída quando reconhecer a nobreza de sua origem, que esqueceu. A sabedoria é a única terapêutica contra o mal. “Ao olhar para Deus você enxergará a si mesmo”, dizem as “Sentenças de Sextus”.

Essas são as linhas gerais da teologia, cosmologia, antropologia e teoria da salvação dos gnósticos: um Deus remoto; uma matéria maléfica; o homem divinizado, e a terapia do conhecimento. O conhecimento, aliás, joga um papel decisivo, positivo ou negativo, em cada um desses tópicos. A começar da Criação, que foi um episódio de crise de conhecimento da divindade — um equívoco, um deslize, um gesto canhestro, a queda de Sophia (ou sabedoria). A partir dessa primeira falha da Sabedoria, outros enganos se sucederam. A culminância desse processo de ignorância crescente, no qual formigam éons inferiores, é a escravização do homem à heimarmene ou àquilo que lhe cabe pelo destino. Assim, ora são as lacunas no conhecimento, ora o ímpeto de conhecer, que acionam toda a mitologia gnóstica: causam o exílio da divindade, a defeituosa mecânica do cosmos, a deplorável
condição humana e, por sorte, também a chance de remendar tanto erro.

Tudo se resumiria a um “grande movimento do conhecimento”, primeiro num decrescendo e depois num exaltado crescendo. A fileira de mal-entendidos que começou com o próprio início dos tempos só terminará quando o eleito assumir as rédeas e iniciar a escalada ascendente da gnose. A coreografia cósmica abre com uma dança desastrada da divindade, que sem querer pisa em falso; evolui para duetos e trios de subdivindades mal-ensaiadas, éons fora de ritmo, e termina numa estrondosa vaia para o corpo de baile da humanidade. Nessa obra-prima do anticlímax, cabe aos eleitos, às vezes chamados de perfeitos ou solitários, reverter a tragicomédia de enganos. Ao fazê-lo, cuidando de salvar sua performance, eles estarão simultaneamente salvando a reputação do diretor do espetáculo, que está nos bastidores. A gnose gnóstica é um modo individual de reformar o universal, o cosmos inteiro.

*

A humanidade, para o gnóstico, não é culpada pelo decadente estado das coisas. Se houve pecado original, ele brotou dentro da divindade, e não foi pecado, mas deslize. Adão não é um transgressor e sim uma vítima, seja da opressão dos arcontes (nos sistemas dos valentinianos, por exemplo), seja da Queda primordial que o levou de roldão, Queda que coincide com a própria Criação. Estando o homem previamente absolvido de qualquer responsabilidade pelas mazelas do mundo, o culto ao sofrimento, tão caro ao catolicismo, torna-se desnecessário. Como disse Jonas, as próprias premissas da doutrina “tornam o gnosticismo incapaz de admitir qualquer sentido mais sério na encarnação e na cruz”. Se o homem não foi o causador dos males, Deus não precisa fingir-se de homem para resgatar uma culpa inexistente.

O emanacionismo, isto é, essa dinâmica de desdobramentos para cima e para baixo, é o eixo temporal do mito gnóstico — gradações de carências e perdas que deverão ser seguidas de gradações de conquistas e êxitos. O eixo espacial são as chamadas esferas ou éons, onde tais gradações se materializam. O pré-socrático Heráclito afirmava que só o movimento existe — nunca se atravessa duas vezes o mesmo rio, pois a temperatura da água, a textura do leito, a sensibilidade dos pés e a pressa do viajante jamais serão as mesmas. A mente gnóstica é heraclitiana: vê tudo em perpétua mutação, cada episódio como o prelúdio do episódio seguinte. “É uma metafísica do puro movimento e do acontecimento”, escreveu Jonas.

Esse dinamismo descomedido — constante fluxo e refluxo, progressos que são separações e rompimentos — também afeta a própria divindade, que, do repouso de sua “eterna preexistência” foi atirada na história do mundo. Por isso, para o gnóstico, a Criação já é Queda. E, conseqüentemente, a Salvação só pode ser Devolução, o regresso para o alto. Muito nesse esquema se assemelha à teoria das emanações de Plotino, o expoente do neoplatonismo no período. Na metafísica plotiniana descrita nas Enéadas, essa série de espelhamentos ou emanações são sucessivas dispersões do “Um”, a realidade última da qual tudo provém. A cada afastamento progressivo do Um, mais defeituosa é a realidade emanada, como numa cadeia de irradiações que vão se enfraquecendo. Mas o cosmos, para os neoplatônicos, não tem a conotação depreciativa dada pelos gnósticos. Aliás, foi o desacordo entre gnósticos e neoplatônicos sobre a natureza do cosmos ondulante que levou Plotino a dedicar um de seus capítulos a eles, melhor, contra eles ou “Contra os Gnósticos”. Para o neoplatonismo, a matéria pode ser a derradeira e inferior emanação da Divindade, mas não há uma ruptura essencial na qualidade do universo. Os neoplatônicos são otimistas. Onde eles viam harmonia, os gnósticos só enxergavam catástrofe.

*

“No início era a crise” — assim seria a primeira frase de uma Bíblia gnóstica, se eles conseguissem a proeza de se contentar com uma única Escritura. E já que no início foi a Crise, e não o Verbo, o mundo corpóreo é o produto terminal desse épico do declínio. O drama, num só ato, de Criação e Queda, requer protagonistas à altura: exorbitantes, impulsivos, expressivos, barulhentos. O emanacionismo plotiniano é abstrato, impessoal e contido — Bach no piano de Glenn Gould. As quedas gnósticas são destemperadas: os agudos da Traviata na voz de Callas, o chiaro-scuro de uma tela de Caravaggio, a agitação daquelas memoráveis pacientes de Charcot — intensidade no limite da histeria, estardalhaço, promiscuidade de impulsos, vontades e afetos feéricos. Uma parafernália emotiva que arrepiaria o recatado Plotino, de quem se diz que às vezes parecia ter vergonha de possuir um corpo. Eis como ele descreve a descomedida insensatez gnóstica: “Eles exclamam apenas, ‘Olhem para Deus!’ mas não dizem a ninguém para onde ou como olhar.” E acrescenta que são incongruentes, ao terem um alto conceito de si mesmos e um péssimo conceito de Deus: “Como poderia Ele [Deus] ser indiferente ao universo inteiro no qual existimos?… Assim é a blasfêmia de um de seus escritores.” Os gnósticos têm um ego hipertrofiado, um excesso de tolma (arrogância), que ele ironiza: “Se Deus não está no mundo [como afirmam os gnósticos], então não estará em vocês e, assim, vocês não poderão ter nada a dizer a respeito d’Ele.”

Plotino considerava o dualismo dos gnósticos coisa de amador, resultado de uma má digestão de Platão: “Talvez o ódio desta escola pelo corpóreo se deva à leitura que eles fazem de Platão invectivando contra o corpo como um sério estorvo à alma e declarando que o corpóreo é caracteristicamente inferior.” Mas esse dualismo exorbitante encobre um monismo de fundo. Se os fenômenos, para os gnósticos, se manifestam por meio de pares de opostos — corpo e alma, Deus e demiurgo, luz e escuridão — toda essa agitação resulta da falha de um único e ímpar Princípio Primeiro, indivisível e absoluto — o Deus em exílio.

Assim, nem mesmo o gnosticismo é tão especial: também ele tem a nostalgia do Um, do estado indiviso, de fusão idílica. O mal-estar do homem nada mais seria do que a sonegação desse desejo, e a perpetuação da cisão e do alheamento. O retorno ao Um é o devaneio central do pensamento gnóstico, mesmo que seu modo de operar seja por meio do “dois”, de termos antitéticos que jamais produzem sínteses. As oposições são inconciliáveis, as polaridades irredutíveis, mas lá adiante, no horizonte, a gnose quer providenciar uma reconciliação, fazendo as pazes com o cosmos.

Apesar de falível, o Deus dos gnósticos jamais é confundido com o Criador. Ou com Rei, Juiz, Messias. Preferem chamá-lo Luz, Espírito, Pai ou o Bem. Está cercado de personas ou aspectos de sua perfeição (o divino reino do Pleroma). Entre elas está o Anthropos (o homem primordial, o Adão que congrega o corpo de todos os homens), e também Sophia, a mais jovem e atrevida dos éons, e Jesus ou Cristo. Esse Deus, embora intangível, é também imanente, pois está contido na centelha que subsiste no homem. Seu magno exílio se repete na multidão de pequenos exílios de suas criaturas. Felizmente a prisão corporal, rasteiro patamar da divina decadência, pode ser revertida. Como tudo é movimento, a chance de tomar impulso, girar e inverter a direção é bem plausível. Há no eleito — noção, aliás, que se encontra também em Paulo, que os chama de pneumáticos — uma qualidade inata, uma espécie de DNA espiritual que o impele de volta à casa.

É por isso que a ignorância, para eles, não é falta de alguma coisa, uma privação. É o inverso, um excesso: uma sobrecarga que cega, uma força que paralisa, um poder narcotizante. Ignorante não significa aquele que sabe pouco, mas aquele que prefere não saber. Basta evocar as imagens que eles associam à ignorância: embriaguez, sono, intoxicação, auto-esquecimento. A gnose tem um efeito regenerador sobre essa intoxicação. É um clarão sobre passado e futuro, como sugere este texto valentiniano: “o conhecimento de quem somos, do que nos tornamos, de onde nos encontramos, de para onde fomos lançados e para onde nos apressamos; a partir de onde nos redimimos; do que é o nascimento e o renascimento.” A meta gnóstica, nada modesta, coloca o indivíduo no centro do universo. A conversão é para os tolos; para eles, a verdadeira revelação é olhar para si mesmos.

*

O gnosticismo pode não ter pátria nem idade certa, mas foi no século II e no início do III que viveu seus melhores dias. Primeiro com o valentianismo e o marcionismo, na região do Mediterrâneo, depois com o maniqueísmo, mais a leste. Esses dias felizes aconteceram durante a “era da ansiedade”, como a definiu o filósofo Eric Dodds, tomando a expressão de um poema de seu amigo W.H. Auden. Todas as eras são de ansiedade, pode-se objetar. Pode-se protestar, inclusive, que não há sequer “eras” — elas estão na cabeça dos historiadores, que meio arbitrariamente decidem fatiar a vida em períodos, enquanto aqueles que as vivem jamais as classificariam como tal.

Mas os anos compreendidos entre a ascensão de Marco Aurélio (161) e a conversão de Constantino (312) foram singularmente marcados por um extremo caos econômico e social, e muita insegurança política. Em tempos assim sombrios, certas preocupações se tornam mais prementes. A pergunta “para que estou aqui, neste mundo?” só se torna obsessiva quando as coisas se complicam. Não é uma pergunta que o homem feliz se faça, já que uma vida feliz é sua própria justificativa.

Quando os sentimentos de desolação e desesperança predominam, quando a ansiedade se torna endêmica, o misticismo floresce. Miséria e misticismo geralmente vêm juntos — são como que feitos um para o outro. E embora relatem experiências parecidas, cada místico, ou experiência mística, é irrepetível. Podem ser dualistas, monistas, teístas ou panteístas. Gregários ou reclusos, ascéticos ou libertinos. Fazem alianças com as mais diversas filosofias e visões de mundo, desde que nelas haja espaço para suas demandas emocionais. Na nebulosa mística cabem desde a efusiva alegria de um poeta como Walt Whitman à sinistra escuridão de João da Cruz, a timidez de Plotino e o voluntarismo dos gnósticos: “o seráfico e a serpente”, lado a lado, na expressão do psicólogo William James. Mas há algo comum a todos os místicos, além da inefabilidade do que sentem e da pouca exatidão do que descrevem. Místicos, gnósticos e heréticos são especialistas em desvirtuar o que os ortodoxos chamariam de sentido literal. Assim como a Eneida de Virgílio era consultada como um oráculo da Idade Média (um I Ching bem mais adequado ao paladar ocidental), os textos sagrados, na mão deles, ganham uma espécie de caráter oracular, de rejuvenescimento e de sentidos impensáveis. Isso não acontece por uma demanda intelectual, mas por uma urgência real: para que a vida se torne suportável. Algo que os intelectos puros, com sua habitual distração, demoram a notar. Místicos e gnósticos sempre lerão de trás para frente, quando não de ponta-cabeça.

Em tempos desatinados, a terapêutica do irracional prospera, e seus adeptos se multiplicam. A filosofia racionalista é uma aristocracia do pensamento, que pode se dar ao luxo de ignorar os terrores mais primitivos — mesmo porque não saberia muito bem o que fazer com eles. O misticismo, em vez disso, trata a angústia com deferência, dá-lhe crédito e oferece o esperado consolo a seu portador. O gnosticismo fez isso, a seu modo. Mas, para se habilitar, precisou de uma longa preparação no caldo da cultura helenística.


FIORILLO, Marilia, O Deus exilado: breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

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