“Do bom uso de Cioran” – François BOTT

La Nouvelle Revue Française, nr. 368, setembro de 1983

Os grandes escritores nos dão todas as cartas. Eles nos dão uma “mão” generosa, jogam um “straight flush”.[1] Cabe a nós então jogar, ter cuidado com o destino e com nós mesmos, com as astúcias do adversário que se dissimula em nossos pensamentos, com a pretensão que cega a nossa razão, com a parcimônia que contraria a nossa coragem. Assim, cabe a nós jogar o jogo e ler Cioran, sem ingratidão, já que ele nos proporciona tão belos livros, ele mesmo comentando, na última edição da NRF, o seu Breviário de decomposição.[2]

Em primeiro lugar, retenhamos esta confissão: “O que sempre me seduziu na negação é o dom de tomar o lugar de tudo e de todos, de ser uma espécie de demiurgo, de dispor do mundo como se tivesse colaborado na sua aparição e depois tivesse o direito, e mesmo o dever, de precipitar a sua queda.”

Por baixo destas palavras, transparece um homem que comete, com desvergonha juvenil, grande parte das facetadas que permite o desespero.

“Extraí o Breviário“, diz ele, “de minhas profundezas para injuriar a vida e para me injuriar. O resultado? Suportei-me melhor, assim como suportei melhor a vida. Cada um se cuida como pode.” A obra de Cioran não é um remédio apenas para o seu autor. Se soubermos como utilizá-lo, torna-se um dos remédios mais eficazes contra a melancolia. Eis o paradoxo do pessimismo.

Cioran conclui o seu texto evocando a sua relação com a nossa língua. Afirma que não deveria ter “escolhido o francês”: “[…] não combino com o seu aspecto distinto, está nos antípodas da minha natureza, das minhas explosões, do meu eu verdadeiro e dos meus tipos de miséria. […] Ora, é precisamente por causa dessa incompatibilidade que me afeiçoei a ele […] Hoje, que essa língua está em pleno declínio, o que me entristece mais é constatar que os franceses não parecem sofrer com isso. E sou eu, refugo dos Bálcãs, que me angustio por vê-la desaparecer. Pois bem, desaparecerei, inconsolável, junto com ela!”

Muitos de nossos compatriotas deveriam meditar sobre estas palavras, no momento
em que os imigrantes, as pessoas “vindas de alhures”,[3] como diz Cioran, estão a experimentar o desfavor que conhecemos.


[1] Ils nous donnent une « quinte flush », no original francês ; a straight flush, em inglês. Na linguagem do poker, uma sequência de cinco cartas do mesmo naipe.

[2] Trata-se de um breve texto sobre a sua estreia literária em língua francesa, com o Précis de décomposition (1949), uma anamnese que seria incluída no penúltimo livro de Cioran, Exercícios de admiração: ensaios e perfis (1986), com o título “Relendo…” [En relisant…] (para as passagens citadas por François Bott, utilizamos a tradução de José Thomaz Brum, Rio de Janeiro, Rocco, 2011).

[3] Les gens « venus d’ailleurs », no original francês.


BOTT, François, “Du bon usage de Cioran”, N.R.F., nr. 368, setembro de 1983. Trad. do francês de Rodrigo Menezes.

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