Enquanto permanece enfeitiçado e apaixonado pelas Ilusões em sua juventude, Cioran evoca, em oposição àquelas, as Essências, dando indícios de querer pensar metafisicamente uma Alma imortal (substancial, essencial, “divina”), assim como “Deus”, “eternidade”, “absoluto”. A oposição platônica entre Ilusões e Essências, no Livro das Ilusões, revela um Cioran ainda incapaz de tirar as últimas consequências do anúncio de Nietzsche, de que “o mundo tornou-se fábula“: quando é abolido o “mundo verdadeiro”, “das essências”, abole-se ao mesmo tempo a sua contrapartida “ilusória” ou “aparente”, o mundo sensível.
Não amar a vida é o maior dos crimes. E quem são os responsáveis por ele?
CIORAN, O Livro dos ilusões (1936)
Todos os que não gostam das aparências e dividem o mundo em essências e fenômenos. Esses amam o mar mas não suas ondas;
Todos os que não vivem as aparências como essências absolutas. Para eles o mundo começa para além de uma flor, de um sorriso, de um beijo;
Todos os que na individuação não veem uma realidade autônoma, mas as ondulações de uma substância inacessível. Esses não amam a vida, porque a morte de um ser não é uma perda na existência.
Com efeito, o jovem autor do Livro das ilusões mostra-se enredado na questão capital colocada por Nietzsche, após Schopenhauer: É possível amar a vida? É possível dizer sim ao mundo e ao fatum da existência?
Para quem a vida é a realidade suprema, sem ser uma evidência, não seria “se podemos ou não amar a vida” a pergunta que mais pode atormentá-lo? Perturbadora e deliciosa incerteza, mas que requer uma resposta. É fascinante e amargo ao mesmo tempo não saber se se ama ou não a vida. Preferiríamos não ter de dizer um sim ou um não, só para não dissipar uma inquietude prazerosa. Um sim significa a renúncia a conceber e sentir outra vida; um não implica medo do caráter ilusório de outros mundos. Nietzsche se enganou quando, absorvido na revelação da vida, descobriu que a vontade de potência era o problema central e a modalidade essencial do ser. O homem colocado diante da vida quer saber se pode conceder-lhe seu último assentimento. A vontade de potência não é o problema essencial do homem; este pode ser forte sem ter nada.
CIORAN, O Livro das ilusões (1936)
Com o passar dos anos, e após a grande reviravolta, Cioran vai conjurar as Ilusões, ao contrário de antes, declarando-se agora lucidamente desiludido, “indizivelmente normal”, livre dos delírios de outrora. “Como é fácil julgar-se um deus pelo coração, e como é difícil sê-lo pelo espírito! E com que quantidade de ilusões devo ter nascido para poder perder uma a cada dia! A vida é um milagre que a amargura destrói.” (Breviário de decomposição)
O seu pensamento tende doravante, cada vez mais, a uma concepção “antimetafísica” da existência em sua imanência (sem dualismo de “mundos” verdadeiro-aparente), como um fenômeno misterioso e nulo, transitório, finito, sem razão, sentido ou finalidade. Opera-se a transição entre um pensamento que afirma a primazia ontológica de uma necessidade negativa, Fatalidade (e a violência subjetiva do espírito para enfrentá-la, resistir-lhe), a um pensamento que afirma a primazia ontológica do Acaso, ou Contingência (e a ironia, a frivolidade, o diletantismo do espírito que lhe são apropriados).
Adentraríamos aqui a teoria budista da “geração/originação interdependente”, com sua concepção não teísta nem essencialista da existência; nas palavras de Cioran, trata-se da consciência de não ser senão um agregado,
o sentimento cada vez mais vivo de ser apenas o ponto de encontro de alguns elementos, soldados por um instante. O ‘eu’, concebido como um dado substancial e irredutível, inquieta mais do que tranquiliza: como aceitar que termine isto que parecia subsistir tão bem? Postulemos o engano universal por precaução ou por cuidado terapêutico. Ao medo de que não haja nada sucede o de que haja alguma coisa. É muito mais cômodo dar adeus ao não-ser do que ao ser. Não que este mundo não exista, mas sua realidade não é tal. Tudo tem ares de existir e nada existe”.
CIORAN, Paléontologie, Le mauvais démiurge (1969)
Antes, era o contrário: o jovem Cioran temia descobrir que nada existe, esforçando-se por acreditar que algo existe, tudo existe, inclusive o que não existe. Bastava uma vontade apaixonada, tensionada, a alma delirante, incendiária, e um bocado de vocação poética. Antes, ele necessitava do Mundo, nem que fosse para negá-lo, para declará-lo intolerável, e para ter a ilusão de despedir-se de algo, para orgulhar-se da proeza de virar as costas ao que é.
Depois, fará de si um “exilado metafísico”, o “homem-fora-de-tudo”, um “estrangeiro para a polícia, para Deus, para mim mesmo”. Em La Chute dans le temps, ele afirma que nous ne sommes réellement nous-mêmes que lorsque, dressés en face de soi, nous ne coïncidons avec rien, pas même avec notre singularité [Não somos nós mesmos senão quando, situados diante de si, não coincidimos com nada, nem mesmo com a nossa singularidade]. Empenhado numa sabedoria negativa de vida-e-morte (sabedoria da insegurança e da contingência radicais), combaterá suas certezas com dúvidas, e suas dúvidas, com contraverdades (“verdades de temperamento”). “Cada um se cuida como pode”.
Cioran conta que, após a publicação do Breviário em espanhol, dois estudantes andaluzes lhe perguntaram como era possível viver sin fundamentación.
Respondi-lhes que era verdade não ter encontrado nunca uma base sólida em lugar nenhum e, no entanto, ter conseguido subsistir porque, com os anos, a gente se habitua a tudo, até a vertigem. […] E depois não estamos despertos e não nos interrogamos o tempo todo, sendo a lucidez absoluta incompatível com a respiração. Se estivéssemos, a cada momento, conscientes do que sabemos, se, por exemplo, a sensação da falta de fundamento fosse ao mesmo tempo contínua e intensa, cometeríamos suicídio ou cairíamos na idiotia. Só existimos graças aos momentos em que esquecemos certas verdades e isso porque durante esses intervalos acumulamos a energia que nos permite enfrentar as ditas verdades.
“Relendo…”, Exercícios de admiração: ensaios e perfis
Viver sin fundamentación significa viver sem a crença em Deus ou em qualquer outro suposto absoluto que sirva de fundamento, consolo, justificação (dar uma “fachada ao Nada”, diz Cioran), limitando-se a reconhecer o Acaso ou a Contingência das coisas, da existência enquanto tal. Um texto que elucida bem essa vida filosófica sin fundamentación (que não é fatalismo) encontra-se em Le mauvais démiurge. No ensaio intitulado “Paleontologia”, Cioran postula uma tripla fatalidade que o pensamento do vazio dissipa:
Discernir que o que és não é tu, que o que possuis não é teu, não ser mais cúmplice de nada, nem mesmo de tua própria vida – eis o que é ver com justeza, eis o que é descer até a raiz nula de tudo. Quanto mais se abre à vacuidade e se impregna dela, mais se subtrai à fatalidade de ser si mesmo, de ser homem, de ser vivente. Se tudo é vazio, esta tripla fatalidade o será também. Subitamente, a magia do trágico é cortada. O herói que soçobra valeria tão pouco quanto aquele que triunfa? Nada de mais prestigioso do que um belo final, caso este mundo seja real; se não for, é pura estupidez extasiar-se em um desenlace qualquer. Dignar-se a ter um “destino”, estar cegado pelo “extraordinário” ou apenas tentado por ele, prova que se permanece fechado a toda verdade superior, que se está longe de possuir o “olho do Conhecimento”.
MENEZES, Rodrigo Inácio R. Sá, “Cioran: ilusões, essências, desilusões”, Portal E. M. Cioran Brasil, 2 de março de 2022.