O que sabiam os gnósticos? A ponto de torná-los tão incômodos, indesejáveis, ameaçadores? Não eram segredos ocultos, fórmulas mágicas, amuletos encantados, abracadabras. O que os gnósticos conheciam era o poder da imaginação. Conheciam e punham em prática. Pois o gnosticismo é tudo, menos um quietismo.
As nuances das doutrinas gnósticas são tantas que, até hoje, atrapalha-se quem tenta classificá-las. Falar em gnosticismo é falar de combinações de idéias, permutações de sistemas, mesclas, improvisações, “tantas sentenças quantas forem as cabeças”, como caçoava um de seus grandes adversários, o padre da Igreja Tertuliano de Cartago. Por sorte, esse enigma teve um intérprete à altura, igualmente imaginativo, mas superlativamente mais claro: o filósofo Hans Jonas (1903-1993). O judeu alemão Jonas estudou com o filósofo Martin Heidegger e com o teólogo Rudolph Bultmann na década de 1920, época em que conheceu Hannah Arendt (que se tornaria famosa com sua análise do totalitarismo), de quem ele se tornaria amigo por toda a vida. Nos anos 1930, como tantos intelectuais que fugiam da ascensão do nazismo, emigrou para a Inglaterra, e em seguida para a Palestina, o Canadá e Nova York, onde ensinou filosofia na New School of Social Research. Sua obra Gnosis und spätantiker Geist, publicada em 1934 na Alemanha, é um clássico sobre o tema, pois sua original abordagem permitiu, enfim, decifrar a esfinge: Jonas trata o gnosticismo não como um fato historicamente circunscrito, mas como um fenômeno existencial. Mais tarde, em seu livro Mortality and Morality, a search for the good after Auschwitz (“Mortalidade e moralidade, uma investigação sobre o bem após Auschwitz”), Jonas esboçaria uma peculiar teologia, segundo a qual Deus está longe de ser o criador onipotente, como querem as religiões monoteístas, mas é um Ser exilado, perdido. Esse Deus ainda possui certo poder de persuasão sobre os acontecimentos, mas lhe falta a capacidade de coibir ou proibir — influencia, mas não decide nada. Não está morto, como disseram, mas paralisado, em estado de choque. A essa perda de poder soma-se outra desvantagem: o próprio Deus pode ser afetado pelo que ocorre no universo, aí compreendidas, inclusive, as ações humanas.
O tema da criatura capaz de regenerar o criador é retomado por Jonas em “O conceito de Deus após Auschwitz”. Monstruosidades como as que aconteceram em Auschwitz, ele escreve (a velha questão do mal, tão cara aos gnósticos), não podem ser explicadas pelos argumentos tradicionais, e nenhuma teodicéia, ou tratado sobre a bondade de Deus, conseguiria justificar tais abominações, por mais piruetas intelectuais que empreenda.
Horrores como os ocorridos em Auschwitz — ou em Kosovo, Sarajevo, Ruanda, Darfur, Libéria, Bagdá, Cabul; a lista é numerosa e sempre passível de atualização — nos convencem de que o mundo, se um dia foi criação divina, já há muito deixou de ser. Ou Deus não era feito só de bondade, ou não participou do último ato da Criação. Assim, caso se queira restaurar sua presença, é preciso redefinir seu papel. Se Ele existe, não tem nenhuma responsabilidade pelo curso da história. Seria inimaginável que, em sua onipotência e onisciência, e, sobretudo, onipresença, sancionasse tantas atrocidades.
É a cara feia da própria história, pois, que nos obriga a redefini-lo, já que Ele não pode e nem deve ser associado ao Senhor da barbárie.
Mas como manter Deus, ou pelo menos a idéia de Deus, jogando-o para fora do mundo?
A solução de Jonas é mais ou menos aquela de Kant, quando este “despertou do sono dogmático” da metafísica graças à terapêutica leitura do cético Hume. Kant salvou a metafísica acrescentando a ela o filtro do empirismo — estava inventada a “metafísica transcendental”, cujo grande proveito foi o de resolver a eterna angústia sobre a validade do conhecimento estipulando que a verdade de uma coisa sempre estará condicionada aos óculos de nossa percepção. Jonas fez parecido: manteve Deus, como Kant manteve a metafísica, mas o relativizou. As prerrogativas continuavam lá, apenas temporariamente suspensas. Em vez do Deus que havia concebido e continua interferindo nos negócios do cosmos, como querem os monoteísmos, Jonas sugere um Deus que, justamente porque concebeu e interferiu, acabou perdendo sua força. Foi gradativamente se debilitando ao se envolver demais em seu próprio trabalho. O Deus transcendental, portanto, desorientou-se pelo meio do caminho: hoje é um Deus no ostracismo, exilado, distante. Separado de sua Criação, expulso por suas próprias criaturas, e tremendamente necessitado da ajuda delas para voltar à ativa.
A definição tem sabor claramente gnóstico. A triste sina do Deus de Jonas é a mesma vivida pelo Deus dos valentinianos, sethianos, marcionitas e outros heréticos dos primeiros séculos. O esquema se repete: havia um ser de absoluta perfeição que, por generosidade, resolveu dar parte de si para criar o universo; sua decisão mostrou-se uma temeridade, como a do incauto rei Lear ao dividir seus domínios entre as filhas ingratas. Assim, o Deus original, fonte de tudo, que havia abdicado de seu sossego por um impulso de doar-se à infinita variedade do vir-a-ser, isto é, para ceder algo dele que materializasse as estrelas, os planetas, plantas e bichos e, equivocadamente, pessoas, ao abandonar seu repouso, condenou-se a vagar eternamente, longe dos seus.
Esse foi o erro primordial, a primeira Queda: ao deixar seu lugar, a divindade aventurou-se nos até então inexistentes tempo e espaço, no acidente e na circunstância, no efêmero e no imprevisível. Mergulhou com tanto ímpeto no propósito da Criação que esqueceu a rede de segurança. Concentrado em seus afazeres, Deus não tomou a precaução de deixar de reserva alguma porção de Si, para qualquer eventualidade. Entregou-se totalmente, como fazem os jovens apaixonados. Mas, como em todo romance, cedo ou tarde a realidade se impõe. E a realidade com que Deus se viu às voltas, no finalzinho de seu projeto, foi a de que sua obra se desgovernava, tomava rumos inesperados e, pior, estava totalmente fora de controle.
A divindade havia se comprometido tanto com o destino de sua Criação, havia gasto tanto de si, que não tinha mais potência para corrigir os erros de rota. Lear não teve alternativa a não ser enlouquecer e morrer. Deus tinha duas: podia desfazer o equívoco num piscar de olhos, destruindo o mundo, ou podia, por pura compaixão, permitir que o mundo, mesmo torto, continuasse existindo. Escolheu a segunda: preferiu poupar o mundo, mesmo que com isso esgotasse seu último fôlego. Dito e feito: o cosmos sobreviveu, mas Deus não se reconheceu mais nele. Desalojado, renunciou.
Na teologia mitopoética de Jonas, o tempo, o mundo e a vida desfiguraram a integridade divina. Deus se recusou a continuar sendo quem era para que o mundo pudesse existir. Esse esfacelamento do poder divino se agravou com a complexidade da evolução biológica. O aparecimento do homem no topo da escala evolutiva foi o golpe de misericórdia na autoridade divina: com o homem veio o livre-arbítrio, e com isso o mundo ficou à mercê dos inevitáveis “som e fúria” das sandices humanas. O mais melancólico, talvez, é que o projeto divino inicialmente imaginado se perderá no esquecimento do tempo, o mesmo tempo que havia corroído e corrompido sua integridade. Essa tragédia só não acontecerá se os próprios homens, por uma decisão moral, retomarem o plano original de Deus. Essa seria a função da ética: trazer de volta a justiça não só para os homens, mas para que Deus possa se sentir de novo à vontade em sua obra. Os justos vão restaurar o mundo para que, nele, haja lugar para Deus.
Evidentemente, o Deus de Jonas não precisa enviar seu Filho, já que Ele mesmo está padecendo com o espetáculo que involuntariamente criou e presencia, um circo de horrores tão pouco afeito à sua natureza. Ao Deus de Jonas, também, repugnam banhos de sangue, e o assassinato de seu próprio Filho lhe pareceria um sadismo e uma futilidade. Mas o principal não é que esse Deus abomina a luxúria do sofrimento — o que, diga-se de passagem, já seria uma revolução e tanto. O principal é que esse Deus é, acima de tudo, um fraco — em contraste com o que teologias, filosofias e tantos ismos preconizaram por milhares de anos. Ele é o criador usurpado e vítima de auto-sabotagem, o “omni” transformado em infra. A “divina majestade”, na mitoteologia de Jonas, vira uma “divina carência”: “Podemos ter a divina onipotência junto com a divina bondade somente ao preço da divina inescrutabilidade […] Os três atributos, bondade, poder e compreensão, estão em tal relação uns com os outros que a combinação de dois deles sempre exclui um terceiro.”
A onipotência transformou-se em impotência. Se Deus mostrou-se de mãos atadas em Auschwitz (e em Ruanda, Sarajevo, Darfur, a lista é interminável…) não foi porque queria, mas porque nada podia. Tinha abdicado de seus poderes discricionários para abrir espaço à história humana. Por isso a ética é tão importante para trazê-lo de volta. Os milagres de bondade e solidariedade que acontecem em situações-limite, os exemplos de coragem e compaixão de indivíduos isolados, as ações morais (freqüentemente inesperadas) de gente em Auschwitz, Ruanda, Sarajevo, Darfur são atos que, embora não venham desse Deus indefeso, o restauram. O “deus absconditus”, despojado de seus poderes e que se limita a observar a atividade dos homens “com atormentada respiração, esperança e súplica”, só voltará com o auxílio humano.
Em The Gnostic Religion: the message of the alien God and the beginnings of Christianity, Jonas abordou os movimentos gnósticos da Antiguidade tardia e propôs que fossem interpretados à luz da fenomenologia existencialista. Em vez de se engalfinhar com minúcias e discrepâncias históricas, devia-se perguntar sobre a origem existencial do gnosticismo, isto é, a que cenários de crise da mentalidade, ou das formas de consciência, ele corresponderia. Quais seriam, então, os traços típicos, transistóricos e a-históricos, do gnosticismo? Qual a feição da mentalidade gnóstica? Foi na morfologia — isto é, na forma, nas imagens, no estilo —, e não na genealogia, que ele capturou a essência do gnosticismo.
O traço central do pensamento gnóstico é o dualismo radical que governa a relação entre Deus e o mundo, e, analogamente, entre o homem e o mundo. A divindade é absolutamente transmundana, sua natureza alheia à do universo, que ela nem criou, nem governa, e do qual, aliás, é a completa antítese: à esfera divina da luz, remota e autocontida, opõe-se o cosmos como o domínio da escuridão e da corrupção. O mundo é obra de poderes inferiores que, embora mediadamente provindos d’Ele, não conhecem o verdadeiro Deus e obstaculizam ao conhecimento d’Ele no cosmos que governam.
O tema estava reequacionado. Tratava-se não de buscar respostas, mas de mudar as perguntas. E depois voltar ao ponto de partida, para verificar se as manifestações históricas supostamente gnósticas se ajustavam na moldura da definição tipológica do gnosticismo. Se sim, a tipologia estava certa. Se não, teria de ser refeita. Observando os sistemas gnósticos do mundo tardo-helenístico, Jonas testou suas novas perguntas, ou premissas, que eram basicamente duas:
- O gnosticismo é a convicção da identidade divina do homem, e de que esta diz respeito tanto à sua proveniência como ao seu destino.
- A gnose não se faz por procuração; é um processo estritamente pessoal, que permitiria ao indivíduo libertar-se do domínio do mal, isto é, do mundo material de vicissitudes.
Essas duas premissas cobriam todo o “campo de possíveis alternativas para a mente gnóstica”, sem exceção? Segundo Jonas, sim — e a elas se acrescentaria uma terceira exigência, o estilo. Pois outra condição indispensável para caracterizar um fenômeno como gnóstico é que ele possa ser reconhecido “de ouvido, musicalmente, como foi”. Parece subjetivo, e é. Em se tratando de gnosticismo, mais vale uma intuição que dúzias de abstrações.
Conceitos como dualismo, gnose ou busca individual não bastam por si só para deslindar a charada gnóstica. Tem de haver uma outra qualidade: a insolência. Só com esta última é que a definição se completa, pois o gnosticismo tem um humor, ou melhor, um mau humor peculiar.
Só existe gnosticismo onde houver impaciência, rebeldia, temperamento voluntarioso, irreverência e, sobretudo, muita imaginação. É por isso que o orfismo clássico do século V a.C., conhecido de Platão, está fora — ele pode antecipar o gosto pelo secreto e o dualismo ascético do gnosticismo, mas lhe falta completamente o humor gnóstico. Idem quanto aos cultos de mistério tão profusos na Antiguidade tardia, como os descritos em O asno de ouro, de Apuleio, que também vacilam em ousadia e rebeldia. É por isso, também, que a comunidade de Qumran, dos Manuscritos do Mar Morto, não tem nada de gnóstica, apesar das aparências: os essênios são piedosos demais, devotos demais, amantes demais de regras para se candidatarem à insolência gnóstica. Por mais dualista que seja sua doutrina, ou por mais profunda que tenha sido sua ruptura com o judaísmo oficial, os essênios eram essencialmente dogmáticos; queriam voltar às antigas prescrições, não tumultuá-las. Foram ultraconservadores, o avesso do espírito petulante e demolidor da mente gnóstica.
A retórica cristã propriamente dita nasce em meados do século II. Antes disso não havia uma preocupação particular com a sofisticada arte de persuadir. Os primeiros padres da Igreja eram pescadores de almas, e estavam mais ocupados em invectivar do que em embelezar a imagem da nova religião para o público culto. Queriam evangelizar, rápido e sem muita lucubração. Só mais tarde, quando o cristianismo percebe que é importante aliciar os poderosos, é que a retórica se torna capital. O cristianismo encorpou teologicamente quando começou a copiar mais e mais idéias e sintaxes gregas, para atrair as camadas letradas da população. Essa sofisticação do discurso alcançará o auge na Alexandria do século III, na obra de Clemente e Orígenes, que produzirão um amálgama incomum de platonismo e barbarismo, Sophia e pistis, intelecto e fé — um ajuste que não se repetirá mais dentro da Igreja.
Antes, porém, os evangelhos haviam lançado o gênero literário das “boas-novas”. Como gênero, deviam algo ao passado, tanto helenístico — as vidas dos imperadores e os escritos de Plutarco —, quanto judaico — a parábola. Outro empréstimo da cultura grega tinha sido o “entimema”, truque retórico em forma de silogismo com duas premissas, em vez de três. Aristóteles considerava o entimema menos rigoroso do que o silogismo clássico, mas, séculos depois e destinado a uma audiência predominantemente popular, o entimema devia ser mais convincente que a lógica cerrada de certos silogismos. Muitas figuras da retórica cristã, aliás, foram inspiradas na cultura helenística, como o recorrente tópico da elevação da alma ou o do mundo como palco de marionetes que se tomam por homens, mas na realidade são meras sombras do “homem interior”, este sim a verdadeira e
substancial pessoa.
A pregação cristã não é persuasão (como o discurso de um senador romano), mas proclamação. E não busca sua fundamentação em provas externas ou na coerência interna, mas se baseia na autoridade de quem fala e na capacidade de quem ouve. Agostinho de Hipona dizia que um bom ouvinte cristão acalenta seu interesse no texto não tanto ao analisá-lo cuidadosamente, mas ao pronunciá-lo energicamente. Paulo de Tarso, quando criticado como um simplista filosófico pelos dissidentes cristãos de Corinto, respondeu parecido: “Os judeus pedem sinais [a validação da tradição], os gregos buscam a sabedoria [a validação do intelecto] mas nós pregamos (kerussomen, proclamar) o Cristo crucificado.” Essa substituição da lógica pela comoção, e do arrazoado pelo ardor, terá sua culminância nos textos gnósticos. Foi com eles que a revolução estilística se completou e criou-se uma nova e prolixa sintaxe, inflada de neologismos, sobrecarregada de metonímias, um dilúvio de imagens e paráfrases.
Por ser exortação, e não deliberação, a retórica cristã é basicamente uma questão de eloqüência, pouco importando a consistência das provas externas ao discurso, ou a coesão do raciocínio. Se a retórica helenística dependia acima de tudo das habilidades do orador, na retórica cristã o que vale é a sintonia do ouvinte. A validade daquilo que é dito depende muito de quem ouve. Pois as palavras, enfim, pertencem a Deus, e não cabe ao homem persuadir, mas se deixar convencer. Daí a incessante repetição, em todo evangelho, apócrifo ou canônico, da fórmula “aquele que tem ouvidos, que ouça”. A comprovação da eficácia de um texto cabe à audiência, que pode ou não ter sido tocada pela graça. A qualidade do discurso, curiosamente, é um dom do ouvinte.
FIORILLO, Marília, “A fraqueza de Deus”, O Deus exilado: breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
[…] FIORILLO, Marilia, “A fraqueza de Deus”, in: O Deus exilado: breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/03/27/fraqueza-de-deus-marilia-fiorillo/ […]
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[…] FIORILLO, Marilia, “A fraqueza de Deus”, in: O Deus exilado: breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/03/27/fraqueza-de-deus-marilia-fiorillo/ […]
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