Buda e o budismo: a mais nova seleção de aforismos temáticos, extraídos e dispostos cronologicamente da primeira à última ocorrência dos termos-chave no conjunto da obra de Cioran. Confira aqui a seleção integral (as ocorrências das Entretiens e dos Cahiers serão incluídas posteriormente).
Se até o próprio Buda encontrou um subterfúgio para justificar a inutilidade do suicídio, não cabe então fazer a ninguém a menor objeção acerca da questão. É realmente espantoso que, do Buda até hoje, o problema do suicídio não tenha sido declarado assunto encerrado. É certo que o pensamento oficial nunca o abordou; mas por que um punhado de poetas e um par de filósofos ainda o discutem e o lembram? E esses inúmeros suicidas anônimos, como se atreveram a desonrar o nome de tão sábio personagem?
O Livro das Ilusões (1936)
Buda era um otimista insolente. Como não percebeu que não só tudo que existe é dor, mas também tudo que não existe? O sofrimento define tanto a existência quanto a inexistência. Pois não podemos conceber uma dimensão — da existência ou do nada — como não “ser” através do sofrimento. O que é o vazio, senão uma aspiração incompleta à dor? O Nirvana constitui um sofrimento etéreo, um grau mais espiritualizado de tormento. A ausência pode ser um déficit de existência, mas não de dor. Pois a dor precede tudo. Deus em primeiro lugar.
Lacrimi și sfinți (1937)
Não se pode entender o que significa “meditação” caso não se esteja acostumado a escutar o silêncio. Sua voz convida à renúncia. Todas as iniciações religiosas são imersões em suas profundezas. Comecei a compreender o mistério do Buda assim que o terror do silêncio se apoderou de mim. O silêncio cósmico ensina tantas coisas que só a covardia nos empurra para os braços deste mundo.
A religião é uma revelação diminuída do silêncio, uma dulcificação da lição de niilismo que nos inspiram seus sussurros, filtrados por nosso medo e nossa prudência… Assim, o silêncio se situa nas antípodas da vida.
Há algo de tão indefinível nesta palavra: vaidade – como se o Buda a tivesse sussurrado para mim em um cabaré.
A consciência do nada unida ao amor à vida?
Um Buda de boulevard…
Amurgul gândurilor (1940)
A autossuficiência moderna não tem limites: nos julgamos mais esclarecidos e mais profundos do que todos os séculos passados, esquecendo que o ensinamento de um Buda pôs milhares de seres ante o problema do nada, problema que imaginamos haver descoberto porque mudamos seus termos e introduzimos um pouquinho de erudição.
Breviário de decomposição (1949)
Ter dedicado à ideia da morte todas as horas que uma profissão teria exigido… Os extravasamentos metafísicos são próprios dos monges, dos libertinos e dos mendigos. Um emprego teria feito do próprio Buda um simples descontente.
Silogismos da amargura (1952)
O sorriso do Buda, esse sorriso que paira sobre o mundo, não ilumina as nossas faces. Quando muito, concebemos a felicidade; nunca a bem-aventurança, apanágio de civilizações assentes na ideia de salvação, na recusa de saborear os seus males, de neles se comprazer; mas, sibaritas da dor, rebentos de uma tradição masochista, qual de nós hesitaria entre o sermão de Benares e o Heautontimorúmeno? «Sou a ferida e o punhal», eis o nosso absoluto, a nossa eternidade.
A Tentação de existir (1956)
Posto que somos incapazes de vencer nossos males, cabe a nós cultivá-los e deleitar-nos com eles. Essa complacência teria parecido uma aberração aos olhos dos Antigos, que não admitiam nenhum prazer maior do que o de não sofrer. Menos razoáveis, nós pensamos de outra maneira, após vinte séculos em que a convulsão foi considerada um sinal de avanço espiritual. Acostumados a um Salvador contorcido, derrotado e carrancudo, somos incapazes de saborear a desenvoltura dos deuses antigos, ou o sorriso inesgotável de um Buda, imerso numa beatitude vegetal. O nirvâna, pensando bem, não parece ter tirado das plantas o seu segredo essencial? Só acedemos à libertação tomando como modelo uma forma de ser oposta à nossa.
La Chute dans le temps (1964)
Por mais que me atraia o budismo, o catarismo ou qualquer outro sistema ou dogma, mantenho um fundo de ceticismo que nada pode minar, e ao qual sempre retorno após cada uma de minhas explosões. Seja esse ceticismo congênito ou adquirido, parece-me em todo caso uma certeza, até mesmo uma libertação, quando toda outra forma de salvação ou desvaneceu ou me rejeita.
Le mauvais démiurge (1969)
Quando Mara, o Tentador, procura suplantar Buda, este diz-lhe, entre outras coisas: «Com que direito pretendes tu reinar sobre os homens e o universo? Porventura sofreste pelo conhecimento?»
É a questão capital, talvez a única, que devíamos colocar a nós próprios quando nos interrogamos acerca do que quer que seja, sobretudo acerca de um pensador. Nunca se fará devidamente a separação entre os que pagaram pelo mínimo passo em direcção ao conhecimento e aqueles, incomparavelmente mais numerosos, a quem foi distribuída uma sabedoria cómoda, indiferente, uma sabedoria sem provações.
«Um inimigo é tão útil como um Buda.» É mesmo isso. Uma vez que o nosso inimigo nos vigia, ele impede-nos de ceder. Ao assinalar, ao divulgar a mais pequena das nossas fraquezas, conduz-nos em linha recta à nossa salvação, tudo faz para que não sejamos indignos da ideia que criou de nós. Pelo que a nossa gratidão para com ele deveria ser também ilimitada.
Do inconveniente de ter nascido (1973)
No sermão de Benares, o Buda cita entre as causas do sofrimento a sede do devir e a sede do não-devir [la soif du devenir et la soif du non-devenir]. A primeira delas entende-se, mas por que a segunda? Perseguir o não-devir não é libertar-se? O que se visa aqui não é a meta, mas o caminho enquanto tal, a busca e o apego à busca. – Infelizmente, no caminho da libertação, apenas o caminho é interessante. A libertação [délivrance]? Não a atingimos, corremos na sua direção ela, sufocamos nela. O Nirvana mesmo — uma asfixia! A mais doce de todas, não obstante.
Écartèlement (1979)
Para compreender este homem apartado que é Beckett seria preciso nos determos na expressão “manter-se à parte”, divisa tácita de cada um de seus momentos, no que ela pressupõe de solidão e de obstinação subterrânea, na essência de um ser afastado que prossegue um trabalho implacável e sem fim. Diz-se, no budismo, daquele que busca a iluminação, que deve ser tão obstinado quanto “o rato que rói um caixão”. Todo escritor verdadeiro faz um esforço semelhante. É um destruidor que amplia a existência, que a enriquece minando-a.
Exercícios de admiração: ensaios e perfis (1986)
O nada para o budismo (na verdade para o Oriente em geral) não tem o significado sinistro que nós lhe atribuímos. Confunde-se com uma experiência-limite de luz, ou, se preferir, com um estado de eterna ausência luminosa, de vazio irradiante: é o ser que triunfou sobre todas as propriedades, ou melhor, um não-ser supremamente positivo que proporciona uma felicidade sem matéria, sem substrato, sem suporte em nenhum mundo que seja.
Aveux et anathèmes (1987)