A morte dos imperadores, o império da morte e outras obsessões – CIORAN

Amo as cabeças coroadas que sofreram da obsessão da morte. O medo nascido no conforto, o horror aumentado pelo poder e as obsessões alimentadas pela opulência conferem à meditação sobre a morte uma elegância atormentada e uma tortura suntuosa. A Pobreza e a Morte parecem duas flores em um buquê murcho, de tal modo que os pobres morrem como os ricos respiram. Felipe II no Escorial e Carlos V em Yuste não se retiraram para meditar sobre o limite de seu poder e de sua dominação, que não é outro senão a morte? Eles quiseram dominar a morte valendo-se da meditação para, elevando-se por cima dela, não ver que o poder era uma ilusão. No entanto, no final compreenderam que a descoberta da morte não pode nos tornar mais senhores de nada. Aquele que descobre a morte é igual ao mendigo, que se diferencia dos outros homens no que a morte não pode descobrir-lhe nada, pois está coberto por ela.

Quando Felipe II chamou seu filho e herdeiro em seu leito de morte e lhe disse: “Te chamei para que vejas onde acaba tudo, até a monarquia”, ou quando Carlos V assistiu ao seu próprio enterro, celebrado muito antes de morrer para que a intimidade do desenlace atenuasse seu medo, não estavam se transformando, sob o império do medo, em mendigos de seu próprio império? Ou a imperatriz Elizabete da Baviera, que escondia atrás de um leque, durante as recepções imperiais, uma expressão de resignação e de terror e se abandonava à morte que, segundo suas próprias palavras, “florescia” nela!

A insistente visão da morte só pode fazer de ti um mendigo. Que tantos reis solitários e tantos outros solitários sem coroa não tenham podido tirar essa consequência, tão espantosa para os mortais e tão banal para os santos, isso só pode ser explicado pela ausência desse grão de demência que, na linguagem celeste, chama-se santidade.

Quem pensou tudo sem tornar-se mendigo chama-se, na linguagem terrestre, filósofo. Pois quando os filósofos pensam em outro mundo, eles são contudo inaptos para ele.

Quando escuto o final de A paixão segundo São Mateus, compreendo esses homens que se suicidaram por impaciência do paraíso…

Um orgulho celeste me liga ao paraíso mais do que a humildade afasta os cristãos da terra. O que me distancia do cristianismo: a impossibilidade de conceber outra saída do mundo exceto o orgulho…

Mares e continentes me levaram a descobrir a terra. Mas meu coração está vazio dela…

A mulher não perdoa nenhuma inocência, como a vida não perdoa lucidez alguma.

O pensamento tem que ser virulento como uma gota de veneno, ou consolador como uma lágrima de anjo.

Qualquer instante, se o enchesse de mim, me tiraria do tempo. Se me fizesse vítima de mim mesmo, me arrastaria eternamente para a entrada de outros mundos.

Só sendo injusto com os santos podemos reconhecer justificação para este mundo.


CIORAN, Emil, O Livro das ilusões. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

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