“O filósofo e o marqueteiro: o ‘melhor dos mundos possíveis’ como conto do vigário publicitário” – Rodrigo MENEZES

Byung-Chul Han é um filósofo contemporâneo conhecido por sua crítica à assim-chamada “ditadura da positividade”, o que, numa sociedade da positividade, não pode soar senão como um terrível paradoxo: a positividade nunca constitui “ditadura”, só a negatividade.

É preciso entender o conceito de positividade trabalhado por Han em toda a sua amplitude: do conforto material ao otimismo, da obsessão pelo corpo perfeito ao sonho de imortalidade. O seu oposto, a negatividade, implica uma amplitude inversa: da miséria material à morte, da mera sobrevivência, precária, sem nenhuma dignidade, à falta de razão e vontade de viver.

Existe uma tendência a simplificar estes dois conceitos dialeticamente complementares, reduzindo-os a uma questão de crença, pensamento, atitude, estado de espírito (otimista ou pessimista), quando positividade e negatividade são instâncias subjetivas e objetivas da efetividade que perpassam todas as esferas da vida humana: do psicológico e “espiritual” ao sociológico e material. Esse reducionismo dos conceitos de positividade e negatividade contribui para a crença ingênua na possibilidade de customização total da vida, selecionando apenas “o positivo” e filtrando todo “o negativo”, como se a vida fosse, a exemplo de serviços de streaming, on-demand.

A recusa do sofrimento é uma reação imunológica da sociedade contemporânea a uma das mais permanentes formas de negatividade. A doença, que “prefigura a morte e acrescenta uma qualidade nova à vida” (Cioran), é outra instância de negatividade que não está ao nosso alcance escolher. A liberdade mesma, em todo o risco e perigo nela implicados, em oposição à segurança e à felicidade que esta comporta, é uma forma de negatividade. Não fosse assim, Sartre não diria que “estamos condenados a sermos livres”. O que mais se vê, hoje em dia, é a “liberdade” tornada slogan e travestida de positividade.

A ênfase na negatividade enquanto tal não faz o pessimista, assim como a ênfase na positividade não faz o otimista. Nietzsche é um ótimo exemplo de pensamento tragicamente comprometido com a negatividade da existência, sem por isso ser nem querer ser pessimista. Não é ele que contempla a possibilidade de um “pessimismo da fortitude”, que se traduz na “propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude existência?” (Nascimento da tragédia)

A positividade e a negatividade não se reduzem a conteúdos mentais, a dados culturais e simbólicos de valor meramente subjetivo. Recobrem inclusive as instâncias materiais da vida e, no que concerne à nossa realidade contemporânea específica, operam na intersecção entre consumismo, capitalismo e tecnologia. A positividade traduz-se objetivamente, em termos puramente operacionais e isentos de todo antropomorfismo, no imperativo ético da “transparência” que está hoje tão em alta, seja na boca de políticos inescrupulosos ou de empresas preocupadas com a imagem social, visando aumentar os lucros. Daí Sociedade da transparência, um dos livros de Byung-Chul Han, em que a “transparência” é tematizada como uma das principais instâncias contemporâneas da positividade. E um slogan ao alcance de todos. Nesta era do “dataísmo” (Harari), fala-se também em “transparência de dados”, de onde o Portal da Transparência, do Governo Federal Brasileiro (que anda meio desmoralizado em virtude de tantos silêncios de 100 anos decretados por Bolsonaro). E por falar em dados, “dataísmo”, outro bom exemplo da “ditadura da positividade” no mundo ocidental contemporâneo é a censura do YouTube a uma lista interminável de termos considerados politicamente incorretos, ofensivos ou incitadores (triggers, como “suicídio”), que os YouTubers aprenderam a escrever propositadamente errado e omitir de suas falas, ainda que o vídeo seja relacionado a este tema, para não terem o seu conteúdo desmonetizado.

A “ditadura da positividade” é a sistematização de um mecanismo social arcaico de salvaguarda contra a violência, as agressões e intempéries do mundo natural e animal (do qual sempre fizemos parte, por mais que tenhamos sido sempre animais históricos, dotados de cultura, de “civilização”), mas ela mesma não poderia efetivar-se sem uma grande dose de violência, crueldade, desumanização, ainda que sutil, silenciosa, imperceptível. Elaborando uma arqueologia da violência, Byung-Chul Han afirma que, no mundo guerreiro arcaico, “a violência homicida gerava o sentimento de crescimento, de força de poder, de imortalidade. A sociedade arcaica se comportava não apenas de modo imunológico-preventivo em relação à violência, mas também a capitalizava.”[1] A sociedade de consumo contemporânea, pós-industrial, também tem o seu modelo imunológico-preventivo em relação às negatividades diversas, a começar pela morte. Acumular riquezas, em comparação à extrema miséria na qual vive a grande maioria, confere um sentimento relativo de imortalidade e onipotência. Se tantos têm tão pouco, eu, que tenho tanto, sou praticamente como um deus. A violência da desigualdade gerada pelo capitalismo é análoga à violência sacrificial da sociedade arcaica. Segundo Han, “há uma proximidade essencial entre sangue e dinheiro. E assim, o capital se comporta como mana moderno: quanto mais capital se possui, mais se imagina ser poderoso, invulnerável, imortal.”[2]

A título de intermezzo, ocorre-me um texto de Cioran, “Filosofia indumentária”, no Breviário de decomposição, cujo propósito é desiludir, desenganar, desmentir a ilusão da imortalidade e da onipotência do homem, expondo sua fragilidade, sua insignificância, sua mortalidade:

O traje interpõe-se entre nós e o nada. Olhe seu corpo em um espelho: compreenderá que é mortal; passe seus dedos sobre as costelas, como sobre um bandolim, e verá o quanto está perto do túmulo. É porque estamos vestidos que nos julgamos imortais: como se pode morrer quando se usa gravata? O cadáver que se endominga já não se reconhece e, imaginando a eternidade, apropria-se da ilusão. A carne cobre o esqueleto, a roupa cobre a carne: subterfúgios da natureza e do homem, trapaças instintivas e convencionais: um senhor não pode estar cheio de lama nem de poeira… Dignidade, honorabilidade, decência – tantas fugas ante o irremediável. E quando você coloca chapéu, quem diria que residiu em entranhas ou que os vermes se banquetearão com sua gordura?
…Por isso abandonarei esses trapos e, arrancando a máscara de meus dias, fugirei do tempo em que, de conluio com os outros, extenuo-me em trair-me. Antigamente, os solitários despojavam-se de tudo, para identificar-se com eles mesmos: no deserto ou na rua, gozando igualmente de seu desapego, alcançavam a suprema fortuna: igualavam-se aos mortos…

CIORAN, “Filosofia indumentária”

Recentemente, me deparei com um comercial, no YouTube, de um carro de luxo, Ford Maverick, cuja narrativa me chamou imediatamente a atenção. O locutor parafraseia a célebre frase de Leibniz, zombada por Voltaire e Schopenhauer, de que este mundo é “o melhor dos mundos possíveis”. Afirma-se que “este é o melhor dos mundos possíveis para quem tem uma picape pronta para qualquer terreno.” Não é de hoje que publicitários encontram inspiração em livros de filosofia, a começar por Nietzsche, seu favorito. O comercial deixa claro o nexo entre capital, poder de consumo e “positividade” como otimismo de vida. Como diagnosticou Sloterdijk, trata-se do cinismo que trocou de lado, o cinismo dos “senhores” (Crítica da razão cínica). É a diferença entre o cinismo filosófico, encarnado por Diógenes, no sentido de parrhesía (discurso franco, dizer a verdade doa a quem doer), e o cinismo como mentira ideológica (ou mercadológica). No mundo “diferenciado” de Ford Maverick, o optimum da Criação encontra-se subordinado ao status social, ao poder aquisitivo. Não é o carro em si que, por um passe de mágica, tornaria o mundo de quem o possui “o melhor dos mundos possíveis”, mas poder tê-lo. Comparado com a imensa maioria das pessoas, “meros mortais”, o 1% happy few vive no “melhor dos mundos possíveis”. Se você não tem, e nem pode ter, um Ford Maverick, você deveria reconhecer o “inconveniente de ter nascido”, para falar como Cioran. Enfim, a campanha publicitária confirma a tese de Byung-Chul Han acerca do caráter “sacrificial” da violência capitalista, na qual o dinheiro ocupa o papel do mana arcaico, a energia vital que emanava do sangue dos inimigos mortos, em contato com o qual os guerreiros acreditavam fortalecer-se, inclusive tornar-se imortais. O otimismo não é para os pobres.

Arranha-céus de condomínios residenciais luxuosos da série Altered Carbon (Netflix), acima das nuvens, bem longe do “povão”, que habita o nível do solo.

Outro case que me chamou a atenção recentemente (neste caso malsucedido, alvo de investigação do Procon) envolveu duas grandes corporações de fast-food. Uma delas lançou um sanduíche batizado de McPicanha, sem picanha, e a outra lançou um sanduíche de costela, sem costela. O que mais me causou espécie não foi a propaganda enganosa, mas as explicações dadas por uma das empresas ao Senado Federal, uma justificativa da contravenção que é profundamente insultuosa ao consumidor brasileiro: “O consumidor brasileiro está acostumado a adquirir produtos que sejam identificados por nomes que remetam ao sabor, ao aroma e à experiência que oferecem, e não necessariamente à sua composição”, afirma trecho do comunicado, obtido pela Folha de S. Paulo. Trocando em miúdos: o consumidor brasileiro é um enorme trouxa.

Quando a emenda é pior que o soneto: a declaração é de um cinismo flagrante, uma peça da pior qualidade sofística. Opera-se uma dissociação (e falsa oposição) entre a “composição” do sanduíche, ou seja, a matéria-prima, o ingrediente, que seria irrelevante, inessencial, secundário, e a “experiência” relacionada ao sanduíche, em virtude do “sabor” e do “aroma”, isto sim o que mais importa, o essencial, sem nenhuma relação com a “composição”. Em ambos os sanduíches, o atrativo principal fica por conta do molho, sabor artificial de picanha num caso, sabor artificial de costelinha no outro, o que lhes permite anunciar e vender o produto de forma enganosa, como sendo/possuindo algo que não é/possui (hamburguer de picanha ou de costela). A nota oficial é sintomática da nossa cultura, pautada por uma positividade que se revela mais patogênica quanto mais se inflaciona. Nada mais vazio, insignificante, postiço, do que essa pretensa “experiência” a que se faz apelo, como se fosse algo especial, significativo, memorável. “Experiência” é, ao lado de “narrativa”, um dos flatus vocis da nossa época, um desses termos-chave que mais se esvaziam quanto mais inflacionados são. A mesma noção (artificial, estéril) de “experiência” que se pretende vender no “multiverso” do Facebook. Muito molho, pouca sustância. A “experiência” exaltada pela publicidade repousa no vácuo: experiência de nada. Como os estúdios em Hollywood onde TikTokers pagam para fazer selfies como se estivessem em seus jatinhos particulares.

SÁ MENEZES, Rodrigo Inácio R., “O filósofo e o marqueteiro: o ‘melhor dos mundos possíveis’ como conto do vigário publicitário”, Portal E.M. Cioran Brasil, 12 de maio de 2022.


[1] Byung-Chul, Topologia da violência. Trad. de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 36

[2] Ibid., p. 45.


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