Com Cioran descobri que havia uma outra forma de “fazer filosofia”. Mais do que ler um pensador, aproximo-me de Cioran numa tentativa, sempre interminável, de autocompreensão.
Belén N. Valdés
Belén Nava Valdés é formada em Filosofia e Antropologia Social pela Universidad Autónoma del Estado de México (UAEMéx). Leciona no Instituto Politécnico Nacional (IPN). É mestranda em Ética Social pela Faculdade de Letras da UAEMÉX. Além de ser autora de artigos e colaboradora de várias publicações, no México e no exterior, Belén Nava Valdés é palestrante em congressos nacionais e internacionais. Participou do Colóquio Internacional Liliana Herrera em torno a Cioran (outubro de 2021) com uma reflexão a partir das leituras paralelas de Emil Cioran e do escritor egípcio (que viveu, como o romeno, grande parte da sua vida em Paris). Publicou, em coautoria com José Luis Álvares Lopeztello, um artigo sobre os dois autores expatriados, apresentados como “apologistas da preguiça lúcida”. Nesta entrevista, retomamos estes e outros temas relacionados.
Rodrigo Menezes: Muito obrigado por esta entrevista escrita, Belén. Após sua (excelente) conferência sobre Cioran e Cossery, no Colóquio Internacional Liliana Herrera em torno de Cioran, pareceu-me oportuno desdobrar os temas e diálogos iniciados naquela ocasião. Antes de chegarmos a Cioran e Cossery, tenho algumas perguntas preliminares. Quando e como teve o seu primeiro contato com a obra de Cioran? Qual foi sua primeira impressão, e como sua compreensão do pensamento de Cioran mudou desde então?
Belén Nava Valdés: Antes de responder às perguntas, retribuo meus agradecimentos e expresso o prazer de ter participado de um evento tão importante como o Colóquio Internacional. A primeira vez que tive contato com a obra de Cioran, estava no quinto ou sexto semestre da minha licenciatura em Filosofia. Aquele meu primeiro encontro foi através de Nos cumes do desespero, e realmente significou para mim um embate com tudo o que se pode encontrar de dissidente no campo filosófico. Imagine, até então as leituras que eu havia feito eram dos autores previamente traçados pelos planos da universidade. Com este primeiro livro de Cioran descobri que havia uma outra forma de “fazer filosofia”, que contrariava os preceitos tradicionais, que os questionava, que os aniquilava, mas, mais do que isso, era a profundidade reflexiva da existência, sem menosprezar, é claro, o tom escritural que o caracteriza, que também é um ponto movediço quando se é estudante nos primeiros semestres. Foi, sem dúvida, o que fez com que seus textos se tornassem lugares comuns em minhas leituras.
Agora, Cioran é daqueles autores estrondosos que te ferem desde o primeiro dardo de texto que você se administra, embora nos primeiros encontros haja certas limitações, pelo menos no meu caso foi assim. Desde o início é preciso entender a relação essencial entre a vida e a escrita. E, às vezes, essa é a parte complicada, quando se está acostumado a denotar “as ideias importantes” de um autor. Outro assunto, não menos importante, é a dissolução que o caracteriza: não há linhas temáticas em seus textos, mas pontos colocados a distâncias que não têm a obrigação de se corresponderem uns com os outros. Hoje, mais do que ler um pensador, aproximo-me de sua escrita numa tentativa, sempre interminável, de autocompreensão.
R.M.: Você tem formação em Antropologia Social e leciona no Instituto Politécnico Nacional. Cioran já foi tema de seus cursos ou aulas? Como vê a possibilidade de inserção da obra de Cioran na universidade, digamos, nas ciências humanas? Você acha que ele é um autor relevante para o debate atual no campo da antropologia, social (e também filosófico-metafísica)? A obra de Cioran é lida corretamente no México?
B.V.: É impossível ler Cioran e guardá-lo só para si, acreditando que os tópicos da sua obras não condizem com o conteúdo programático da docência. Cioran sempre nos trai: nós o buscamos e ele sai com qualquer pretexto. Ele mesmo fala: “Há poetas e escritores que te acompanham em todos os lugares: presenças cotidianas”.[1] Atrevo-me a dizer que nenhum professor que tenha tido contato com a obra de Cioran resiste à tentação do menor pretexto para mencioná-lo em suas aulas. Porque é errado pensar que seus textos estão à margem de uma reflexão sobre o homem. A sua obra está impregnada, carregada, dos sofrimentos humanos, dos dilaceramentos experimentados em uma noite fria e escura.
Por mais paradoxal que possa parecer, levar Cioran para a universidade é, parafraseando Cossery, ter encontrado a fissura na casa da morte certa. Há pouco proveito em seguir o exercício do Privat Denker; em vez disso, usar sua terapêutica fragmentária sem saber o fim alcançado me parece um melhor caminho. Por outro lado, a questão de saber se a obra do pensador apátrida é lida adequadamente é, em um aspecto, de pouca relevância: qual seria a maneira correta de lê-lo? E mais, o que seria um exercício honesto de interpretação de sua obra? Se um autor tem impacto nas nossas vidas, é, sem dúvida, porque responde a uma expectativa – como afirma Albert Cossery. No entanto, não há dúvida sobre o valor injusto com que suas reflexões foram tratadas: esses encontros que o homem tem quando está prestes a desmoronar. Apesar disso, é gratificante observar que nos últimos anos sua obra começou a ter um interesse especial entre os intelectuais, embora deva dizer que no campo da Antropologia Social quase nada se sabe sobre ele; isso, talvez, à retumbante visão antifilantrópica que lhe foi atribuída.
R.M.: Sobre a recepção mexicana da obra de Cioran, na universidade e fora dela, qual é a imagem geralmente suscitada pelo nosso autor no México?
B.V.: Estou convencida de que no México, ao menos na universidade, Cioran é mais citado do que lido. É conhecido através de outros autores, mas a obra, diretamente, apesar de estar ao alcance, poucas vezes é levada em conta. Seu exercício de escrita provoca coceira, alergia, por isso tem sido mais sensato resguardá-lo dos planos de estudo que incentivar a sua leitura. No entanto, a proliferação de sua obra já é o primeiro passo para quebrar esse silêncio em que permaneceu por tanto tempo. Não duvido que haja quem se sinta seduzido pelo escritor romeno-francês fora do campo filosófico.
R.M.: Você considera relevante a opinião dos exegetas que consideram Cioran uma espécie de “Nietzsche romeno” do século XX, um continuador do projeto filosófico nietzschiano, por assim dizer, um filósofo pós-nietzschiano, algo como um epígono de Nietzsche?
B.V.: De jeito nenhum. Não é necessário recorrer a nenhum comentarista, o próprio Cioran questiona a relação com o filósofo alemão, chamando-o de ingênuo (na verdade, ingênuo demais): “Era um solitário que não viveu demasiado entre seus semelhantes, um homem digno de pena, no fundo, um homem isolado a quem faltava a experiência imediata do outro. Toda a sua tragédia, as disputas com seus amigos, as decepções causadas por estes mesmos amigos, simplesmente provam que Nietzsche realmente não conhecia os homens.”[2] Sem esquecer, é claro, o desdém e repulsa por aquela ideia de super-homem e, em geral, por conceitos com os quais tanto simpatizara Nietzsche. No entanto, há referências que lhes são comuns: a suspeita como método para desvendar a realidade, o gosto musical, a inclinação pela decadência, os anzóis literários (Dostoiévski, Schopenhauer, os moralistas franceses…).
R.M.: Qual é a sua interpretação geral da obra e do pensamento de Cioran? Filosofia? Literatura? As duas coisas? Nenhuma de elas? Pessimismo filosófico? Ceticismo? Cinismo? Niilismo? misticismo ateu? Sem a pretensão de “oficializar” absolutamente nenhuma dessas classificações, mas como abordagem propedêutica…
B.V.: Em Cioran, qualquer ideia classificatória é impossível e absurda. Nada mais estranho do que impor limites a um pensamento que lutava para transformar em ruínas o que havia sido edificado até então. Toda construção exige um compromisso: o compromisso de fidelidade, já dizia Cioran. Mas quando o movimento se inverte, com que fidelidade o pensador deve comprometer-se? Quais são as categorias que o distinguem do resto dos filósofos e que permitiriam encaixá-lo em uma posição definitiva? Em Cioran este não é o caso. Sua risada delirante é mais uma tentativa de um homem de não sucumbir à idiotice normalizada que um exercício de erudição. Como abordagem propedêutica, todos os caminhos traçados tornam imprescindível a sua proximidade. Mas não me parece pertinente, em última análise, apostar na ideia, sempre pobre, de que o pensamento tem sucursais e, portanto, ler os autores a partir de certas opiniões preconcebidas.
R.M.: Além de sua apresentação no Colóquio Liliana Herrera, você publicou, junto com José Luis Álvarez Lopeztello, um artigo sobre Cioran e Albert Cossery: “Dois apologistas da preguiça lúcida”. Você aponta no texto que Cossery foi reconhecido como uma mistura de Dostoiévski e Górki, e que Patrice Bollon, um dos biógrafos mais importantes de Cioran, o compara a Cossery e Jean Genet. Qual dos dois autores você já conheceu e leu antes, Cossery ou Cioran? Após a leitura do outro, sua percepção das afinidades eletivas entre eles foi imediata? Que paralelos podem ser feitos entre Cioran e Cossery?
B.V.: Fui apresentada antes à obra de Cioran. Li Cossery apenas nos últimos anos (e durante alguns anos, não mais). Nas contínuas conversas que tive com José Luis Álvarez Lopeztello, percebemos uma estreita afinidade entre os dois pensadores. E, claro, foi surpreendente que não éramos os únicos a vislumbrar essa relação.
Como o artigo destaca, as semelhanças vão desde a proximidade de idade (apenas três anos de diferença) até a comum inclinação para mendigos, prostitutas, pessoas hilárias, enfim, toda a ralé da sociedade. Sem descuidar do fato de que nenhum dos dois tinha profissão: um crescente desgosto pela universidade os assemelha, uma tendência à inação os torna cúmplices. Há muitos nexos a partir dos quais os paralelos podem ser feitos.
R.M.: Se admitirmos que existem dois tipos de intuições fundamentais da Modernidade, uma filosófica, que aspira à universalidade através da abstração do conceito, e uma intuição poética da Modernidade, aspirando neste caso à universalidade mediante o exercício de uma singularidade concreta e vivida, você situaria Cioran e Cossery entre os poetas (artistas em geral), entre os que cultivam uma intuição-experiência poética da Modernidade?
B.V.: No prólogo da Genealogia da moral, Niezsche afirma, em contraste com a posição kantiana, sempre esquiva contradições, que a única coisa que nos torna universais é a participação na vida. Nem as forças metafísicas generalizadas nem a intenção moral absolutizada impedem cada indivíduo de testemunhar a experiência da vida como única e irrepetível. Nesse sentido, a posição de Cioran e Cossery é inquestionável. Quanto ao primeiro, basta lembrar a decepção da filosofia por sua ineficiência nos momentos mais graves; isto é, incapazes de responder aos grunhidos que emanam das noites mais desoladoras. A filosofia, enquanto profissão que dá títulos (deveríamos pensar que recebemos os títulos dando a entender que assim nos livramos dos mais fúteis assuntos humanos?), é quase incapaz de penetrar na insalubridade da existência: “Estava apaixonado pelos meus estudos, e confesso inclusive que estive intoxicado pela linguagem filosófica, que agora considero uma verdadeira droga. Como não se deixar embriagar e mistificar pela ilusão de profundidade criada por ela? Traduzido em linguagem comum, um texto filosófico se esvazia estranhamente. É um teste a que todos deveriam ser submetidos. O fascínio exercido pela linguagem explica, a meu ver, o sucesso de Heidegger…”[3] Quanto a Cossery, ele segue o mesmo caminho, quando afirma em Mendigos y orgullosos que Gohar, o personagem principal, “ensinava história e literatura na maior universidade do país. […] Naquele ambiente, em que a vida se mostrava em estado puro, não degenerada pelo conformismo e pelas convenções estabelecidas, Gohar não enganava ninguém; ele não era obrigado a lançar as eternas mentiras filosóficas nas quais, infelizmente, até mesmo ele acreditava naquela época. […] Como estava longe dos processos estéreis e sangrentos dos homens e suas ideias confusas sobre a razão e a vida! Todos aqueles grandes espíritos, que ele admirara, por tantos anos, agora lhe pareciam vis envenenadores, desprovidos de toda autoridade. Ensinar a vida sem vivê-la era um crime da mais detestável ignorância”.
Por isso, diria que essa experiência poética da modernidade tem muito benefício, especialmente para os espíritos melancólicos. Cioran novamente: “A profundidade é o monopólio daqueles que sofreram.” Seria muito honesto perguntar: como espíritos tão grandes quanto Hegel e Kant conseguiram separar o homem do pensamento?
R.M.: Você aponta como afinidades espirituais entre Cioran e Cossery a “simpatia pelo hilário”, “a paixão pelo Oriente” e “a maestria de usar a zombaria e a ironia”. Falando em zombaria e ironia, você acha que muitos desses elementos (zombaria, ironia) e uma certa ambiguidade entram nessa “preguiça lúcida”, da qual os dois autores fazem a apologia? A qualificação de “lúcido” não retira dessa suposta “preguiça” seu caráter literal e previsível (inércia, passividade, improdutividade) – de modo que seria neste caso uma outra “preguiça”? Estou pensando particularmente no caso de Cioran, cuja apologia da preguiça, da frivolidade, da futilidade, do diletantismo, do hamletismo e mesmo do fracasso, parece-me relativa ao contexto em que em que se encontra o pensador romeno: a civilização ocidental do século XX, com sua cultura do sucesso, da felicidade a todo custo, da produtividade total e da eficiência. Ocorre-me o feliz título do livro de entrevistas sobre Cioran publicado por Ciprian Vălcan (uma delas, por sinal, com José Luis Álvarez Lopeztello): Cioran, um aventureiro imóvel, paradoxo que leva a pensar que “imobilidade” (e “preguiça”) não é necessariamente paralisia, ausência de dinamismo, fecundidade, produtividade. Cioran mesmo confessa que – como a maioria dos autores, até Shakespeare – escreveu demais! Gostaria de citar duas passagens. No Breviário, ele afirma que “a doença é uma atividade, a mais intensa que o homem pode desenvolver, um movimento frenético e… estacionário, o mais rico desperdício de energia sem gestos, a espera hostil e apaixonada de uma fulguração irreparável” (Variações sobre a morte, III). E este aforismo em Do inconveniente de ter nascido: “Compreendo bem, demasiado bem, as palavras de Wordsworth acerca de Coleridge: Eternal activity without action.” Mesmo quando afirma ser “o homem mais ocioso de Paris” e que “só uma puta sem cliente é menos ativa” do que ele, Cioran parece recorre a uma hipérbole retórica que eclipsa essa “eterna atividade sem ação” em que consiste o exercício do pensamento e da escrita.
B.V.: Albert Cossery, em Conversación con Michel Mitrani, afirma que “a palavra ‘preguiça’ é malvista nos países ocidentais, porque, nesses países, preguiça significa quase estupidez, o que não é verdade. Para mim, a preguiça é uma forma de ociosidade. Essencial para a reflexão. É por isso que no Oriente encontramos sábios, profetas”. Parece-me que esta forma de conceber a preguiça tem muito a ver com o estado contemplativo dos orientais. Não tanto como uma contrapartida à ideia de trabalho moderno; ou seja, aquela dialética em que produção-descanso-diversão se entrelaçam. A propósito de Cioran, Lars Svendsen, em seu famoso livro A Filosofia do Tédio, cita-o: “A esse amigo que me diz entediar-se [s’ennuyer] por não poder trabalhar, respondo que o tédio [ennui] é um estado superior, e que relacioná-lo com a ideia de o trabalho equivale a degradá-lo” (Écartelement). A preguiça é uma arte suprema, uma distinção que se torna, no mundo acelerado em que mergulhamos, inatingível. Não temos tempo para ser preguiçosos, estamos muito ocupados! Nietzsche, denunciando esse desejo de trabalho que começava a se espalhar pela Europa no século XIX, infere: “As pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na mão, enquanto almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa — vivem como alguém que a todo instante poderia ‘perder algo’. ‘Melhor fazer qualquer coisa do que nada’ — este princípio é também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior.” (Gaia Ciência, § 329). O ser humano entronizou a tal ponto a ideia de trabalho, como ação, que só concebe o lazer como tempo também regulado pelo trabalho. Paul Lafarge[4] é magistral nesse sentido (exceto em fazer da preguiça um direito e levá-la à saciedade utópica): “Se a classe operária, após arrancar de seu coração o vício que a domina e que envilece a sua natureza, se levantará com toda a sua força, não para reivindicar os Direitos do Homem (que nada mais são do que os direitos da exploração capitalista), não para reivindicar o direito ao trabalho (que nada mais é do que o direito à miséria), mas para forjar uma lei de bronze que proibiria todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, a velha Terra, estremecida de alegria, sentiria brincar nela um novo universo… mas, como pedir a um proletariado corrompido pela moral capitalista que tome uma resolução viril?” Para o homem moderno, o trabalho tornou-se uma fatalidade: quanta morte está contida nesse slogan exaltado pelo proletariado: “quem não trabalha, não come!” – parafraseando Lafarge. E no meio de tanta ação, do impressionante vórtice de atividade, seguindo Cioran, surge o fastio [ennui], “que é uma vertigem, mas uma vertigem tranquila, monótona; é a revelação da insignificância universal, é a certeza, levada até o estupor ou a clarividência suprema, de que nada pode ser feito, de que nada deve ser feito neste mundo e nem em outro, que não existe nenhum mundo que possa nos convir ou nos satisfazer. Por causa desta experiência – que não é constante, mas recorrente, pois o fastio [ennui] vem por acessos, mas dura muito mais do que uma febre – não pude fazer nada sério na vida.”[5] Você já sabe o que se segue, a posição de Cioran contra o trabalho. Os grandes problemas realmente importantes são uma tentativa de responder às questões sobre “como suportar a vida” e “como suportar a si mesmo”: “A única coisa importante é sempre ter esses problemas insolúveis diante dos olhos, e viver como Epicteto ou Marco Aurélio. Não estamos mais, então, nas histórias vividas, mas na contemplação. Nossos contemporâneos perderam a capacidade de contemplar as coisas. Eles esqueceram a arte de perder o tempo inteligentemente.”[6] E essa perda de tempo não é em detrimento, mas em proveito de “entender algo de verdade”. Não é por acaso que tanto Cossery quanto Cioran comunguem com a mendicância, o fracasso, a simplicidade da vida. E, nesse sentido, não é difícil afirmar que mais faz quem não faz.
R.M.: Tomo como pretexto o pertinente título da sua conferência no Colóquio Liliana Herrera, sobre Cioran e Cossery, “Entre a dor e a alegria de existir”, para fazer minha última pergunta. Por que você acha que “vale a pena” ler Cioran? Que importância tem o pensador romeno para o mundo presente? Em relação à alegria, você acha que é uma das experiências possíveis que resultam da leitura de Cioran? Apesar do pessimismo, do niilismo, da negatividade constitutiva da obra de Cioran, expressão de uma filosofia do pior (ideia-limite-desafio a enfrentar), a leitura de seus livros pode ser inspiradora, talvez mesmo consoladora?
B.V.: Dizer que a proposta de Cossery, diante de um mundo irreversível, é a alegria, é uma fanfarronice com graves consequências, se considerarmos que os seus escritos não devem ser considerados monumentos axiológicos de seus simpatizantes. Ao contrário, suas letras nos mergulham na experiência subjetiva de um ser humano que se enfastia, até a exaustão, por agir como modelo de comportamento. Cossery não propõe nada. Ele denuncia, ri, se embeleza. Nada mais. Em A Gaia Ciência (§3), Nietzsche diz que parimos “nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver — isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo.” E mais adiante acrescenta: “Por fim, para que o essencial não deixe de ser registrado: de tais abismos, de tal severa enfermidade, também da enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes.” No entanto, nesse sentido, Michel Mitrani, entrevistador de Cossery, no penúltimo parágrafo de sua Conversación, escreve: “A visão de mundo de Albert Cossery recebe a sua luz da Gaia Ciência nietzschiana”. Acrescentarei uma citação que não é de nenhum dos escritores que propiciam esta entrevista. Trata-se de Frédéric Schiffter, que escreve, em O blábláblá e o mas-mas dos filósofos: “‘Sob a pressão irresistível do mal, escreve Lucrécio, um homem, como se atingido por um raio, é fulminado diante de nossos olhos; urra, geme, estremece com todos os seus membros, delira; seus nervos ficam tensos até quebrarem, ele rola no chão, engasga, sua respiração falha; com tantas convulsões, seu corpo está no limite das forças […] Então, pouco a pouco, a causa do mal abandona o seu lugar; o humor acre que corrompeu o corpo recupera as profundezas dos seus esconderijos; então, cambaleando, o homem começa a se erguer, recupera todas as suas faculdades e torna a estar em posse da sua alma…’ Ao despertar de cada crise, permaneço por muito tempo em uma espécie de suave letargia, durante a qual percebo a presença do mundo ao meu redor, através de uma vaguidão amnésica. Só mais tarde, à medida que os outros falam e me chamam de volta à vida, tudo que me diz respeito, objetos e seres, recupera suas formas e significados familiares.” É curioso como a dor e a alegria conseguem se sobrepor nas catástrofes mais profundas!
Trad. do espanhol: Rodrigo Menezes
Brasil-México, março/abril de 2022
NOTAS:
[1] Entrevista com Branka Bogavac Le Compte, Conversaciones, p. 210.
[2] Entrevista com Georg Carpat Focke, Conversaciones, p. 194.
[3] Entrevista com Sylvie Jaudeau, Conversaciones, p. 165.
[4] Paul Lafargue (Santiago de Cuba, 15 de janeiro de 1842 — Draveil, 26 de novembro de 1911) foi um escritor, jornalista e ativista político socialista franco-cubano, casado com a segunda filha de Karl Marx, Laura. Seu mais conhecido trabalho foi O Direito à Preguiça, publicado no jornal socialista L’Égalité. Nascido em Cuba numa família franco-caribenha, Lafargue passou a maior parte de sua vida na França. Aos 69 anos de idade ele e Laura morreram juntos em um pacto de suicídio.
[5] Entrevista com Fernando Savater, Conversaciones, p. 26.
[6] Entrevista com Georg Carpat Focke, Conversaciones, p. 200-201.