Também a economia da salvação segue a lógica da acumulação. Para os calvinistas, só o sucesso econômico gera a certitudo salutis, a pertença ao grupo dos escolhidos, que os livra da danação eterna.
BYUNG-CHUL HAN, Topologia da Violência
Alphaville é um recorte do estilo de vida do lado de dentro do muro. O retrato de um Brasil cercado, onde supostamente é mantido longe o perigo, as interações indesejadas, todo tipo de movimento, heterogeneidade e imprevisibilidade das ruas.
ARQUEOLOGIA DA VIOLÊNCIA
Byung-Chul Han
A forma arcaica do poder atuava diretamente como uma propriedade mágica. Já o poder como substância só se desenvolveu mais tarde, enquanto relação hierárquica. Em virtude de sua imediaticidade, o poder substancial não respaldava qualquer tipo de domínio, pois este era uma configuração complexa de mediação e reflexão. A sociedade arcaica não apresentava nenhuma estrutura hierárquica de domínio. Assim, o chefe não detinha o poder de forma personalística, sendo apenas um medium: “Da boca do chefe não provinham as palavras que iriam sancionar a relação entre ordem e obediência, mas o discurso da comunidade sobre si mesma, o discurso pelo qual ela se anunciava como comunidade indivisa […]”. A posse do mana, que caracteriza o chefe, não o transformava em soberano, semelhante a um deus. Ao contrário, ele deveria contar constantemente com o fato de que poderia ser morto tão logo perdesse seu mana. A punição racionalizava a vingança e abrandava a inflamação que se propagava como uma avalanche que a fazia tão destrutiva. Na sociedade arcaica, a única reação possível à violência era a contraviolência. Nisso há uma mudança radical de paradigma que distingue o sistema de punição do sistema de vingança, transformando a violência em ação dirigida a uma pessoa. Já não é mais um acontecimento impessoal, ao qual se deveria ir ao encontro com contraviolência. Uma vez destacado do nexo de poder, é colocado como nexo de culpa. A violência já não me torna poderoso, mas culpado. A punição não é uma contraviolência, não é vingança que o Estado exerce em meu lugar. O nexo objetivo de culpa, ao contrário, faz com que o Estado pareça justo ou razoável. Assim, não surge qualquer espiral de violência.
A violência da punição depõe a injustiça característica da vingança arcaica, que não impunha qualquer controle sobre a violência. Julgar e julgamento condicionam-se mutuamente. O sistema punitivo não segue a lógica da vingança, mas a lógica da mediação, que nasce do nexo objetivo do direito. Nesse sentido, ela impede a inflamação descontrolada da violência que, contrariamente ao sistema de vingança, não estava voltada à produção da violência, mas à sua prevenção.
À opinião bastante difundida de que nas sociedades arcaicas a guerra era primordialmente uma luta pela existência, que surgiria em virtude da escassez de bens de primeira necessidade, Pierre Clastres contrapõe com a tese de que a guerra estava baseada exclusivamente no fator da agressão. Contra a tese que liga estreitamente a guerra ao comércio de troca, defendida por Lévi-Strauss, Pierre vê como base da guerra uma energia autônoma destrutiva que nada tem a ver com esse comércio de troca. A sociedade arcaica viveria em relativa independência, de modo que não teria necessidade de empreender qualquer guerra em vista de escassez de bens primários. A guerra servia apenas para defender a autonomia e a identidade do grupo contra outros grupos: “Para todo e qualquer grupo local, todos os demais são estranhos; a figura do estranho confirma o respectivo grupo em sua convicção de um nós autônomo como sua identidade. Isso significa mais ou menos a mesma coisa que um estado de guerra permanente […]”. A guerra permanente cria uma “força centrífuga” que gera, por sua vez, um mundo do múltiplo, na medida em que atua contra a unidade ou a unificação, impedindo a formação do Estado; essa é pelo menos a tese central de Clastres e também seu ponto mais problemático. Ele supõe que a sociedade arcaica rejeitava conscientemente o Estado, empenhando guerras permanentes para impedir a formação dele. Enquanto uma “sociedade contra o Estado”, a sociedade arcaica era uma “sociedade em favor da guerra”. Assim, Clastres escreve de maneira provocativa: “Se não houvesse inimigos seria necessário inventá-los”. O Estado é uma complexa configuração de poder. Esse autor pressupõe a ideia de poder como uma relação hierárquica de domínio, da qual, porém, a sociedade arcaica, em virtude de sua estrutura de consciência, não dispõe.
Mas não disse que, na Idade Moderna, a economia arcaica simplesmente desapareceu. O armamento atômico segue igualmente a economia arcaica da violência; o potencial destrutivo é acumulado como mana para gerar o sentimento de poder e de invulnerabilidade. No nível psicológico profundo continua a se propagar a crença arcaica de que a capacidade acumulada de matar evitaria a morte; um incremento de violência mortal é interpretado como uma diminuição de possibilidade de morte. Também a economia do capital indica uma semelhança gritante em relação à economia arcaica da violência. Em lugar de sangue ela faz fluir dinheiro; há uma proximidade essencial entre sangue e dinheiro. E assim, o capital se comporta como mana moderno; quanto mais capital se possui mais se imagina ser poderoso, invulnerável, imortal. Já a partir de sua etimologia a palavra dinheiro remete para o nexo do sacrifício e do nexo cultual. Assim, também se admite que, originalmente, o dinheiro era um meio de troca com o qual se comprava animais de oferenda. Portanto, quando alguém possuía muito dinheiro significava que dispunha de muitos animais, e que a qualquer momento podia fazer uma oferenda sacrificial. Com isso, ele se apoderava de uma grande “violência rapace” de morte. Dinheiro ou capital são, portanto, recursos contra a morte.
Em relação à psicologia do profundo o capitalismo tem muito a ver com a morte e com o medo dela. Também nisso reside sua dimensão arcaica. A histeria da acumulação e do crescimento e o medo diante da morte condicionam-se mutuamente. O capital também pode estar relacionado e ser interpretado como tempo, pois dispondo de dinheiro, uma pessoa pode fazer com que outras pessoas trabalhem para ela. “Capital infinito” gera a ilusão de “tempo infinito”. Nesse sentido, a acumulação de capital trabalha contra a morte, contra a falta absoluta de tempo. Em vista do “tempo de vida” delimitado compra-se “tempo de capital”.
A alquimia tinha em vista a transmutação de metal vil em metal nobre. Considerava-se como vil sobretudo o chumbo, metal subordinado a Saturno: deus do tempo. Na Idade Média, via de regra, Saturno era representado como um idoso carregando a gadanha e uma ampulheta, símbolos do caráter passageiro e da morte. A transformação alquímica de chumbo em ouro equipara-se à tentativa de ludibriar o tempo e a transitoriedade em favor da infinitude e da imortalidade. O aurum potabile promete a juventude eterna. A superação da morte é o conteúdo da imaginação alquímica, que nutre também a economia capitalista, alimentando, por seu turno, a histeria do crescimento e da acumulação. Vista a partir dessa perspectiva, a bolsa de valores é o vas mirabile do capitalismo moderno.
Também a economia da salvação segue a lógica da acumulação. Para os calvinistas, só o sucesso econômico gera a certitudo salutis, a pertença ao grupo dos escolhidos, que os livra da danação eterna. Assim, solvência infinita se equipara à redenção; a angústia que se nutre em relação à salvação, ligada ao medo da morte, produz a coerção capitalista por acumulação. Investe-se e especula-se em vista da salvação. Nesse contexto há uma analogia entre a economia arcaica do mana, a economia capitalista do capital e a economia cristã da salvação. Todas elas apresentam uma thanato-técnica, utilizada para eliminar/escamotear a morte.
HAN, Byung-Chul, “Arqueologia da violência”, Topologia da violência. Trad. de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
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