Uma expressão como “chove” poderia ser vista como a forma originária da determinação mínima, como se pode verificar na fácil metaforização “chovem protestos”. Quem é que propriamente chove? Já foi dito que este impessoal descreve a generalidade da situação em que se fixa o fenômeno especial da chuva, do relâmpago e do trovão. Disso derivaria em consequência que para todos os verbos com construções impessoais o sujeito seria idêntico. Mas aí nos deparamos com uma dificuldade verbal. Pode-se, com efeito, dizer “chove, relampeja, troveja”, mas não podemos nos delongar em uma construção demorada como “chove, relampeja e troveja”.
A competência para a chuva parece menos deslocada que a de troveja e relampeja e também pode ser atribuída verbalmente, a um sujeito, em conjunto. É sobretudo decisivo que a indeterminação em que se encontra o sujeito indeterminado provoque a sensação de não haver nenhum destinatário que provoque um efeito. Nesses efeitos verbais, parece que nos encontramos frente à necessidade de ver quem conduziu à nomeação mítica dos nomes: se a chuva fosse uma realidade decisiva para a vida, não se deveria atribuí-la àquele críptico impessoal [“es”], senão que se deveria convertê-la em uma instância da capacidade de denominação, que tivesse um nome e uma história, que tivesse se originado daquelas circunstâncias em que se localizam os pontos fracos dessa figura e, com isso, sua força de influência. A indeterminação assim levou diretamente ao mito, onde não pode ser aceita. Da mesma maneira, pode-se pensar que a confusão em torno de um nome não seja tão grande quando não há a necessidade de nomeação e do ritual e que, então, a determinação possa ser ponderada pelo destaque de propriedades metaforicamente determinadas em lugar do sujeito. (“Chove” – quem chove? Houve antes aqui o nome de uma divindade, conforme a hipótese de alguns linguistas? Ou, conforme nossa hipótese, cada impessoal se originou da separação entre a ocupação mítica e metafórica e o lugar de um sujeito impessoal?):
O impessoal ‘es’ é um remanescente de remotas visões religiosas e apareceu em lugar do nome de uma divindade? Esse é um antigo pensamento, também válido para as expressões impessoais das velhas línguas, antes de tudo para o latim, em que se justifica com a elipse do nome de uma divindade. Parece-me contudo impensável que os romanos, que ainda tinham uma visão viva de Juppiter pluvius, do pessoal Juppiter pluit tivessem feito um neutro pluit. O correto seria antes o inverso (…).
— “Ao contrário, que o “es” se dê apenas na manifestação e apenas nela se faça saber o converte no sujeito imanente da manifestação. – “Um sujeito unitário por assim dizer desliza sob o fenômeno coletivo, como na frase “fervilha’.” (“Era uma vez…”, “passou melhor” – em ambos os casos trata-se de indisponibilidades, tanto por causa do tempo passado e da falta de datação do acontecimento, quanto pela aceitação fatalista de uma melhora no caso de doença.)
O impessoal “es”, por assim dizer, pertence ao período mágico e justamente por isso compreendemos que se mantenha no período pós-mágico, no domínio de imaterialidade mais nítida, em que se torna válida a sensação originária de abandono irremediável ou em que nos confrontamos com a vis maior sem a possibilidade de reação.
– Frases como “entardece, amanhece, escurece, o chegar da tempestade, coberto de nuvens”: “Nelas, o próprio espaço vital se dissipa. As mudanças aparecem como seus próprios processos vitais (…) – essencialmente, o que aqui é de se pensar como sujeito é sempre o rosto presente do mundo.”
Esta generalidade indeterminada do espaço vital, no sentido amplo, como mundo, assume em breve sobre si as determinações metafóricas, que se ligam com uma desconfiança ou confiança elementar. Para o desenvolvimento europeu, foi de importância decisiva que os gregos, em vez do sujeito do mundo, tenham introduzido um atributo, que continha sua confiança total no mundo e o exprimissem pela palavra “cosmo”. A palavra indica que sua origem se conecta a um adorno, ao atavio de uma mulher ou às ferraduras, no caso de um cavalo. Como adorno masculino parece sobretudo haver indicado o distintivo de posição hierárquica nos agrupamentos militares, portanto seu posto e a própria estrutura de comando; por fim, a formação visível de marcha da força armada para a batalha. Nossa compreensão vocabular do significado das palavras faz-nos compreender uma ligação com “a ordem”. Mas é decisivo que esse único substantivo assuma o lugar da incapacidade dos gregos em designar a totalidade do universo com uma única palavra; no tempo mais remoto, essa totalidade era expressa por Uranos (semelhante a céu), vizinho da dualidade Céu e Terra. Uma etapa de passagem reconstituída seria uma frase do tipo “tudo é um cosmo” ou “é um cosmo”. Dessa maneira não se verificava apenas uma ocupação de sujeito e, portanto, não só um nome, senão que ainda se escutava um extenso processo metafórico. Quão abstratamente essa expressão do mundo foi empregada desde muito tempo mostra a famosa e questionada frase de Heráclito, segundo a qual os que despertam teriam um único cosmo comum, enquanto os que dormem se separam cada um no seu próprio. Nessa frase, não se figura a qualidade objetiva do mundo visível – ela pode estar como bem queira – senão que tão só a condição de referência da relação com o mundo. Por isso o mesmo Heráclito pôde declarar a terrível frase sobre o cosmo: ser ele um acúmulo de despojos ocasionais. Desde tempos remotos, assinala-se a inclinação dos filósofos em chocar o seu público com formulações adversas à direção do senso comum.
O próprio mundo, nesse sentido abstrato, desde muito cedo se converte em metáfora; o que se dá quando a expressão “cosmo” é empregada no plural. É o caso do atomismo, que procurou mais de uma vez deter o páthos cósmico, sem que tivesse êxito, contra os pitagóricos e, a seguir, com o mesmo insucesso contra Platão. Em Demócrito, aparece talvez a primeira metáfora consciente do cosmo: o homem é um pequeno mundo. Na tradição verbal europeia, o mundo como metáfora converteu-se em legião. A totalidade das ideias em Platão é um Kosmos Noetos. É de Friedrich Schlegel a frase muito romântica de que cada obra de poesia é “um pequeno mundo.”
Como consequência, comprova-se a possibilidade de formar do singular “mundo” o plural “mundos” – à diferença de “ser”, de que não se consegue formar o plural, porque pertence ao tipo especulativo que não admite a formação de plural. A disputa entre a multiplicidade e a unidade dos mundos leva apenas a uma alternativa: por um lado, a acidentalidade mecanicista dos atomistas, que não admite nenhuma singularidade e, por outro, a distinção metafísica do cosmo como a única ordem de todas as coisas possíveis, que deviam aceitar a perda de sentido pela irrupção da multiplicação. Desde a doutrina cristã da criação, a disputa pelos mundos reais está decidida: o plural não pode mais ser estritamente considerado em caso algum, pois do contrário dever-se-ia conceber junto ao mundo criado outros mundos incriados ou criados por outro Deus; para os mundos possíveis o plural torna-se agora sempre mais importante enquan-to é concebido que a criação se baseia no procedimento, de maneira sempre mais potente, como um conjunto mais ou menos pleno e, por fim, como dotado sempre de menores possibilidades pensadas e passíveis de serem pensadas. Daí que só o possível ainda é infinito, o real, a contingência do factual, que só racionalmente poderia ser salvo se o mundo real fosse o melhor dos mundos possíveis.
Para a concepção moderna, o plural só pode ser ainda concebido metaforicamente para obras a cuja autonomia e grandeza corresponda o que há muito tempo era representado como a totalidade do mundo; portanto, como algo que, na linguagem técnica, é descrito como galáxia. O corte decisivo nessa história do conceito encontra-se em Newton e na mudança do conceito de espaço introduzida por ele. Enquanto o espaço era completamente nulo, sobre ele não podia ser praticada nenhuma influência real; era por completo imaginável que partes da realidade, as imagens materiais fechadas, pudessem ser isoladas de tal modo que não se pudesse alcançar de um cosmo a outro quaisquer influências e informações reais. Desde Newton, há uma influência ilimitada de cada unidade material sobre outra qualquer, em um espaço ilimitado. No espaço absoluto, nenhum elemento é por completo independente de tal modo que em algum outro lugar não esteja um outro. No sentido estrito, daí não mais pode haver uma pluralidade de mundos. Kant, que na cosmogonia de seus primeiros escritos, faz um uso sem conta do plural dos mundos, sentiu a necessidade de declarar expressamente: “todos os mundos [são] uma única construção”, de maneira que a expressão de um “mundo dos mundos” não significa senão que a não simultaneidade da formação das estruturas materiais de todo o universo: os mundos estão menos próximos entre si, no espaço infinito, do que um a seguir do outro, no tempo infinito. O que produz esta unificação do mundo é a validade homogênea das leis da física de Newton, do mesmo modo que o século XVIII, do pensamento da multiplicidade dos mundos possíveis, extraiu a consequência da definição do conceito de razão, a que se pode atribuir o que é válido em todos os mundos e é passível de conexão. Se o plural dos mundos pode ser usado discursivamente, como quando dois homens ou dois sistemas de pensamento estão separados entre si ou separados em mundos diversos, assim essa fórmula corrói conscientemente o outro pensamento, mas, mesmo nessa distância, ainda deveria haver um mínimo de comunhão racional – justamente, nesse ponto de vista, a aludida fórmula cria uma ambiguidade consciente.
Pode-se formalmente observar como o plural dos mundos, afastado e liberado de sua genuína função cosmológica e de sua utilidade, agora se desdobra como um instrumento para novas mensagens, como metáfora para a pluralidade dos mundos dos homens, dos mundos da cultura, que quebra a exigência de exclusividade da história bíblica e da moral do interior da Europa. A partir de Montaigne torna-se clara a visão de crítica da moral, pois além da montanha, junto com uma outra moral, um outro mundo (“novo mundo”) é concebível. Em Maquiavel, o plural significa que as estruturas políticas só podem ser observadas imanentemente e, por isso, deve haver leis de preservação absolutamente independentes umas das outras. Com isso, o mundo permanece um conceito para o qual não há qualquer referência; um conceito da relativização, até à tentativa do racionalismo em manter um mínimo de norma frente à diversidade cultural. Aquele que queira ser um existente (Seiend) absoluto deve ter “seu” mundo. Oclusão hermética, contradições, intraduzibilidade das regras são criadas artificialmente e com arte para permitir mundos próprios. Esteticamente, esse princípio da multiplicidade e da unidade do mundo se realiza da maneira mais clara, mesmo que a mediação histórica não possa ser alcançada. Com sua multiplicidade, o mundo perdeu tudo que se pode conceber em um objeto da experiência, conforme a analogia com lima coisa. O mundo não tem o caráter nem do círculo fechado dos antigos, nem o complexo material aberto, segundo a analogia da molécula. Mas, enquanto não se tornou uma ideia das possíveis experiências e tampouco o conceito de um objeto da experiência, a sua “determinação externa” se torna metaforicamente acessível. Uma vista de olhos rápida e aguda, mesmo que de menor qualidade, torna clara essa determinação externa. Mesmo se para ninguém o mundo ainda é uma esfera, ela se torna propriamente significativa quando um moralista como o príncipe Von Ligne a usa como imagem: “O mundo é uma esfera que Deus faz rolar.” É difícil dizer o que isso significa e naturalmente ainda mais difícil, ou seja, impossível, declarar que significa algo preciso. Porém é só tão profundo como os moralistas costumam ser. Mas o que se vê de imediato, tão logo se lhe endereça uma pergunta, é a possibilidade de converter a metáfora em um mito. A velha frase cosmológica sobre a natureza da esfera rolante converteu-se em uma metáfora para a intranquilidade e a irrefreabilidade da história humana.
Metáforas absolutas dessa ordem não se excluem reciprocamente, mesmo se isso sucede por um relacionamento objetivo. Tomo a metáfora da esfera do príncipe von Ligne em face de uma outra de Joubert: “O mundo foi feito como a teia de uma aranha.” As duas imagens se excluem reciprocamente, pois não se consegue rolar a teia de uma aranha à semelhança de uma esfera. Mas é admissível dizer que o mundo não é um objeto cujos mais diversos aspectos devem ser passíveis de uma camuflagem, senão que é uma totalidade não objetual e o que pode ser declarado sobre seu movimento, como seu processo de intensidade, não exclui que, com a metáfora da teia, ainda se expresse a insignificância de sua substância, a prevalência do vazio e, no entanto, a firmeza de sua função (ocasionalmente, ademais, Joubert também se exprime conceitualmente: “Todo o mundo é tão só um éter menos espesso…”. De repente, considere-se quão expressiva seria a metáfora como pesquisa que servisse para as expressões especializadas da física; o que então seria explicado pelo conceito de “éter compactado”?
Quem, como o suíço Friedrich Theodor Vischer, era perseguido pela obsessão do resfriamento, via o mundo e seu nascimento exclusivamente na metáfora de um resfriamento violento. O autor via Urner Loch entre seus heróis: “Com as costas apoiadas contra a parede de uma rocha, com um pé que lança o punho rumo ao céu…”, uma figura de Kierkegaard, o princípio metafísico que maldiz com cinismo atroz, que, na fúria da natureza, apenas consegue brandir no ouvido do narrador: “E Deus falou: será como o catarro — … o mundo, o resfriamento do absoluto — na solidão — cuspiu e fez-se o mundo — o mundo, a tosse forte, a tosse seca do eterno…” Isso é quase um mito, se se devesse pôr a pergunta: tendo se resfriado a essência criadora do mundo, por lhe faltar um lenço, o mundo surgiu do transtorno resultante.
Nietzsche foi o primeiro a unir as expressões “metáfora” e “mundo” e falou em “mundos-metáfora”. Há aqui uma articulação, pois uma metáfora-mundo há e deve haver, porquanto é uma vacância do conceito, que só pode ser preenchida pela imaginação. Por isso as metáforas e os mundos-metáfora se enlaçam com uma lógica própria de sua associação, com sua cobertura e pontos de contato imagéticos, que, no entanto, como mostram os exemplos da esfera e da teia de aranha, podem ter uma evidente impossibilidade de união.
Tudo isso é comparável a Wittgenstein: “Dar a essência da frase significa dar a essência da descrição, e assim a essência do mundo.”
BLUMENBERG, Hans, Teoria da não conceitualidade. Trad. de Luiz Costa Lima. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
Metáforas-mundo cioranianas
A psicologia é nossa salvação e nossa superficialidade. Antes, o mundo havia nascido de um bocejo do diabo (segundo a visão cristã). Para nós, o acidente do mundo não é mais do que um erro… psicológico.
Também as sombras têm sua vida ainda não traduzida. Muito poucos poetas conheceram a humanidade. Tantos objetos ficaram encerrados em si mesmos, estranhos à sua própria significação! Quem poderia nos salvar mediante uma solidão tão vasta quanto o mundo?
Na arte, o centro de gravidade explica, se não a estrutura formal e os estilos, em todo caso a atmosfera interior. Para El Greco o mundo é uma avalanche cósmica em direção a Deus; quer cair nele, em seu centro gravitacional, ao passo que para Van Gogh a avalanche cósmica encontra o seu centro no caos interior. A matéria despenca furiosamente em si mesma, nas cascadas do próprio abismo. Este é um dinamismo imanente.
O mundo não é mais do que o exercício de nossa tristeza. Necessitávamos pensar em algo. E inventamos o mundo como matéria de reflexão. Por isso é que o pensamento não perde nenhuma ocasião de destrui-lo.
Lacrimi și sfinți
O mundo é um Não-Lugar universal. É por isso que não se tem para onde ir, nunca…
Amurgul gîndurilor
Cada ser nutre-se da agonia de outro ser; os instantes se precipitam como vampiros sobre a anemia do tempo; o mundo é um receptáculo de soluços..
Solidão do ódio… Sensação de um deus voltado para a destruição, pisoteando as esferas, babando sobre o céu e sobre as constelações…. de um deus frenético, sujo e malsão; um demiurgo ejaculando, através do espaço, paraísos e latrinas: cosmogonia de delirium tremens; apoteose convulsiva em que o fel coroa os elementos… As criaturas se lançam na direção de um arquétipo de fealdade e suspiram por um ideal de deformidade… Universo da careta, júbilo da toupeira, da hiena e do piolho… Nenhum horizonte mais, salvo para os monstros e para os vermes. Tudo se encaminha para o repulsivo e para o gangrenoso: este globo que supura enquanto que os viventes mostram suas feridas sob os raios do cancro luminoso.
Breviário de decomposição