Muitas vezes, quem se diz “pró-vida” é, em verdade, um sádico pró-suplício: obriga a nascer e proíbe de morrer, quer torturar e fazer sofrer

O movimento “pró-vida” é essencialmente dogmático-religioso. Sua persistência histérica em nossos tempos é um vestígio do velho clericlarismo remanescente na política secular moderna. Durante quase dois milênios, a Igreja manteve poder soberano sobre a vida e a morte de todas as pessoas, fieis ou não. A Igreja matou a rodo… em nome de Deus.
Dizer-se “pró-vida” é ser um falso moralista, um embusteiro descarado, é fazer crer que você se distingue de outras pessoas por ser (mais) a favor da vida do que elas. Ninguém em sã consciência é “pró-morte”. A não ser serial killers e Bolsonaro, cuja especialidade é matar. Como afirma Julio Cabrera, “se existe um dilema, a morte está em todas as alternativas.” O dilema é, então, como viver, como morrer.
Para o estoicismo, única filosofia que representou uma ameaça ao cristianismo em matéria de consolação, o apego excessivo à vida é tão mórbido quanto a mortificação. Mais populista, o cristianismo venceu. Tivesse triunfado o estoicismo, não testemunharíamos essa inflação histórica da “alma” (doentia) e, com ela, de uma concepção falsa (igualmente doentia) da vida e da morte. O estoicismo compreendia o suicídio, julgava-o racional e (dependendo do caso) até mesmo virtuoso. O cristianismo baniu o suicídio, condenando o suicida ao inferno. O cristianismo divinizou uma vida de morte, a vida como suplício obrigatório. O caso de Dostoiévski é sintomático:
O anseio de viver nos deixa sempre numa situação humilhante, e as pessoas vivem mendigando anos, dias, minutos de vida, mesmo em condições lamentáveis: como o escritor Dostoievski, que dizia ser capaz de viver imóvel, preso entre duas pedras, apenas respirando e olhando para o céu, para não ter de aceitar a ideia da morte.
Julio Cabrera, “O suicida: um viajante kafkiano“, A Ética e suas negações: não nascer, suicídio e pequenos assassinatos
O problema de desejar isso para si mesmo é que se termina por impor a mesma coisa aos demais. Bolsonaro disse certa vez que sua “especialidade é matar” (sic). Às vezes, acontece de ele falar a verdade. Seus correligionários têm a mesma habilidade. Dos milicianos que executaram Marielle Franco até juízes que arbitram em favor de estupradores, contra as vítimas, vê-se a mesma psicopatia sádica, a mesma vontade perversa de torturar, de institucionalizar o suplício.
Em 2020, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (sic), Damares Alves, agiu para impedir que uma menina de dez anos de idade, estuprada sistematicamente pelo próprio tio, fosse submetida a um procedimento médico para descontinuar a gravidez. Para piorar, a extremista Sara Giromini, ex-Femen e à época assessora da ministra Damares, foi orientada a divulgar o nome da criança e o nome do hospital onde ela faria o aborto em um vídeo no YouTube, incitando os seus seguidores a ir para a porta do hospital, no Recife, protestar contra a interrupção da gravidez.
Esta semana, mais um caso uma criança estuprada e que, em vez de ser amparada, sofre uma segunda violência (jurídica) do Estado, o qual acaba sendo um segundo algoz, para completar a tragédia. É o modus operandi bolsonarista: culpabilizar a vítima, respaldar o abusador.
A criança desta vez, que tinha 10 anos quando foi internada, na véspera do seu aniversário, corre risco de vida, devido à sua idade, a cada semana que é forçada a levar a gestação adiante. Em 4 de maio, quando a menina e sua mãe foram ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, o HU, ligado à UFSC, ambas afirmaram à psicóloga que não queriam manter a gravidez, segundo laudo da profissional.
Dois dias depois, a promotora Mirela Dutra Alberton, do Ministério Público catarinense, ajuizou uma ação cautelar pedindo o acolhimento institucional da menina, onde deveria “permanecer até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco [de violência sexual] e possa retornar para a família natural”. No texto, a promotora reconhece que a gravidez é de alto risco: “Por óbvio, uma criança em tenra idade (10 anos) não possui estrutura biológica em estágio de formação apto para uma gestação”.
As imagens da audiência entre a juíza e a menina estão sob sigilo judicial, mas foram enviadas ao Intercept por uma fonte anônima. Os vídeos são um raro registro da conduta de autoridades nesse tipo de audiência e mostram que, apesar de ser mencionada a possibilidade do aborto legal, prevalece a defesa da manutenção da gravidez e do parto antecipado. Os rostos da menina e da mãe, assim como suas vozes, foram alterados para preservar suas identidades.
A audiência avança, e a conversa retoma a ideia de que a gestação deve prosseguir para que o bebê seja entregue à adoção. A juíza Ribeiro e a criança travam o seguinte diálogo:
– Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer? – pergunta a juíza.
– Não – responde a criança.
– Você gosta de estudar?
– Gosto.
– Você acha que a tua condição atrapalha o teu estudo?
– Sim.
Faltavam alguns dias para o aniversário de 11 anos da vítima. A juíza, então, pergunta:
– Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?
– Não – é a resposta, mais uma vez.
Após alguns segundos, a juíza continua:
– Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção? – pergunta, se referindo ao estuprador.
– Não sei – diz a menina, em voz baixa.
A audiência com a mãe da vítima segue no mesmo tom. “Hoje, há tecnologia para salvar o bebê. E a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”, afirma Ribeiro. Ela responde, aos prantos: “É uma felicidade, porque não estão passando o que eu estou”. (The Intercept, 20/06/2022)
Isto é um “pró-vida”. Nunca confie em um. Eles desejam o suplício universal. A sua máquina de supliciar e matar necessita de sofrimento humano para continuar funcionando.
Alguém emprega continuamente a palavra “vida”? Saiba que é um doente.
CIORAN, Silogismos da amargura
O papa acaba de condenar os meios contraceptivos, a “pílula”. Estou indignado. É uma medida criminosa. Esse celibatário imbecil ousa imiscuir-se na vida íntima das famílias, condenando ao desespero ou à infâmia tantas jovens que “pecaram”… A juventude de Roma, em vez de protestar a torto e a direito, melhor faria se tomasse o Vaticano de assalto.
CIORAN, Cahiers : 1957-1972
Trabalham para converter outrem? Não será jamais para operar nele a salvação, mas para obrigá-lo a padecer como vocês, para que se exponha às mesmas provações e as atravesse com a mesma impaciência. Velam, oram e se atormentam? Que o outro o faça tanto quanto, que suspire, uive, debata-se em meio às mesmas torturas. A intolerância é própria dos espíritos devastados cuja fé se reduz a um suplício mais ou menos desejado, que eles gostariam de ver generalizado, instituído. Sendo que a felicidade alheia jamais foi um móvel nem um princípio de ação, só é invocada para proporcionar uma boa consciência ou para se revestir de nobres pretextos: o impulso de qualquer ação à qual nos determinamos, e cuja execução precipitamos, é quase sempre inconfessável. Ninguém salva ninguém; pois só se salva a si, o que se consegue melhor disfarçando de convicções a infelicidade que se deseja distribuir e prodigar. Por mais prestigiosas que sejam suas aparências, o proselitismo não deriva menos de uma generosidade duvidosa, pior em seus efeitos que uma agressividade patente. Ninguém está disposto a suportar sozinho a disciplina que ele mesmo assumiu, nem o jugo ao qual consentiu. A vingança transparece sob a alegria do missionário e do apóstolo. Não é para libertar, é para sujeitar que se dedica a converter.
CIORAN, “Retrato do homem civilizado“, La chute dans le temps
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