O texto: Seleção de aforismos de âRencontres avec le suicideâ, um dos capĂtulos de Le mauvais dĂ©miurge (1969), de E. M. Cioran. Trata-se de ruminaçÔes, variaçÔes sobre a questĂŁo capital, muitas das quais vacilaçÔes em torno do suicĂdio, cuja ideia Ă© priorizada em detrimento de sua realização. SĂŁo âencontros e desencontrosâ com o suicĂdio que, levando a compreender suas razĂ”es, fazem da vida uma apaixonada luta contra as evidĂȘncias, um âestado de nĂŁo-suicĂdioâ.
Texto traduzido: Cioran, E. M. âRencontres avec le suicideâ. Le mauvais dĂ©miurge (1969). In. Ćuvres. Paris: Gallimard, 1995, pp. 1203-1217.
O autor: E. M. Cioran (1911-1995), escritor e filĂłsofo romeno de expressĂŁo francesa, nasceu em RÄÈinari. Distinto estilista de lĂngua francesa, na qual se consagrou por seus livros de aforismos e ensaios, Cioran Ă© um emblemĂĄtico caso de bilinguismo no sĂ©culo XX. Ă considerado pelos exegetas o representante filosĂłfico de um pensamento existencial trĂĄgico e pessimista, de matizes gnĂłstico-niilistas, na contramĂŁo do popular existencialismo francĂȘs. Sua obra Ă© marcada pela dualidade entre uma visĂŁo de mundo sombria e uma paixĂŁo trĂĄgica da existĂȘncia, pelo paradoxo de um pessimismo irremediĂĄvel e tonificante. Perseguido pela ideia do suicĂdio, faleceu aos 84 anos, sem se suicidar.
O tradutor: Rodrigo Menezes Ă© doutor em Filosofia pela PUC-SP e pesquisador acadĂȘmico da obra de Cioran. Para a (n.t.) traduziu Cioran, HĂ©ctor Escobar GutiĂ©rrez e Mihai Eminescu.
HĂĄ em nĂłs uma tentação, mais que uma vontade, de morrer. Pois se nos fosse dado querer a morte, quem nĂŁo se aproveitaria disso Ă primeira contrariedade? Outro empecilho se impĂ”e ainda: a ideia de se matar parece incrivelmente nova para quem estĂĄ por ela possuĂdo; ele imagina executar entĂŁo um ato sem precedentes; esta ilusĂŁo o ocupa e o lisonjeia, fazendo-o perder um tempo precioso.
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O suicĂdio Ă© uma realização brusca, uma libertação fulgurante: Ă© o nirvana pela violĂȘncia.
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Quando somos invadidos pela ideia de acabar com tudo, um espaço se estende diante de nós, uma vasta possibilidade fora do tempo e da própria eternidade, uma abertura vertiginosa, uma esperança de morrer para além da morte.
Matar-se Ă©, de fato, rivalizar com a morte, Ă© mostrar que se pode fazer melhor que ela, Ă© trapacear com ela e, ĂȘxito nĂŁo desprezĂvel, redimir-se a seus prĂłprios olhos. Tranquiliza-se, persuade-se assim de que nĂŁo se Ă© o Ășltimo, que se merece algum respeito. Diz-se: AtĂ© o presente, incapaz de tomar uma iniciativa, eu nĂŁo tinha nenhuma estima por mim mesmo; agora tudo muda de figura: destruindo-me, destruo de uma sĂł vez todas as razĂ”es que eu tinha de me desprezar, retomo confiança, sou alguĂ©m para sempre…
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Esperar a morte Ă© sofrĂȘ-la, Ă© promovĂȘ-la ao nĂvel de um processo, Ă© resignar-se a um desenlace do qual se ignora a data, o modo e o cenĂĄrio. EstĂĄ-se longe do ato absoluto. NĂŁo hĂĄ nada em comum entre a obsessĂŁo do suicĂdio e o sentimento da morte â refiro-me a esse sentimento profundo, constante, de um fim em si mesmo, de uma fatalidade de perecer enquanto tal, inseparĂĄvel de um pano de fundo cĂłsmico e independente desse drama do eu, no centro de toda forma de autodestruição. A morte nĂŁo Ă© necessariamente sentida como libertação; o suicĂdio liberta sempre: Ă© o apogeu, o paroxismo da salvação. Dever-se-ia, por decĂȘncia, escolher por si mesmo o momento de desaparecer. Ă aviltante prolongar-se como se costuma prolongar-se, Ă© intolerĂĄvel ser exposto a um fim sobre o qual nĂŁo temos nenhum poder, que nos espreita, nos abate, nos precipita no inominĂĄvel. Talvez chegue o momento em que a morte natural serĂĄ totalmente desconsiderada, em que o catecismo serĂĄ enriquecido de uma nova fĂłrmula: âDai-nos, Senhor, o favor e a força de acabar com tudo, a graça de nos apagar do tempo.â
A conspiração milenar contra o suicĂdio Ă© a causa do congestionamento e da esclerose das sociedades. Cabe a nĂłs aprender a destruir-nos no momento certo, a correr alegremente para nosso espectro. Enquanto nĂŁo nos resolvemos a isto, merecemos nossas humilhaçÔes. Quando se esgotou sua razĂŁo de ser, Ă© odioso obstinar-se. Mas Ă© justa a indignidade da morte natural que se percebe, por onde quer que se olhe.
âAo se reencontrar, apĂłs muitos anos, uma pessoa que se conheceu na infĂąncia, o primeiro olhar sempre faz supor quase sempre que algum grande infortĂșnio deve tĂȘ-la marcadoâ (Leopardi). Durar Ă© diminuir-se: a existĂȘncia Ă© perda de ser. Posto que ninguĂ©m desaparece quando seria necessĂĄrio, dever-se-ia chamar a atenção de quem quer que sobreviva a si prĂłprio, encorajĂĄ-lo e, se necessĂĄrio, ajudĂĄ-lo a encurtar seus dias. A partir de determinado momento, perseverar Ă© consentir em decair. Mas, como estar certo de seu declĂnio? NĂŁo se pode equivocar-se sobre os sintomas? A consciĂȘncia de decair nĂŁo implica uma superioridade sobre o declĂnio? E, neste caso, ainda se estĂĄ decaĂdo? Como, uma vez mais, saber que se começou a degringolar, como determinar esse momento? â O erro Ă© sem dĂșvida possĂvel, mas nĂŁo importa nem um pouco porque, de qualquer maneira, nĂŁo se morre nunca a tempo. Vai-se Ă deriva, e Ă© apenas quando se afunda que se confessa naufragado. E entĂŁo Ă© tarde demais para soçobrar de bom grado.
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Faz bem pensar que Ă© possĂvel se suicidar. Nenhum assunto Ă© mais tranquilizante: assim que o abordamos, respiramos. Meditar sobre ele torna quase tĂŁo livre quanto o ato em si.
Quanto mais Ă margem dos instantes estou, mais a perspectiva de subtrair-me para sempre me reincorpora Ă existĂȘncia, me coloca em pĂ© de igualdade com os viventes, me confere uma espĂ©cie de honorabilidade. Essa perspectiva, sem a qual nĂŁo posso passar, me tirou de todos meus abatimentos e, sobretudo, me permitiu atravessar aquelas Ă©pocas em que nĂŁo tinha nenhum agravo contra ninguĂ©m, em que eu estava repleto. Sem o seu socorro, sem a esperança que ela me proporciona, o paraĂso me pareceria o pior dos suplĂcios. Quantas vezes disse para mim mesmo que, sem a ideia do suicĂdio, eu me mataria no ato! O espĂrito de que se apodera a mima, a idolatra, espera dela milagres. Como um homem em vias de se afogar que se aferrasse Ă ideia do naufrĂĄgio.
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HĂĄ tantas razĂ”es para suprimir-se quanto para continuar, com a diferença de que estas Ășltimas detĂȘm mais antiguidade e solidez; elas pesam mais do que as outras porque se confundem com as nossas origens, ao passo que as primeiras, frutos da experiĂȘncia, sendo necessariamente mais recentes, sĂŁo ao mesmo tempo mais prementes e mais incertas.
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O mesmo que diz: âNĂŁo tenho coragem de me matarâ, tacharĂĄ de covardia, no instante seguinte, uma proeza diante da qual os mais valentes recuam. Matamos-nos, repete-se incessantemente, por fraqueza, para nĂŁo ter que enfrentar a dor ou a vergonha. SĂł que nĂŁo vĂȘ que sĂŁo precisamente os fracos que, longe de tentar escapar, se acomodam a ele, e que Ă© preciso vigor para subtrair-se de maneira definitiva. Na verdade, Ă© mais fĂĄcil matar-se do que vencer um preconceito mais antigo do que o homem, ou ao menos do que as religiĂ”es, tĂŁo tristemente impermeĂĄveis ao gesto supremo. Enquanto a Igreja se impunha, somente o alienado desfrutava de um regime de favor, sĂł ele tinha o direito de atentar contra os seus dias: seu cadĂĄver nĂŁo era profanado nem suspendido. Entre o estoicismo antigo e o âlivre pensamentoâ moderno, entre, digamos, SĂȘneca e Hume, o suicĂdio sofre, Ă exceção do intermĂ©dio cĂĄtaro, um longo eclipse â era sombria, de fato, para todos os que, querendo morrer, nĂŁo ousavam infringir a interdição de se dar Ă morte.
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Aquele que nunca imaginou se matar decidirĂĄ fazĂȘ-lo muito mais prontamente do que aquele que pensa nisso incessantemente. Todo ato crucial sendo mais facilmente realizĂĄvel por irreflexĂŁo do que por exame, o espĂrito virgem de suicĂdio, uma vez que se sente possuĂdo por ele, nĂŁo terĂĄ nenhuma defesa contra esse impulso sĂșbito; serĂĄ cegado e chacoalhado pela revelação de um desenlace definitivo, que ele nĂŁo tinha considerado antes â ao passo que o outro poderĂĄ sempre retardar um gesto que foi pesado e repesado indefinidamente, que ele conhece a fundo e ao qual se dedicarĂĄ sem paixĂŁo, se um dia resolver fazĂȘ-lo.
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Os horrores que abundam no universo sĂŁo parte integrante da sua substĂąncia; sem eles, cessaria fisicamente de existir. Tirar disso as Ășltimas consequĂȘncias nĂŁo Ă© cometer um âbeloâ suicĂdio. SĂł merece o epĂteto aquele que surge do nada, sem motivo aparente, âsem razĂŁoâ: o suicĂdio puro. Ă ele â desafio a todas as maiĂșsculas â que humilha, que esmaga Deus, a ProvidĂȘncia e atĂ© o Destino.
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Desaprendemos a arte de matar-nos friamente. Os Antigos foram os Ășltimos a se sobressair nela. NĂŁo concebemos senĂŁo o suicĂdio apaixonado, febril, o suicĂdio como estado inspirado; quanto ao desprendimento, Ă© como convulsionĂĄrios que sonhamos com ele. Aqueles sĂĄbios de antes da Cruz sabiam romper com este mundo ou resignar-se a ele, sem drama nem lirismo. Seu costume estĂĄ perdido, assim como o fundamento de sua imperturbabilidade: uma ProvidĂȘncia usurpadora veio desalojar o Fatum de todas as partes. E nĂłs corremos para reencontrĂĄ-lo, para buscar nele um sustento, quando nenhum outro saberia nos ajudar nem seduzir.
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Naquela ilhota do MediterrĂąneo, bem antes de amanhecer, eu fazia, pelo caminho que me levava Ă falĂ©sia mais abrupta, reflexĂ”es de porteiro de fĂ©rias: possuirei esta villa, a pintarei de ocre, colocarei outra cerca, etc. A despeito da minha ideia, eu me preocupava com a menor insignificĂąncia: contemplava os agaves, me demorava, escamoteava com digressĂ”es a urgĂȘncia do meu propĂłsito. Um cĂŁo se pĂŽs a latir, em seguida fez festa para mim e me seguiu. NĂŁo se pode imaginar, sem tĂȘ-lo experimentado, o reconforto que nos dĂĄ um animal que nos vem fazer companhia quando os deuses nos deram as costas.
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A obsessĂŁo do suicĂdio Ă© prĂłpria de quem nĂŁo pode viver nem morrer, e cuja atenção nĂŁo se aparta jamais dessa dupla impossibilidade.
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Se este mundo emanasse de um deus honrado, matar-se seria uma audĂĄcia, uma provocação inominĂĄvel. Mas como tudo leva a crer que se trata da obra de um subdeus, nĂŁo se vĂȘ porque alguĂ©m se incomodaria. Quem poupar? Grande beneficiado do eclipse da fĂ©, o suicĂdio serĂĄ cada vez mais fĂĄcil e, por isso mesmo, menos misterioso, posto que terĂĄ gastado seu prestĂgio de anĂĄtema. Outrora picante e meritĂłrio, entra agora nos costumes, ganha terreno e, se ele cessa de ser insĂłlito, seu futuro parece, em compensação, garantido. No interior do universo religioso, ele aparecia como uma insanidade e uma traição, como a feitoria por excelĂȘncia. Como crer e aniquilar-se? Atenhamo-nos Ă hipĂłtese do subdeus, que tem a vantagem de permitir os gestos extremos, a vitĂłria radical sobre um mundo insano.
Pode-se figurar esse criador, enfim consciente do seu desvario, declarando-se culpado: ele desiste, retira-se, e, por um Ășltimo prurido de elegĂąncia, faz-se justiça. Desaparece assim com sua obra, sem que o homem conte para nada. Tal seria a versĂŁo melhorada do JuĂzo Final.
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Os suicidas prefiguram o destino longĂnquo da humanidade. SĂŁo anunciadores e, enquanto tais, devem ser respeitados: sua hora chegarĂĄ; serĂŁo celebrados, lhes farĂŁo homenagens pĂșblicas e dirĂŁo que somente eles, no passado, haviam entrevisto tudo, adivinhado tudo. DirĂŁo ainda que tomaram a dianteira, que se sacrificaram para indicar o caminho, que foram, ao seu modo, mĂĄrtires: nĂŁo se mataram em um tempo quando ninguĂ©m era levado a isso, e quando a morte natural estava no seu auge? Souberam antes dos outros que a impossibilidade pura e simples seria um dia o lote de todos, em vez de uma maldição, um privilĂ©gio.
Precursores, assim serĂŁo chamados; e o foram tanto quanto aqueles que, sensĂveis Ă soberania do mal, incriminavam a Criação: os maniqueus no inĂcio da era cristĂŁ e, singularmente, seus discĂpulos tardios, os cĂĄtaros. O admirĂĄvel Ă© que essa incriminação, no caso destes Ășltimos, era mais frequente em meio ao povo do que entre os letrados. Para convencer-se disto, basta consultar o Manual do Inquisidor de Bernardo Gui, ou qualquer relato da Ă©poca sobre as ideias e prĂĄticas dos âherĂ©ticosâ. AĂ se verĂĄ â detalhe reconfortante â a esposa de um carpinteiro ou de um comerciante de madeira Ă s voltas com LĂșcifer, ou acusando os nossos primeiros ancestrais do âato mais satĂąnico que existeâ. Aqueles sectĂĄrios, ou antes visionĂĄrios, tĂŁo curiosamente desenganados em meio ao seu fervor, investidos do dom de discernir as armadilhas diabĂłlicas por detrĂĄs de todos os nossos atos importantes, sabiam, se necessĂĄrio, deixar-se morrer de fome, e essa proeza, nem um pouco inabitual entre eles, marcava o ĂĄpice de sua doutrina. Colocar-se em endura, jejuar atĂ© o esgotamento completo, era uma prĂĄtica, consecutiva Ă iniciação, que tinha por missĂŁo preservar o âconsoladoâ, por uma morte rĂĄpida, do perigo de apostasia e de todas as espĂ©cies de tentaçÔes.
O desgosto pelo aspecto Ăștil da sexualidade, o horror da procriação, fazia parte de recolocar em causa a Criação: para quĂȘ multiplicar monstros? Se tivesse triunfado e permanecido fiel a si mesmo, o catarismo teria culminado em um suicĂdio coletivo. Semelhante ĂȘxito nĂŁo era nem um pouco possĂvel: por mais avançados que fossem, os espĂritos nĂŁo estavam suficientemente maduros. Inclusive hoje, ainda estĂŁo longe disso, e serĂĄ preciso esperar por muito tempo atĂ© que a humanidade se coloque em endura. Admitindo-se que o farĂĄ algum dia.
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Por que não me mato? Se eu soubesse exatamente o que me impede, não teria mais questÔes a me colocar, pois teria respondido a todas.
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O difĂcil, para quem renunciou pela metade, Ă© fazer o que falta. A existĂȘncia sem dĂșvida lhe pesa, mas ele nĂŁo esgotou sua surpresa de existir. DaĂ vĂȘm suas irresoluçÔes, e o arrependimento de se ter detido a meio-caminho, sem nenhuma chance de levar a cabo um desĂgnio concebido de longa data. Um fracassado da renĂșncia.
CIORAN, “Rencontres avec le suicide”, Le mauvais dĂ©miurge (1969). In. Ćuvres. Paris: Gallimard, 1995, pp. 1203-1217. In: Revista (n.t.) Nota do Tradutor, nÂș 23, vol. especial (âSuicidĂĄrioâ), 2021 [PDF]. Trad. de Rodrigo Menezes (Portal E.M. Cioran Brasil).
[…] sua obra, mas as reflexĂ”es mais exaustivas que ele faz do mesmo se encontram no capĂtulo “Encontros com o suicĂdio” de seu livro O mau demiurgo. Torna-se difĂcil sintetizar as idĂ©ias de Cioran contidas nas […]
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