
O nº 23 da revista (n.t.) Nota do Tradutor, que acaba de sair, é a segunda edição especial em mais de uma década de projeto. Desta vez, tematizamos o fenômeno do suicídio. Ao reunir 29 autores estrangeiros, em 15 idiomas diferentes, este número é uma espécie de Suicidário que contempla os mais variados pontos de intersecção entre a literatura e o ato. Por isso, apostando no cosmopolitismo e na pluralidade de vozes, decidimos preparar uma antologia literária e humanística que se presta a uma reflexão multidisciplinar e crítica sobre a questão. Afinal, a literatura é um meio privilegiado de ir além de nossas províncias pessoais, sempre tão demarcadas, e abordar sensivelmente certos tabus, tocar o intocável, dizer o indizível. Os estudos literários têm muito a contribuir para uma compreensão humanizada do ato do suicídio.
Nos últimos anos, houve um aumento significativo de publicações sobre o tema, tanto no campo dos estudos literários quanto nas ciências humanas em geral. São obras que abordam, por diferentes caminhos, e com métodos variados, esse fenômeno tão estigmatizado, tratado como crime ou pecado, contribuindo para elucidá-lo e humanizá-lo. O propósito deste Suicidário não é diferente. É uma edição temática especial da (n.t.) que vem somar-se à extensa bibliografia[1] disponível sobre o suicídio, oferecendo-se como um aporte humanístico valioso em torno desse que, segundo Camus, em O mito de Sísifo, é o único problema filosófico realmente sério, pois julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à interrogação fundamental da filosofia.
A presente edição abre com um ensaio inédito de Julio Cabrera (1944-), filósofo argentino radicado no Brasil, mundialmente conhecido pelos seus estudos em matéria de ética negativa e um dos principais representantes latino-americanos do antinatalismo contemporâneo. Trata-se de um argumento filosófico com o propósito de “humanizar o ato suicida, removendo-o do invólucro de estranheza que habitualmente o acompanha”. Segundo Cabrera, é preciso compreender e aceitar a escolha do suicida, sem condená-lo nem louvá-lo, uma vez que “suicidar-se nunca é heroico. […] Continuar vivendo, pelo contrário, é sempre heroico”, argumenta o filósofo. O ensaio conta com versões em três idiomas: português, espanhol e inglês.
Em seguida, na seção de Poesia e Prosa, apresentamos as traduções, dispostas em ordem cronológica, cujo critério é a data de nascimento dos autores. Elas recobrem, em seu conjunto, um amplo arco histórico que vai da Antiguidade aos tempos atuais. O primeiro dos textos, o antigo diálogo mesopotâmico intitulado Servo, serve-me!, na tradução de Gleiton Lentz, é um tratado filosófico acadiano do primeiro milênio a.C., que aborda o suicídio como um ato soberano, uma possibilidade de libertar-se dos grilhões da servidão. Vale frisar que, muito embora esta edição tenha o suicídio como eixo temático, nem todos os autores reunidos aqui foram os autores de suas mortes. Dito isso, o post-scriptum apresenta aforismos inéditos de Emil Cioran, pensador romeno que viveu meditando sobre o suicídio, mas que se manteve aquém do ato, na tradução de Encontros com o suicídio, por Rodrigo Menezes.
E entre o diálogo e os encontros, eis os autores e as traduções que compõem este Suicidário: o francês Gérard de Nerval, com Passeios e lembranças, por Vera Lúcia de Azevedo Siqueira; o armênio Yeghia Temirtchipashian e sua Canção disforme, por Fernando Januário Pimenta e Lusine Yeghiazaryan; o andaluz Ángel Ganivet, com Os corvos, por Willian Henrique Cândido Moura; o francês Léon Deubel, com Os malditos, por Cílio Lindemberg; o romeno Urmuz e seu Filme documentário da morte, por Fernando Klabin; a estadunidense Sara Teasdale, com Só, por Alison Silveira Morais; o austríaco Georg Trakl, com Cemitério de São Pedro, por Marcos Müller; o italiano Carlo Michelstaedter, com Despertar, por G. Lentz; o grego Napoleon Lapathiotis, com Estou só, por Miguel Sulis; a argentina Alfonsina Storni, com Eu no fundo do mar, por Luciana Lima Silva; o russo Vladímir Maiakóvski, com A todos, por Verônica Filíppovna; o russo Serguei Essênin, com Meus sonhos, por V. Filíppovna; o grego Kóstas Karyotákis, com suas Elegias e Sátiras, por Théo de Borba Moosburger; o francês Jacques Rigaut, com Serei sério como o prazer, por Natan Schäfer; o japonês Osamu Dazai, com Cerejas, por Karen Kazue Kawana; a italiana Antonia Pozzi e sua Oração à poesia, por Camila Vicentini Camargo e Cláudia Tavares; o franco-uruguaio Albert Caraco, com Breviário do Caos, por Rodrigo Menezes; o sueco Stig Dagerman, com A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer, por Paula Castro e José Daniel Ribeiro; o japonês Yukio Mishima, com Poema de Morte, por Renan Kenji Sales Hayashi; o catalão José Agustín Goytisolo, com Adeus, por Gabriela Ghizzi Vescovi; o francês Jean-Pierre Duprey, com O fim e a maneira, por N. Schäfer; a estadunidense Sylvia Plath, com As danças da noite, por Beta M. X. Reis; a argentina Alejandra Pizarnik, com A última inocência, por Júlia Corrêa; a persa Ghazaleh Alizadeh e suas Últimas palavras, por M. Sulis; a turca Nilgün Marmara, com Túmulo, por Leonardo da Fonseca; e o chinês Haizi (Zha Haisheng), com Diante do mar, flores abrem na primavera, por Marcelo Medeiros e Zhou Chunlin.
E esta edição leva na capa Ixtab, a “deusa da corda”, segundo a mitologia maia (Ix = mulher; tab = corda), considerada por muito tempo a deusa do suicídio por enforcamento. Sua imagem aparece na página 53 do Códice de Dresden (c. 1250-1200 d.C.), um dos quatro códigos maias remanescentes, o qual desempenhou um papel fundamental na decifração da escrita mesoamericana. Nele, Ixtab é representada como uma mulher morta, de olhos fechados, enforcada nos galhos de Yaxche. Essa interpretação remonta à época da conquista espanhola, por parte do inquisidor Diego de Landa, que escreveu sobre Ixtab em sua Relación de las cosas de Yucatán (1566). Leituras mais recentes questionam a sua interpretação como a deusa dos suicidas, alegando que se trata de um equívoco eurocêntrico acerca das crenças maias. Ela seria, na verdade, uma deusa lunar, Ixchel, pois aparece no Códice em uma seção dedicada aos eclipses lunares. O que se sabe é que havia, de fato, na mitologia maia, uma divindade chamada Ixtab, cujos atributos podem ter sido distorcidos ao longo da história. De todo modo, seu nome significa – etimológica e iconograficamente – a “mulher da corda”, sendo descrita geralmente como uma mulher com um nó de enforcamento no pescoço. De resto, os suicidas, na antiga sociedade maia, detinham um status comparável ao das vítimas sacrificiais, das mulheres que morriam no parto e dos guerreiros mortos em combate. Ixtab atuava como uma espécie de “guia das almas”, protegendo os suicidas e conduzindo-os para o céu, onde repousariam eternamente à sombra de uma Yaxche (“árvore da vida”).
Dedicamos a Ixtab esta edição, desejando que ela conduza – qual uma psicopompa – os autores aqui reunidos para o seu merecido repouso à sombra de uma Yaxche. E sob a égide da deusa maia, apresentamos aqui 29 traduções de poetas, escritores e filósofos que contemplaram, cada um a seu modo, o impasse da lucidez diante da existência que pode levar (ou não) à “evasão para fora da luz”, como diria Camus. A heterogeneidade dá o tom do Suicidário, cuja polifonia de vozes é preservada como uma virtude não apenas estética. Os textos traduzidos vão de poemas a ensaios, de contos breves a aforismos, de bilhetes a cartas de despedida – abordando de maneira explícita ou implícita, sóbria ou romanticamente apaixonada, a questão do suicídio. A (n.t.) espera contribuir, com esta edição, para os estudos e debates acerca do suicídio, na interface entre literatura e filosofia, psicologia, antropologia, sociologia, entre outras áreas das ciências humanas.

Este número conta também com a coorganização de Rodrigo Menezes, editor do Portal E.M. Cioran Brasil (2010-2022), e com a ilustração de Isabela Sancho, artista gráfica (além de escritora e psicanalista) convidada que preparou a série de 20 ilustrações intitulada “Eu Sou!”. Seus traços em lápis negro, delineados sobre um fundo branco, traduzem com maestria os sentimentos mais íntimos e os desejos mais silenciosos dos autores vertidos.
Na convicção de apresentar uma publicação humanisticamente valiosa, convidamos os leitores da revista a explorar as páginas deste número especial de nossa (interminável) torre de babel, a conhecer os autores – conduzidos por Ixtab – e descobrir o que cada um deles tem a dizer em seu próprio idioma, a auscultar suas vozes dissonantes, mas sempre com algo em comum, vozes que se impuseram o silêncio eterno, mas que seguem vivas graças ao ofício dos tradutores. Pois traduzir é reavivar.
Boa literatura traduzida, deste e do outro mundo.
Os editores
Desterro/São Paulo, julho de 2022.
[1] Ao final deste número, na seção Index, constam as bibliografias selecionadas relativas a este editorial, ao ensaio de Julio Cabrera e à curadoria da revista como um todo. Em seu conjunto, elas fornecem um aporte bibliográfico substancial sobre a questão do suicídio.
SUMÁRIO
Editorial
Capa da edição: Códice de Dresden
Edição Especial Ilustrada
Coedição de Rodrigo Menezes
Argumento de Julio Cabrera
Ilustração de Isabela Sancho
Idiomas: acádio, francês, armênio, italiano, espanhol, japonês, chinês, inglês, turco, grego, romeno, sueco, alemão, russo e farsi.
Argumento
“Se te queres matar…” Para uma Crítica da razão suicida
“Si te quieres matar…” Hacia una Crítica de la razón suicida
“If you want to kill yourself…” For a Critique of Suicidal Reason
Julio Cabrera
Poesia e Prosa
Servo, serve-me! | 𒀴 𒈪𒄨𒄥𒀭𒉌
(O diálogo do pessimismo)
Anônimo
Trad. Gleiton Lentz
Passeios e lembranças | Promenades et Souvenirs
Gérard de Nerval
Tradª Vera Lúcia de Azevedo Siqueira
Canção disforme | Անգեղն երգ
Yeghia Temirtchipashian
Trad. Fernando Januário Pimenta
Os corvos | Los grajos
Ángel Ganivet
Trad. Willian Henrique Cândido Moura
Os malditos | Les maudits
Léon Deubel
Trad. Cílio Lindemberg
Filme documentário da morte | Filmul documentar al morții
Urmuz (Demetru Demetrescu-Buzău)
Trad. Fernando Klabin
Só | Alone
Sara Teasdale
Trad. Alison Silveira Morais
Cemitério de São Pedro | St.-Peters-Friedhof
Georg Trakl
Trad. Marcos Müller
Despertar | Risveglio
Carlo Michelstaedter
Trad. Gleiton Lentz
Estou só | Είμαι μόνος
Napoleon Lapathiotis
Trad. Miguel Sulis
Eu no fundo do mar | Yo en el fondo del mar
Alfonsina Storni
Tradª Luciana Lima Silva
A todos | Всем
Vladímir Maiakóvski
Tradª Verônica Filíppovna
Meus sonhos | Мои мечты
Serguei Essênin
Tradª Verônica Filíppovna
Elegias e Sátiras | Ελεγεία και Σάτιρες
Kóstas Karyotákis
Trad. Théo de Borba Moosburger
Serei sério como o prazer | Je serai sérieux comme le plaisir
Jacques Rigaut
Trad. Natan Schäfer
Cerejas | 桜桃
Osamu Dazai
Tradª Karen Kazue Kawana
Oração à poesia | Preghiera alla poesia
Antonia Pozzi
Trads. Camila Vicentini Camargo e Cláudia Tavares
Breviário do Caos | Bréviaire du Chaos
Albert Caraco
Trad. Rodrigo Menezes
A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer
Vårt behov av tröst är omättligt
Stig Dagerman
Trads. Paula Castro e José Daniel Ribeiro
Poema de Morte | 辞世
Yukio Mishima
Trad. Renan Kenji Sales Hayashi
Adeus | Adiós
José Agustín Goytisolo
Tradª Gabriela Ghizzi Vescovi
O fim e a maneira | La fin et la manière
Jean-Pierre Duprey
Trad. Natan Schäfer
As danças da noite | The Night Dances
Sylvia Plath
Tradª Beta M. X. Reis
A última inocência | La última inocencia
Alejandra Pizarnik
Tradª Júlia Corrêa
Últimas palavras | کلمات اخر
Ghazaleh Alizadeh
Trad. Miguel Sulis
Túmulo | Mezar
Nilgün Marmara
Trad. Leonardo da Fonseca
Diante do mar, flores abrem na primavera | 面朝大海春暖花开
Haizi (Zha Haisheng)
Trads. Marcelo Medeiros e Zhou Chunlina
Post Scriptum
Encontros com o suicídio | Rencontres avec le suicide
E.M. Cioran
Trad. Rodrigo Menezes
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