“Da dignidade ontológica da literatura” – Jeann-Marie GAGNEBIN

Revista Rapsódia, (8), 2014, p. 51-67

O título bastante pomposo dessa conferência vem da hipótese que gostaria de desenvolver com vocês: na paisagem filosófica contemporânea, em particular no domínio pleno de relações tumultuosas entre filosofia e literatura, Paul Ricœur ocupa um lugar privilegiado. Sem curvar a filosofia sobre uma forma específica de literatura nem a literatura sobre uma expressividade ausente da filosofia, Ricœur se empenha em preservar suas diferenciações históricas, encontrando nessas próprias diferenças a ocasião de interrogações recíprocas e recusando uma distinção de essência mútua entres essas duas disciplinas do pensamento. Como ele o declara a Bruno Clément (Ricoeur, 2004: 197) em uma entrevista, “sempre ficou chocado pela maneira com a qual se diz: ‘isso não é uma questão filosófica’, ‘isso não é uma questão literária’”, mesmo que reconhecida uma “fronteira… profissional entre a filosofia e a literatura” . Essa atitude vai ao encontro de dois procedimentos bem usuais tanto entre os teóricos da literatura quanto entre os filósofos ditos “rigorosos”: ou negar as diferenças entre literatura e filosofia ao reduzi-las a variações de um mesmo grande jogo de linguagem, ou realizar hierarquias em proveito da prioridade do “conceito” (que a literatura não saberia empregar) ou ainda da “imagem” (que a filosofia deveria evitar utilizar).

Muito frequentemente, as aproximações filosóficas correntes buscam encontrar nos textos literários a ilustração sensível de conceitos filosóficos, procurando sob as diversas formas narrativas uma verdade mais “profunda”, que o escritor somente saberia dizer de maneira indireta, mas que o filósofo se orgulha de nomear. Assim, o filósofo revelaria uma verdade mais fundamental, escondida sob o véu da ficção. Para permanecer em exemplos brasileiros, ele descobriria, assim, em Guimarães Rosa uma ética da tradição ou em Clarice Lispector uma concepção de angústia e de temporalidade que remete a Heidegger. Ao fazer isso, o filósofo reafirma as prerrogativas da reflexão filosófica, sua função essencial e fundadora, contra outras formas de linguagem e de saber. Ele reafirma igualmente uma concepção pobre, limitada e limitante, da literatura como um discurso ornamental e superficial, na melhor das hipóteses como uma retórica bem construída, um discurso que poderia se resolver e se dissolver em outra maneira de dizer, talvez menos agradável, todavia mais verdadeira, o discurso filosófico.

É contra esse orgulho, melhor, contra essa hybris dos filósofos que se levanta a hermenêutica de Ricœur. E isso a partir de seus primeiros textos sobre La symbolique du mal até sua concepção da identidade narrativa. Observemos logo em seguida que essa querela entre filosofia e literatura vem de longa data, uma vez que ela marca o nascimento da filosofia mesma com a luta de Platão contra a primazia da poesia homérica e contra a retórica daqueles que ele chama de sofistas. E observemos igualmente que essa disputa sobre os diferentes poderes do discurso, do logos, se ela se inscreve em Platão no contexto de uma preocupação política de justiça (notadamente nas instituições da polis em que predomina o poder da palavra), distanciou-se pouco a pouco da questão política para se transformar em uma reivindicação do privilégio epistemológico do saber filosófico em detrimento de outras formas de pensamento… [PDF]