Cioran, o Nada e o Niilismo: Histórias coextensivas – Rodrigo MENEZES

“Que lástima que o nada tenha sido desvalorizado pelo abuso de filósofos indignos dele!”[1]

CIORAN

Numa entrevista em alemão, Cioran diz: “Não sou niilista: o nada é ainda um programa”,[2] pretendendo assim desvencilhar-se dessa etiqueta, tão frequentemente grudada nele. Cioran cultivou a inação, e viveu na recusa de todo programa: “por acaso respirar não é um?”

“Niilismo” é um vocábulo polissêmico, epistemologicamente instável (“mutante”) e controverso, profundamente carregado de historicidade. A genealogia histórica dos seus usos discursivos remonta a muito antes de Dostoiévski ou Turgeniev (no contexto russo), de Jacobi ou Nietzsche (no contexto alemão), alguns dos autores que promoveram o vocábulo a um estatuto literário e/ou filosófico de primeira ordem. Muitas histórias do niilismo têm sido contadas. Franco Volpi mostra como nihilismus já aparecia em tratados teológicos na transição da Idade Média para o Renascimento, como Liber de nihilo (1509), de Charles de Bovelles, De substantia nihil et tenebrarum, de Fridegísio de Tours, ou a “bíblia do cepticismo niilista” que é – segundo Volpi – o Quod nihil scitur de Francisco Sanches.[3]

Em Histoire cachée du nihilisme [História oculta do niilismo], Michèle Cohen-Halimi menciona a heresia medieval de Pedro Lombardo (1100-1160), teólogo escolástico do século XII cuja posição “nihilianista” sustentava que “o Cristo, longe de encarnar o verbo, não era ‘nem uma pessoa nem uma coisa’, e por conseguinte não era ‘nada’…”[4] Etimologicamente, nihilismus e nihilianismus são formados a partir do radical nihil, “nada”, ideia que tem sido recebido distintos tratamentos na história do pensamento ocidental.

A língua grega nos legou um termo correlato, mas alheio à conotação moralmente depreciativa (sinistra) de “niilismo”: meontologia, teoria e discurso acerca do nada (ou não-ser), tal como em Górgias, que é o autor de um Tratado da natureza ou do não-ser. Contudo, seria ingênuo supor que a etimologia nos possa fornecer o essencial acerca da polissêmica significação de “niilismo”, conceito carregado de historicidade, como previamente dito.

Algumas críticas anacrônicas, se não maliciosas, apontam “niilismo” em sofistas da Antiguidade como Górgias, e nem mesmo Céticos como Sexto Empírico escaparam à acusação de “niilismo” (epistêmico), por professarem uma “forma extremada de ceticismo global que nega a possibilidade de todo e qualquer conhecimento e mesmo de crença justificada.”[5] Para alguns estudiosos do ceticismo, esse niilismo epistêmico é uma forma de “dogmatismo negativo”. Em sua escrita fragmentária, experimental, polifônica, Cioran ora soa como um cético pirrônico, na suspensão do juízo que se abstém de afirmar ou negar qualquer tese, ora como um “dogmático negativo” que atesta a impossibilidade de todo conhecimento seguro, limitando-se portanto a um probabilismo conjectural, como Carnéades e Arcesilau.[6]

A história do niilismo é coextensiva com uma outra, mais vasta, a história do nada. Sergio Givone, filósofo italiano, é autor de uma Storia del nulla [História do nada], que não coincide com a história do niilismo senão em parte, desenrolando-se através de épocas e contextos discursivos remotos e alheios à hodierna problemática do niilismo. “Nada e niilismo se pertencem mutuamente, é óbvio. E, contudo, os dois conceitos devem ser separados”, pois “o niilismo é um fenômeno histórico”, e é essa “historicidade o que se tenta compreender antes de tudo”, ao passo que “pode-se falar do nada suspendendo tranquilamente a história. É o que faz a metafísica com a assim-chamada ‘pergunta fundamental’:

‘Por que há algo em vez de nada’?”[7] O(s) discurso(s) meontológico(s) se insere(m), em meio a outros, no antigo debate acerca da Grundfrage (que é uma controvérsia de natureza metafísica).

O niilismo é, por sua vez, antimetafísico, insurgindo-se como negação de todo ideal metafísico, filosófico ou religioso (Deus, absoluto, eternidade, santidade, salvação, etc.). Camus analisou magistralmente, em O Homem revoltado, as ambivalências e contradições da vontade (do pathos) de negação niilista.[8] Sergio Givone parte do pressuposto de que a ideia do nada possui um estatuto filosófico próprio, puramente especulativo, independente do niilismo como processo e fenômeno histórico, associado à decadência e dissolução dos valores etc. A meontologia é tão antiga quanto a filosofia mesma, enquanto teoria e reflexão acerca do ser enquanto ser, e grande parte da história do nada não tem nenhuma relação com a problemática moderna do niilismo.[9] A Grundfrage metafísica por excelência – por que há algo em vez de nada? – permanece inalterada através das eras. Nesta matéria, não há progresso nem evolução da filosofia, que em nada é favorecida pelo avanço das ciências naturais e/ou humanas.

A História do nada tem como eixo conceitual menos o niilismo que o conceito de meontologia: com o prefixo negativo me-, o termo significa grosso modo “ontologia negativa” (uma ontologia da liberdade, segundo Givone, em oposição à ontologia parmenídica, que é uma ontologia da necessidade, do ser necessário[10]), ou seja, a meontologia é uma ontologia do não-ser ou do nada como princípio (arkhé) infundado (grundlos) e “abismal” que “converte o ser em liberdade, à medida que o desliga do princípio de razão e o expõe não apenas a poder ser de outro modo, mas também a poder não ser.”[11] A História do nada se pretende uma “contra-história”[12] da filosofia pautada nesta ideia desestabilizadora que tem sido sistematicamente denegada pelo pensamento filosófico ocidental, de Parmênides a Bergson. Ela parte de pré-socráticos como Heráclito e Anaximandro, entre os quais a ideia do nada permanece, não obstante, impensada, latente, tornando-se como que a premissa filosófica da tragédia grega, na qual “este conceito irrompe de modo prepotente”,[13] passando pelos Sofistas, Plotino, a mística cristã, artistas “apocalípticos” como Dürer e Hogarth, Charles de Bovelles (já mencionado), Pascal, Leibniz, Jacobi, o romantismo alemão, Nietzsche, Heidegger e Sartre.

De que maneira Cioran se insere em cada uma dessas historiografias? Pertencer à história do niilismo implica o pertencimento, de um modo ou de outro, à história do nada, mas a recíproca não é verdadeira. Meontologia não é niilismo. Ora, Cioran poderia figurar na História do nada como proponente de certa meontologia que não redunda necessariamente em niilismo. Sua obra dialogaria filosoficamente com Parmênides, Górgias, céticos pirrônicos e acadêmicos, Plotino e os neoplatônicos, místicos cristãos como Meister Eckhart, o Buda, Pascal, Kant, Hegel e Schopenhauer. Neste sentido, Cioran despontaria, no século XX, como uma voz singular no debate acerca da clássica Grundfrage metafísica: por que algo em vez de nada?

Mas Cioran se insere também, a fortiori, na história do niilismo moderno, não só por suas ideias e pelas teses filosóficas postuladas por sua obra, por mais “literária” que seja, mas também como partícipe de uma trama histórica de personagens, influências, experimentações e crises, revoltas e reviravoltas que só fazem confirmar o vaticínio de Nietzsche, quando narra “a história dos próximos 200 anos”, “o que está por vir, o que já não pode se dar de outra forma: a ascensão do niilismo”.[14]


[1] CIORAN, Écartèlement, Œuvres. Paris: Gallimard, 1995, p. 1454.

[2] IDEM, « Je ne suis pas un nihiliste : le rien est encore un programme (entretien avec Hans-Jürgen Heinrichs) », Le Magazine Littéraire, no 373, 1999, p. 99.

[3] VOLPI, Franco, O Niilismo. Trad. de Aldo Vannucchi. São Paulo: Loyola, 1999, p. 9.

[4] COHEN-HALIMI, Michèle, “Les sous-sols de la négation”, L’Histoire cachée du nihilisme : Jacobi, Dostoïevski, Heidegger, Nietzsche. Paris: La Fabrique éditions, 2008, p. 104.

[5] LANDESMAN, Charles, Ceticismo. Trad. de Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2006, p. 21.

[6] A propósito da “flutuação” de Cioran entre ceticismo pirrônico e dogmatismo negativo, cf. BOLZANI FILHO, Roberto, Acadêmicos versus Pirrônicos. São Paulo: Alameda, 2013.

[7] GIVONE, Sergio, Historia de la nada. Trad. de Alejo González y Demian Orosz. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2001, p. 7-8.

[8] Cf.Niilismo e história”, in O Homem revoltado.

[9] “No transcurso do pensamento filosófico, o nada representa uma emergência singular. Uma espécie de fenômeno cársico. Acontece, com efeito, de encontrarmos o problema a uma distância de séculos, como consequência de giros de enorme importância, e como se voltasse à luz desde profundidades inexploradas. Isto não deveria surpreender. É fácil objetar que o nada, sombra do ser, seu revés simétrico, seu oposto complementar, acompanha necessariamente o ser.” GIVONE, Sergio, Historia de la nada, p. 10.

[10] Ibid. p. 16-17.

[11] Ibid., p. 13.

[12] Ibid., p. 13.

[13] Ibid., p. 11.

[14] NIETZSCHE, F., Fragmentos póstumos 1887-1889, vol. VII, 11[411]. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 174.

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