A justiça, a razão, a verdade brilhavam ainda no céu jacobino; essas estrelas fixas podiam ao menos servir de pontos de referência. Os pensadores alemães do século XIX, particularmente Hegel, quiseram continuar a obra da revolução francesa,1 ao suprimirem as causas de seu malogro. Hegel acreditou discernir que o Terror estava de antemão contido na abstração dos princípios jacobinos. Segundo ele, a liberdade absoluta e abstrata devia conduzir ao terrorismo; o reino do direito abstrato coincide com o da opressão. Hegel observa, por exemplo, que o período que vai de Augusto a Alexandre Severo (235 d.C.) é o de maior conhecimento do direito, mas também o da tirania mais implacável. Para superar essa contradição, era preciso então querer uma sociedade concreta, revigorada por um princípio que não fosse formal, em que a liberdade se conciliasse com a necessidade. O pensamento alemão acabou, portanto, substituindo a razão universal, porém abstrata, de Saint-Just e de Rousseau, por uma noção menos artificial, porém mais ambígua – o universal concreto. Até aquele momento, a razão pairava acima dos fenômenos que com ela se relacionavam. Ei-la de agora em diante incorporada ao fluxo dos acontecimentos históricos, que ela explica, ao mesmo tempo em que estes lhe dão um corpo. Pode-se afirmar com segurança que Hegel racionalizou até o irracional. Mas, ao mesmo tempo, ele dava à razão uma vibração desarrazoada, nela introduzindo uma desmedida cujos resultados estão diante de nossos olhos. No pensamento fixo de seu tempo, o pensamento alemão introduziu subitamente um movimento irresistível. De repente, a verdade, a razão e a justiça encarnaram-se no devir do mundo. Mas, ao lançá-las numa aceleração perpétua, a ideologia alemã confundia sua existência com seu movimento, fixando o término dessa existência no fim do devir histórico, se é que havia um fim. Esses valores deixaram de ser referências para se tornarem fins. Quanto aos meios de alcançar esses fins, isto é, a vida e a história, nenhum valor preexistente podia orientá-los. Ao contrário, uma grande parte da demonstração hegeliana consiste em provar que a consciência moral, em sua banalidade, aquela que obedece à justiça e à verdade como se tais valores existissem fora do mundo, compromete justamente o advento desses valores. A regra da ação tornou-se, portanto, a própria ação, que deve se desenrolar nas trevas enquanto espera a iluminação final. A razão, anexada por esse romantismo, não é mais que uma paixão inflexível.
Os fins continuaram os mesmos, só a ambição aumentou; o pensamento tornou-se dinâmico, a razão, devir e conquista. A ação é apenas um cálculo em função dos resultados, e não dos princípios. Ela se confunde, consequentemente, com um movimento perpétuo. Da mesma forma, todas as disciplinas, no século XIX, desviaram-se da fixidez e da classificação que caracterizavam o pensamento do século XVIII. Assim como Darwin substituiu Lineu, os filósofos da dialética incessante substituíram os harmônicos e estéreis construtores da razão. Data desse momento a ideia (hostil a todo o pensamento antigo que, pelo contrário, se encontrava em parte no espírito revolucionário francês) de que o homem não tem uma natureza humana definitiva, que ele não é uma criatura terminada, mas uma aventura da qual pode ser em parte o criador. Com Napoleão e Hegel, filósofo napoleônico, começa a época da eficácia. Até Napoleão, os homens descobriram o espaço do universo; a partir dele, o tempo do mundo e o futuro. O espírito revoltado se verá profundamente transformado.
De todo modo, é uma experiência singular encontrar a obra de Hegel nessa nova etapa do espírito de revolta. Em certo sentido, na verdade, toda a sua obra respira o horror à dissidência: ele quis ser o espírito da reconciliação. Mas essa é apenas uma das faces de um sistema que, por seu próprio método, é o mais ambíguo da literatura filosófica. Na medida em que, em sua concepção, o que é real é racional, Hegel justifica todas as iniciativas do ideólogo em relação ao real. O que se denominou panlogismo hegeliano é uma justificação do estado de fato. Mas sua filosofia também exalta a destruição pela destruição. Sem dúvida, tudo se reconcilia na dialética, e não se pode colocar um extremo sem que surja o outro; em Hegel, como em todo grande pensamento, há material para contrariar Hegel. Mas os filósofos raramente são lidos apenas com a inteligência, mas, muitas vezes, com o coração e suas paixões, que nada reconciliam.
De Hegel, em todo caso, os revolucionários do século XX tiraram o arsenal que destruiu definitivamente os princípios formais da virtude. Desta, preservaram a visão de uma história sem transcendência, resumida a uma contestação perpétua e à luta entre as vontades de poder. Sob seu aspecto crítico, o movimento revolucionário de nosso tempo é em primeiro lugar uma denúncia violenta da hipocrisia formal que preside à sociedade burguesa. A pretensão, parcialmente fundamentada, do comunismo moderno, como a do fascismo, mais frívola, é denunciar a mistificação que corrompe a democracia burguesa, seus princípios e suas virtudes. A transcendência divina, até 1789, servia para justificar o arbítrio real. Após a Revolução francesa, a transcendência dos princípios formais, razão ou justiça, serve para justificar uma dominação que não é justa nem racional. Essa transcendência é, portanto, uma máscara que precisa ser arrancada. Deus está morto, mas, como Stirner havia previsto, é preciso matar a moral dos princípios onde ainda se encontra a memória de Deus. O ódio à virtude formal, testemunha degradada da divindade, falsa testemunha a serviço da injustiça, continua sendo uma das molas da história atual. Nada é puro, este grito convulsiona o século. O impuro, logo a história, vai tornar-se a regra, e a terra deserta será entregue à força nua que irá decidir se o homem é ou não divino. Entra-se assim na mentira e na violência, como se entra na religião, e do mesmo modo patético.
Mas a primeira crítica fundamental da boa consciência, a denúncia da bela alma e das atitudes ineficazes, nós a devemos a Hegel, para quem a ideologia do bem, da verdade e da beleza é a religião daqueles que não têm religião. Enquanto a existência das facções surpreende Saint-Just e transgride a ordem ideal que este afirma, Hegel não só não se surpreende, como até afirma, ao contrário, que a facção é o prelúdio do espírito. Todo mundo é virtuoso para o jacobino. O movimento que começa com Hegel e que triunfa atualmente supõe, ao contrário, que ninguém é virtuoso, mas que um dia todo mundo o será. No começo, tudo é idílio para Saint-Just; segundo Hegel, tudo é tragédia. Mas no final dá tudo no mesmo. É preciso destruir aqueles que destroem o idílio ou destruir para criar o idílio. Em ambos os casos, a vitória é da violência. A superação do Terror, empreendida por Hegel, consegue apenas ampliar o Terror.
Isso não é tudo. O mundo de hoje só pode ser, aparentemente, um mundo de senhores e de escravos, porque as ideologias contemporâneas, aquelas que modificam a face do mundo, aprenderam com Hegel a pensar a história em função da dialética domínio/servidão. Se, sob o céu deserto, na primeira manhã do mundo, só há um senhor e um escravo; se até mesmo, do deus que transcende a humanidade, há apenas uma ligação senhor-escravo, não pode haver outra lei no mundo a não ser a lei da força. Somente um deus ou um princípio acima do senhor e do escravo podiam intervir até então, fazendo com que a história dos homens não se resumisse unicamente à história de suas vitórias ou de suas derrotas. O esforço de Hegel, e dos hegelianos em seguida, foi ao contrário no sentido de destruir cada vez mais toda transcendência e toda nostalgia da transcendência. Se bem que haja infinitamente mais em Hegel do que nos hegelianos de esquerda, que de qualquer modo se lhe impuseram, ele fornece, no entanto, no nível da dialética do senhor e do escravo, a justificação decisiva do espírito de poder no século XX. O vencedor sempre tem razão, esta é uma das lições que se pode tirar do maior sistema alemão do século XIX. É bom observar que há na prodigiosa estrutura hegeliana material para contradizer, em parte, esses dados. Mas a ideologia do século XX não está ligada ao que se chama, impropriamente, de idealismo do mestre de Iena. A face de Hegel, que ressurge no comunismo russo, foi sucessivamente remodelada por David Strauss, Bruno Bauer, Feuerbach, Marx e toda a esquerda hegeliana. Neste trabalho, só Hegel nos interessa, já que só ele teve peso na história de nosso tempo. Se Nietzsche e Hegel servem de álibis para os senhores de Dachau e de Karaganda,2 isso não condena toda a sua filosofia, mas deixa a suspeita de que um dos aspectos de seu pensamento, ou de sua lógica, possa levar a esses terríveis confins.
O niilismo nietzschiano é metódico. A Phénoménologie de l’Esprit (Fenomenologia do espírito) tem também um caráter pedagógico. No ponto de junção de dois séculos, ela descreve, em suas etapas, a educação da consciência a caminho da verdade absoluta. É um Emílio metafísico.3 Cada etapa é um erro, acompanhado, além disso, de sanções históricas quase sempre fatais, quer para a consciência, quer para a civilização em que se reflete. Hegel propõe-se a mostrar a necessidade dessas etapas dolorosas. Sob um de seus aspectos, a Fenomenologia é uma meditação sobre o desespero e a morte. Só que esse desespero se quer metódico, já que no fim da história deve ser transfigurado na satisfação e na sabedoria absoluta. Esta pedagogia, contudo, tem o defeito de só contar com alguns superiores e foi levada ao pé da letra, enquanto, literalmente, desejava apenas proclamar o espírito. O mesmo acontece com a célebre análise do domínio e da servidão.4
O animal, segundo Hegel, tem uma consciência imediata do mundo exterior, um sentimento de si, mas não a consciência de si mesmo, que distingue o homem. Este só nasce verdadeiramente a partir do instante em que toma consciência de si mesmo, na qualidade de ser racional. É, portanto, essencialmente autoconsciência. Para que a autoconsciência se afirme, deve distinguir-se daquilo que não é ela. O homem é a criatura que, para afirmar sua existência e sua diferença, nega. O que distingue a autoconsciência do mundo natural não é a simples contemplação em que esta se identifica com o mundo exterior, esquecendo-se de si mesma, mas o desejo que pode sentir em relação ao mundo. Este desejo remete-a à sua identidade, quando ela lhe mostra o mundo exterior como diferente. Em seu desejo, o mundo exterior é o que ela não tem, e que existe, mas que ela quer ter para existir, e que não mais exista. Logo, a autoconsciência é necessariamente desejo. Mas, para existir, é preciso que seja satisfeita, e ela só pode satisfazer-se com a realização de seu desejo. Ela age, portanto, com o fim de realizar-se e, ao fazê-lo, nega, suprime o meio pelo qual se realiza. Ela é negação. Agir é destruir para fazer nascer a realidade espiritual da consciência. Mas destruir um objeto inconscientemente, como se destrói a carne, por exemplo, no ato de comer, faz também parte da natureza do animal. Consumir não é ainda estar consciente. É preciso que o desejo da consciência seja dirigido a alguma coisa que não seja a natureza inconsciente. A única coisa no mundo que se distingue dessa natureza é justamente a autoconsciência. Portanto, o desejo deve estar centrado em outra forma de desejo, a autoconsciência deve satisfazer-se com outra forma de autoconsciência. Em linguagem simples: o homem não é reconhecido e não se reconhece como homem enquanto se limitar a subsistir como animal. Ele precisa ser reconhecido pelos outros homens. Toda consciência, em seu princípio, é desejo de ser reconhecida e saudada como tal pelas outras consciências. São os outros que nos engendram. Só recebemos um valor humano, superior ao valor animal, na sociedade.
Já que o valor supremo para o animal é a preservação da vida, a consciência deve alçar-se acima desse instinto a fim de alcançar o valor humano. Ela deve ser capaz de colocar a vida em jogo. Para ser reconhecido por outra consciência, o homem deve estar pronto a arriscar a vida e aceitar a oportunidade da morte. As relações humanas fundamentais são assim relações de puro prestígio, uma luta perpétua, que se paga com a morte, pelo reconhecimento de um ser humano por outro.
Na primeira etapa de sua dialética, Hegel afirma que, sendo a morte o terreno comum ao homem e ao animal, é ao aceitá-la e até mesmo ao desejá-la que o primeiro se distinguirá do segundo. No âmago dessa luta primordial pelo reconhecimento, o homem é então identificado com a morte violenta. “Morra e torne-se o que você é”, o lema tradicional é retomado por Hegel. Mas o “torne-se o que você é” dá lugar ao “torne-se o que você ainda não é”. Esse desejo primitivo e apaixonado pelo reconhecimento, que se confunde com a vontade de existir, só se satisfará com um reconhecimento que se estende pouco a pouco até o reconhecimento de todos. Da mesma forma, na medida em que todos querem ser reconhecidos por todos, a luta pela vida só irá cessar com o reconhecimento de todos por todos, que marcará o fim da história. O ser que a consciência hegeliana procura obter nasce na glória, duramente conquistada, de uma aprovação coletiva. É importante assinalar que, no pensamento que vai inspirar nossas revoluções, o bem supremo não coincide realmente, portanto, com o ser, mas com um parecer absoluto. A história dos homens como um todo nada mais é, de qualquer sorte, que uma longa luta até a morte pela conquista do prestígio universal e do poder absoluto. Em sua essência, ela é imperialista. Estamos longe do bom selvagem do século XVIII e do Contrato social. No som e na fúria dos séculos, cada consciência, para existir, de agora em diante deseja a morte do outro. Além disso, essa tragédia implacável é absurda, já que, no caso da aniquilação de uma das consciências, a consciência vitoriosa deixa por isso mesmo de ser reconhecida, pois não pode ser reconhecida pelo que não existe mais. Na realidade, a filosofia do parecer encontra aqui seu limite.
Nenhuma realidade humana teria sido, portanto, engendrada, se, por uma disposição que se pode considerar feliz para o sistema hegeliano não tivesse encontrado, desde a origem, dois tipos de consciências, das quais uma não tem coragem de renunciar à vida, aceitando assim reconhecer a outra consciência sem ser por esta reconhecida. Em resumo, ela aceita ser considerada uma coisa. Essa consciência que, para preservar a vida animal, renuncia à vida independente é a consciência do escravo. Aquela que, reconhecida, obtém a independência é a do senhor. Distinguem-se uma da outra no momento em que se defrontam e no qual uma se curva diante da outra. Nesse estágio, o dilema não é mais ser livre ou morrer, mas matar ou escravizar. O dilema repercutirá na sequência da história, se bem que o absurdo, neste momento, ainda não esteja reduzido.
Seguramente, a liberdade do senhor é total em relação ao escravo em primeiro lugar, já que este o reconhece totalmente, e em relação ao mundo natural em seguida, uma vez que por seu trabalho escravo transforma-o em objetos de gozo que o senhor irá consumir numa perpétua afirmação de si mesmo. No entanto, essa autonomia não é absoluta. O senhor, para sua desgraça, é reconhecido em sua autonomia por uma consciência que ele próprio não reconhece como autônoma. Logo, ele não pode ser satisfeito, e sua autonomia é somente negativa. O domínio é um impasse. Já que ele não consegue mais renunciar ao domínio e voltar a ser escravo, o destino eterno dos senhores é viverem insatisfeitos ou serem mortos. Na história, o senhor só serve para suscitar a consciência servil, justamente a única que cria a história. O escravo, na verdade, não está ligado à sua condição, ele quer mudá-la. Pode, portanto, educar-se, ao contrário do senhor; o que se denomina história não é mais que a sequência de seus longos esforços para obter a liberdade real. Pelo trabalho, pela transformação do mundo natural em mundo técnico, já se emancipou dessa natureza, que estava na origem de sua escravidão, porque ele não soubera elevar-se acima dela pela aceitação da morte.5 Ele não chega até a angústia da morte sentida na humilhação de todo ser que não eleva o escravo ao nível da totalidade humana. De agora em diante, sabe que esta totalidade existe; só lhe resta conquistá-la, através de uma longa sequência de lutas contra a natureza e contra os senhores. A história identifica-se, portanto, com a história do trabalho e da revolta. Não é de admirar que o marxismo-leninismo tenha tirado dessa dialética o ideal contemporâneo do soldado-operário.
Deixaremos de lado a descrição das atitudes da consciência servil (estoicismo, ceticismo, consciência infeliz) que se encontram a seguir na Fenomenologia. Mas não se pode desprezar, quanto às suas consequências, um outro aspecto dessa dialética, a identificação da relação senhor-escravo com a relação entre o antigo deus e o homem. Um comentador de Hegel6 observa que, se o senhor realmente existisse, ele seria Deus. O próprio Hegel chama o Senhor do mundo de deus real. Em sua descrição da consciência infeliz, mostra como o escravo cristão, querendo negar aquilo que o oprime, refugia-se no mundo do além, atribuindo-se, por conseguinte, um novo senhor na pessoa de Deus. Em outro lugar, Hegel identifica o senhor supremo com a morte absoluta. Trava-se então, novamente, em um escalão superior, a luta entre o homem subjugado e o deus cruel de Abraão. A resolução desse novo conflito entre o deus universal e o ser humano será fornecida por Cristo, que reconcilia em si o universal e o singular. Mas Cristo faz parte do mundo sensível de algum modo. Ele pôde ser visto, viveu e morreu. Logo, ele é apenas uma etapa no caminho do universal; ele também deve ser negado dialeticamente. É preciso somente reconhecê-lo como homem-deus para obter uma síntese superior. Saltando os escalões intermediários, bastará dizer que essa síntese, depois de se ter encarnado na Igreja e na Razão, termina no Estado absoluto, erigido pelos soldados-operários, no qual o espírito do mundo se refletirá enfim em si mesmo no reconhecimento mútuo de cada um por todos e na reconciliação universal de tudo aquilo que existiu sob o sol. Neste momento, “em que coincidem os olhos do espírito e os do corpo”, cada consciência não será mais portanto que um espelho que reflete outros espelhos, este também refletido ao infinito em imagens repercutidas. A cidade humana coincidirá com a de Deus; a história universal, tribunal do mundo, proferirá sua sentença, na qual o bem e o mal serão justificados. O Estado desempenhará o papel de Destino e proclamará sua aprovação de toda realidade no “dia espiritual da Presença”.
Isso resume as ideias essenciais que, a despeito ou por causa da extrema abstração do exposto, literalmente conduziram o espírito revolucionário a direções aparentemente diferentes e que agora acabamos por reencontrar na ideologia de nosso tempo. O imoralismo, o materialismo científico e o ateísmo, que substituiu definitivamente o antiteísmo dos antigos revoltados, formaram uma só coisa, sob a influência paradoxal de Hegel, com um movimento revolucionário que, até sua época, jamais se separara realmente das origens morais, evangélicas ou idealistas. Essas tendências, se às vezes estão longe de pertencer especificamente a Hegel, encontraram sua fonte na ambiguidade de seu pensamento e na sua crítica da transcendência. A originalidade incontestável de Hegel foi ter destruído definitivamente toda transcendência vertical, e sobretudo a dos princípios. Sem dúvida, ele restaura, no devir do mundo, a imanência do espírito. Mas esta imanência não é fixa, nada tem em comum com o panteísmo do pensamento antigo. O espírito está, e não está, no mundo; ele aí se faz e estará. O valor fica, portanto, adiado para o fim da história. Até lá, não há critério próprio para fundamentar um juízo de valor. É preciso agir e viver em função do futuro. Toda moral torna-se provisória. Os séculos XIX e XX, em sua tendência mais profunda, são séculos que tentaram viver sem transcendência.
Um comentador7 hegeliano, de esquerda, é verdade, mas, apesar disso, ortodoxo quanto a esse ponto preciso, observa, aliás, a hostilidade de Hegel em relação aos moralistas, assinalando que seu único axioma é viver de acordo com os usos e costumes de sua nação. Máxima de conformismo social da qual Hegel deu efetivamente as provas mais cínicas. Kojève acrescenta, contudo, que esse conformismo só é legítimo na medida em que os costumes dessa nação corresponderem ao espírito do tempo, quer dizer, enquanto forem sólidos e resistirem às críticas e aos ataques revolucionários. Mas quem decidirá sobre essa solidez, quem julgará sua legitimidade? Há cem anos os regimes capitalistas do Ocidente resistem a violentas investidas. Deve-se, por isso, considerá-los legítimos? Inversamente, aqueles que eram fiéis à República de Weimar deveriam desviar-se deste caminho, comprometendo-se com Hitler em 1933, porque a primeira sucumbira aos golpes do segundo? A República Espanhola deveria ser traída no próprio instante em que o regime do general Franco triunfava? São conclusões que o pensamento reacionário tradicional teria justificado em suas próprias perspectivas. A novidade, de incalculáveis consequências, é o fato de o pensamento revolucionário tê-las assimilado. A supressão de todo valor moral e dos princípios, sua substituição pelo fato – rei provisório, mas real –, só pôde conduzir, como vimos, ao cinismo político, quer do indivíduo, quer, mais seriamente, de Estado. Os movimentos políticos ou ideológicos inspirados por Hegel reúnem-se todos no abandono ostensivo da virtude.
Hegel não pôde realmente impedir que aqueles que o leram com uma angústia que não era metódica, numa Europa já dilacerada pela injustiça, se vissem lançados num mundo sem inocência e sem princípios, justamente nesse mundo que Hegel diz ser em si mesmo um pecado, já que está separado do espírito. Sem dúvida, Hegel perdoa os pecados no fim da história. Até lá, no entanto, toda atividade humana será culpada. “Inocente, portanto, é somente a ausência de atividade, o ser de uma pedra e nem mesmo o de uma criança.” A inocência das pedras, portanto, nos é estranha. Sem inocência – nenhuma relação, nenhuma razão. Sem razão – a força nua, o senhor e o escravo, esperando que um dia impere a razão. Entre o senhor e o escravo, o sofrimento é solitário, a alegria, sem raízes; ambos imerecidos. Como viver então, como suportar, quando a amizade é para o fim dos tempos? A única saída é criar a regra, de arma na mão. “Matar ou escravizar” – aqueles que leram Hegel com sua única e terrível paixão só retiveram o primeiro termo do dilema. Dele só tiraram a filosofia do desprezo e do desespero, julgando-se escravos e somente escravos, ligados pela morte ao Senhor absoluto, e aos senhores terrestres pelo chicote. Essa filosofia da má consciência lhes ensinou apenas que todo escravo só o é pelo consentimento, e que só se liberta por uma recusa que coincide com a morte. Respondendo ao desafio, os mais orgulhosos dentre eles identificaram-se inteiramente com essa recusa e devotaram-se à morte. Afinal, dizer que a negação é em si mesma um ato positivo justificava antecipadamente todas as espécies de negação e anunciava o brado de Bakunin e Netchaiev: “Nossa missão é destruir, não construir.” Para Hegel, niilista era apenas o cético, que não tinha outra saída a não ser a contradição ou o suicídio filosófico. Mas ele próprio deu origem a um outro tipo de niilista, que, ao fazer do tédio um princípio de ação, identificava seu suicídio com o assassinato filosófico.8 Nesse ponto nascem os terroristas, que decidiram que era necessário matar e morrer a fim de existir, já que o homem e a história só podem ser criados pelo sacrifício e pelo assassinato. Esta grande ideia de que todo idealismo é vão, se não for pago com o risco da própria vida, devia ser levada ao extremo pelos jovens que não se empenhavam em propugná-la do alto de uma cátedra universitária antes de morrer em seus leitos, mas que morriam em meio às bombas e até na forca. Desta forma, pelos próprios erros, corrigiam o seu mestre e mostravam, contrariamente aos seus ensinamentos, que pelo menos uma aristocracia é superior à horrenda aristocracia da vitória exaltada por Hegel: a aristocracia do sacrifício.
Uma outra espécie de seguidores, que irá ler Hegel com mais seriedade, escolherá o segundo termo do dilema, declarando que o escravo só se emancipa ao escravizar por sua vez. As doutrinas pós-hegelianas, esquecendo o aspecto místico de certas tendências do mestre, levaram esses seguidores ao ateísmo absoluto e ao materialismo científico. Mas essa evolução não pode ser imaginada sem o desaparecimento absoluto de todo princípio de explicação transcendente e sem a destruição total do ideal jacobino. Sem dúvida, imanência não é ateísmo. Mas a imanência em movimento é, se assim podemos dizer, ateísmo provisório.9 A vaga figura de Deus, que em Hegel ainda se reflete no espírito do mundo, não será difícil de apagar. Da fórmula ambígua de Hegel, “Deus sem o homem não é mais que o homem sem Deus”, seus sucessores vão tirar conclusões decisivas. David Strauss, na sua Vida de Jesus, isola a teoria de Cristo considerado como Deus homem. Bruno Bauer (Crítica da história evangelista) cria uma espécie de cristianismo materialista ao insistir na humanidade de Jesus. Finalmente, Feuerbach (que Marx considerava um grande espírito, e de quem se reconhecerá o discípulo crítico), em sua Essência do cristianismo, substituirá toda a teologia por uma religião do homem e da espécie que converteu grande parte do pensamento contemporâneo. Sua tarefa será mostrar que a distinção entre o humano e o divino é ilusória; ela nada mais é do que a distinção entre a essência da humanidade, isto é, a natureza humana, e o indivíduo. “O mistério de Deus é apenas o mistério do amor do homem por si próprio.” Então, já ressoam os acentos de uma nova e estranha profecia: “A individualidade tomou o lugar da fé; a razão, o da Bíblia; a política, o da religião e da Igreja; a terra, o do céu; o trabalho, o da oração; a miséria, o do inferno; e o homem, o lugar de Cristo.” Só há, portanto, um inferno, e este é deste mundo: é contra ele que se precisa lutar. A política é religião, e o cristianismo transcendente, o do além, fortalece os senhores da terra pela renúncia do escravo e suscita um senhor a mais no fundo dos céus. É por isso que o ateísmo e o espírito revolucionário são apenas as duas faces de um mesmo movimento de liberação. Essa é a resposta à pergunta sempre formulada: por que o movimento revolucionário se identificou com o materialismo em vez de se identificar com o idealismo? Porque subjugar Deus, fazer dele um escravo, é o mesmo que destruir a transcendência que mantinha o poder dos antigos senhores, preparando, com a ascensão dos novos, os tempos do homem-rei. Quando a miséria tiver acabado, quando as contradições históricas estiverem resolvidas, “o verdadeiro deus, o deus humano, será o Estado”. O homo homini lupus torna-se então homo homini deus. Esse pensamento está nas origens do mundo contemporâneo. Assiste-se, com Feuerbach, ao nascimento de um terrível otimismo, que vemos ainda atualmente em ação e que parece o antípoda do desespero niilista. Mas é apenas uma aparência. É preciso conhecer as derradeiras conclusões de Feuerbach em sua Teogonia para entender a origem profundamente niilista desses pensamentos inflamados. Contra o próprio Hegel, Feuerbach irá afirmar, na verdade, que o homem é aquilo que come, resumindo desta forma o seu pensamento e o futuro: “A verdadeira filosofia é a negação da filosofia. Nenhuma religião é a minha religião. Nenhuma filosofia é a minha filosofia.”
O cinismo, a deificação da história e da matéria, o terror individual e o crime de Estado, essas consequências desmesuradas vão nascer, todas armadas, de uma concepção equivocada do mundo, que remete unicamente à história o cuidado de produzir os valores e a verdade. Se nada pode ser entendido claramente antes que a verdade, no fim dos tempos, tenha sido revelada, toda ação é arbitrária, a força acaba reinando. “Se a realidade é inconcebível”, exclamava Hegel, “é preciso que forjemos conceitos inconcebíveis.” Um conceito que não se pode conceber precisa, efetivamente, como o erro, ser forjado. Mas, para ser aceito, não pode depender da persuasão, que é da ordem da verdade; ele deve finalmente ser imposto. A atitude de Hegel consiste em dizer: “Isto é a verdade, que, no entanto, nos parece o erro, mas que é verdadeira justamente porque lhe acontece ser o erro. Quanto à prova, não sou eu, mas a história, em seu término, que a fornecerá.” Essa pretensão só pode acarretar duas atitudes: ou a suspensão de toda afirmativa até que se forneça a prova ou a afirmativa de tudo aquilo que, na história, parece voltado ao sucesso, particularmente a força. Em ambos os casos, um niilismo. Não se consegue compreender, de qualquer modo, o pensamento revolucionário do século XX se se desprezar o fato de que, por um acaso infeliz, grande parte de sua inspiração venha de uma filosofia do conformismo e do oportunismo. A verdadeira revolta não é colocada em causa pelas distorções deste pensamento.
De resto, o que autorizava a pretensão de Hegel é o que a torna intelectualmente, e para sempre, suspeita. Ele acreditou que a história em 1807, com Napoleão e ele próprio, havia terminado, que a afirmação era possível e que o niilismo fora vencido. A Fenomenologia, bíblia que só teria profetizado o passado, colocava um limite nos tempos. Em 1807, todos os pecados eram perdoados, e as épocas, terminadas. Mas a história continuou. Outros pecados, desde então, saltam aos olhos e fazem estourar o escândalo dos antigos crimes, absolvidos para sempre pelo filósofo alemão. O endeusamento de Hegel por si mesmo, após a deificação de Napoleão, a partir de agora inocente porque havia conseguido estabilizar a história, só durou sete anos. Em vez da afirmação total, o niilismo recobriu o mundo. A filosofia, mesmo a filosofia dos escravos, tem também seu Waterloo.
Mas nada pode desencorajar o apetite pela divindade no coração do homem. Surgiram e ainda surgem outros que, esquecendo-se de Waterloo, pretendem sempre terminar a história. A divindade do homem está ainda em andamento e só será digna de adoração no fim dos tempos. É preciso servir a esse apocalipse e, na falta de Deus, construir pelo menos a Igreja. Afinal, a história, que ainda não parou, deixa entrever uma perspectiva que poderia ser a do sistema hegeliano; mas pela simples razão de que é provisoriamente arrastada, se não conduzida, pelos filhos espirituais de Hegel. Quando a cólera leva em plena glória o filósofo da batalha de Iena, tudo está preparado para o que se seguirá. O céu está vazio, a terra, entregue ao poder sem princípios. Aqueles que escolheram matar e os que escolheram escravizar vão ocupar, sucessivamente, a frente do palco, em nome de uma revolta desviada de sua verdade.
Notas:
- E da Reforma, a “revolução dos alemães”, segundo Hegel. (N. do A.)
- Que encontraram modelos menos filosóficos nas polícias prussiana, napoleônica, czarista ou nos campos ingleses da África do Sul. (N. do A.)
- A comparação de Hegel com Rousseau faz algum sentido. O êxito da Fenomenologia foi, em suas consequências, do mesmo tipo que o do Contrato social. Ela modelou o pensamento político de seu tempo. A teoria da vontade geral de Rousseau é, aliás, reencontrada no sistema hegeliano. (N. do A.)
- Segue-se uma exposição esquemática da dialética senhor/escravo. Aqui só nos interessam as consequências dessa análise. É por isso que nos pareceu necessária uma nova exposição, que ressalte certas tendências em vez de outras. Ao mesmo tempo, isso excluía toda exposição crítica. Não será difícil, entretanto, verificar que, se o raciocínio se mantém na lógica, por meio de alguns artifícios, ele não pode buscar instituir verdadeiramente uma fenomenologia, na medida em que se baseia em uma psicologia totalmente arbitrária. A utilidade e a eficácia da crítica de Kierkegaard contra Hegel é que esta se apoia muitas vezes na psicologia. Isso, de resto, nada subtrai ao valor de certas análises admiráveis de Hegel. (N. do A.)
- A bem dizer, o equívoco é profundo, pois não se trata da mesma natureza. O advento do mundo técnico suprime a morte ou o medo da morte no mundo natural? Eis a questão importante que Hegel deixa em suspenso. (N. do A.)
- Jean Hyppolite. Genèse et structure de la Phénoménologie de l’Esprit (Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito), p.168. (N. do A.)
- Alexandre Kojève. (N. do A.)
- Este niilismo, apesar das aparências, é ainda niilismo no sentido nietzschiano, na medida em que é calúnia da vida presente em benefício de um além histórico no qual nos esforçamos para acreditar. (N. do A.)
- De qualquer modo, a crítica de Kierkegaard é válida. Fundamentar a divindade na história é fundamentar, paradoxalmente, um valor absoluto em um conhecimento aproximado. Algo “eternamente histórico” é uma contradição em termos. (N. do A.)
CAMUS, “Os deicídios”, O Homem revoltado. Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2020.