Concebo que se possa ter gosto pela cruz, mas reproduzir todos os dias o acontecimento batido do Calvário tem algo de maravilhoso, de insensato e de estúpido. Pois, afinal de contas, se se abusa dos prestígios do Salvador, Ele se torna tão fastidioso como qualquer outro.
Os santos foram grandes perversos; como as santas, magníficas voluptuosas. Ambos – loucos de uma só ideia – transformaram a cruz em vício. A “profundidade” é a dimensão dos que não podem variar seus pensamentos e seus apetites, e que exploram uma mesma região do prazer e da dor.
Atentos à flutuação dos instantes, não podemos admitir um acontecimento absoluto: Jesus não seria capaz de dividir a história em duas partes, nem a irrupção da cruz de romper o curso imparcial do tempo. O pensamento religioso – forma de pensamento obsessivo – subtrai do conjunto dos acontecimentos uma porção temporal e a reveste com todos os atributos do incondicionado. É assim que os deuses e seus filhos foram possíveis…
A vida é o lugar de minhas paixões: tudo o que arranco da indiferença, restituo-lhe quase imediatamente. Não é esse o procedimento dos santos: escolhem de uma vez por todas. Vivo para desprender-me de tudo o que amo; eles, para embevecer-se com um só objeto; eu saboreio a eternidade, eles se abismam nela.
As maravilhas da terra – e, com mais razão, as do céu – resultam de uma histeria duradoura. A santidade: sismo do coração, aniquilação por excesso de crença, expressão culminante da sensibilidade fanática, deformidade transcendente… Entre um iluminado e um simples de espírito, há mais correspondência do que entre o primeiro e um cético. Tal é a distância que separa a fé do conhecimento sem esperança, da existência sem resultado.
CIORAN, “Histeria da eternidade”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
CONTEÚDO RELACIONADO: