Em busca de um “não-homem”: niilismo, anti-humanismo e mística negativa – Entrevista com Ştefan Bolea (Romênia)

Ştefan Bolea é pesquisador na Faculdade de Letras da Universidade Babeș-Bolyai de Cluj-Napoca, Romênia. Além disso, é editor da conceituada revista literária Apostrof, co-fundador e editor-chefe do e-zine cultural EgoPHobia (www.egophobia.ro). Ştefan Bolea obteve seu segundo doutorado summa cum laude em Literatura Comparada, em 2017 (após um primeiro em Filosofia, em 2012), com uma investigação interdisciplinar sobre o arquétipo da sombra na literatura.

Ştefan tem dois bacharelados, em Filosofia e em Estudos Europeus, e um mestrado em Estudos Americanos. Recebeu vinte e um prêmios e distinções de literatura, nacionais e internacionais. Seus textos tem sido traduzidos para línguas como alemão, francês, português e ucraniano. É autor de doze livros (de poesia, ensaios e prosa), dentre os quais Ontologia negație: eseu despre nihilism (Casa Cărţii de Ştiinţă, 2004) e Internal Conflict in Nineteenth-Century Literature: Reading the Jungian Shadow (Rowman & Littlefield, 2020).

Sua atividade abrange um número notável de artigos em romeno e inglês publicados em revistas como Philosophy Now, Revue Roumaine de Philosophie, Philobiblon, Studia Philosophia, Caietele Echinox e outras. Ele tem perfis acadêmicos, reunindo sua produção acadêmica, em plataformas como ResearchGate e Academia.edu, além do seu website pessoal: www.stefanbolea.ro.


É possível ser cético e niilista ao mesmo tempo. O niilismo pode ser concebido como um ceticismo radical: Noi nu credem în nimic, “não acreditamos em nada”, como Eminescu exclama em seu Epigonii. Penso, aliás, que se possa ser niilista e antiniilista ao mesmo tempo. E que nós, niilistas, podemos resgatar a religião, até mesmo Deus. Algumas tradições esotéricas afirmam que, se você ama a Deus, receberá a iniciação em “dez anos” (não se deve tomá-lo literalmente, mas em alusão ao Karma: estaria mais para 10 vidas). Mas se você O odeia, então receberá a iniciação em “um ano”. E se isto for verdade? E se os niilistas forem santos e mártires no altar do Deus otiosus?

Ştefan Bolea

Rodrigo Menezes – Prezado Ştefan Bolea, faz alguns anos que tomei conhecimento de sua produção acadêmica, pesquisando on-line sobre Cioran, e desde então me tornei seu leitor. É uma honra entrevistá-lo, e gostaria de começar agradecendo a generosidade de compartilhar conosco um pouco do seu conhecimento sobre Cioran. É inevitável inserir Cioran em meio a uma constelação de intelectuais romenos modernos que inclui grandes filósofos como Lucian Blaga e Constantin Noica. Como você considera Cioran, e como ele é geralmente considerado na Romênia, em comparação com esses autores? Cioran é considerado tão importante quanto Blaga e Noica (mesmo que tenha se recusado a elaborar um corpo de trabalho sistemático)? Cioran é buscado quando estudantes de filosofia romena devem que escolher autores e temas para suas teses de pós-graduação? Aliás, muito se discute na Academia, nos departamentos filosóficos do mundo todo, se Cioran é (e deve ser considerado) um filósofo, ou se não passa de um “pensador” e um escritor… Isto é sequer uma questão em debate na Romênia?

Ştefan Bolea – Prezado Rodrigo Menezes, obrigado por me receber. Eu também sou um admirador do seu trabalho e do trabalho maravilhoso que você faz com o Portal Cioran Brasil. Aprendi muitas coisas com seu trabalho e pretendo usá-las em meu próximo livro de Cioran. Também estou feliz por ter encontrado em você um amigo e uma alma gêmea.

Devo começar apresentando alguns fatos históricos e literários sobre o meu país – alguns dos quais podem ser novos para você e seus leitores. Para começar, é preciso salientar que a Romênia não existia formalmente antes de 1877, quando uniu forças com o Império Russo na guerra russo-turca e acabou conquistando a sua independência. É claro que a chamada Pequena União (a unificação da Moldávia e da Valáquia) ocorreu em 1859, mas a Romênia não era um estado internacionalmente reconhecido antes de 1877. E até 1918 a Transilvânia ainda fazia pertencia ao Império Austro-Húngaro. Portanto, Cioran nasceu, em 1911, não na Romênia, mas no Império Austro-Húngaro, basicamente na Hungria! Se a Grande União (a unificação da Moldávia, Valáquia e Transilvânia a partir de 1918[1]) não tivesse acontecido, Cioran provavelmente teria estudado em Budapeste e Viena, não em Bucareste, Berlim e Paris, e provavelmente teria escrito em húngaro ou alemão.

A cultura romena não deixa de ser um milagre. Exagerando um pouco, o nosso primeiro grande escritor foi Mihai Eminescu (1850-1889), que escreveu suas obras-primas na década de 1870.[2] O seu lugar na literatura romena é mítico porque ele praticamente criou a língua literária romena. Antes de Eminescu, os historiadores húngaros afirmavam que os transilvanos não mereciam ser representados no Parlamento de Budapeste e não deveriam sequer ter direitos, porque a cultura romena era para eles inferior.[3] O romantismo é o renascimento romeno. É claro que, por volta de 1870, o romantismo estava morto na Europa. Mas a sensibilidade de Eminescu respondeu a ele, e Eminescu se considerava o último romântico. É uma pena que os seus poemas sejam intraduzíveis – e se você lê-lo em francês ou português, ele parece pálido. Mas se você o ler em romeno, é espetacular; tem-se a sensação de perfeição máxima (ele chegava a escrever mais de 10 versões dos seus poemas), a harmonia completa entre rima, ritmo e ideia. Tive a mesma sensação ao ler Shakespeare, Goethe e Baudelaire no original. É interessante que Eminescu também seja um niilista, podendo ser comparado a Nietzsche e Mainländer. Ele era um grande fã de Schopenhauer, descobrindo-o cedo em seus estudos em Viena e Berlim.

Então, nós estamos em 1870, em Iaşi e Bucareste: Eminescu escreve suas coisas românticas. Avanço rápido para 1882: Alexandru Macdeonski publicou suas Poezii, e de repente toda a Romênia descobre e pratica o Simbolismo. Mais uma vez, um pouco tarde: Baudelaire publicou As Flores do Mal em 1857. Mas avance novamente para os anos 1900-1910: Urmuz escreve suas Pagini bizarre, uma das primeiras peças pré-surrealistas do mundo. Tristan Tzara vai a Zurique e inventa o Dada. E todos nós conhecemos a história daqui. Recapitulação rápida da cronologia:

  • Novalis, Hymnen and die Nacht (1800) – Eminescu, Memento mori (1871) //
  • Baudelaire, As Flores do Mal (1857), Macedonski, Poezii (1882) //
  • Jacques Vaché, Lettres de guerre (1919), Breton, Manifesto Surrealista (1924),
  • Urmuz, Pagini bizare (1907-1908); Tristan Tzara inventa o Dadaísmo (1915).

Não só sincronismo, mas também co-invenção! Não quero me gabar, mas acho que nós, romenos, aprendemos rápido…

Pois bem, quando Cioran começou a escrever, no final dos anos 1920, e a publicar no início dos anos 1930, ele fazia parte da chamada Tânăra Generaţie (Jovem Geração) de 1927, junto com Mircea Eliade, Eugen Ionescu, Constantin Noica e muitos outros não tão conhecidos, mas igualmente grandes escritores. Lucian Blaga (1895-1961) era um pouco mais velho, publicando Poemele luminii[4]em 1919 e seus primeiros trabalhos filosóficos na década de 1920. Para a geração de Cioran, a Unificação da Romênia não era mais um problema, como havia sido para a geração de Blaga: é compreensível, estávamos obcecados com a Unificação na década de 1910 porque, até então, cerca de um terço dos romenos vivia praticamente na Hungria/Transilvânia.[5] Na Primeira Guerra Mundial, grande parte da etnia romena lutou contra o seu país de origem como cidadãos austro-húngaros! Este é o tema de um grande romance pré-existencialista, Pădurea spânzuraților[6] (1922) escrito por Liviu Rebreanu, que recomendo a você e seus leitores. No entanto, Cioran, Eliade e Noica não se importavam mais com a Grande Romênia, enquanto a geração anterior de Blaga e Rebreanu estava emocionada com a realização de um sonho tão esperado e aparentemente impossível. Os escritores mais jovens queriam fazer um nome para si mesmos e se adaptaram ao Zeitgeist político e cultural europeu. Estudavam no exterior, liam e estudavam o que estava na moda em Paris, Londres e Berlim, e não era incomum escrever e publicar em francês, inglês ou alemão. O lado obscuro disso é que os principais autores da Geração de 1927 se tornaram legionários (uma vertente mística de fascismo local que era ainda mais radical e assassina do que as suas contrapartes italianas e alemãs).

Para responder à sua pergunta, Cioran foi banido da Romênia até o final dos anos 80 por causa do seu passado fascista e, mais especificamente, por causa de suas páginas terríveis sobre a Romênia em A Tentação de existir (1956):

Acreditava, e talvez não me enganasse, que descendíamos da escória dos bárbaros, do rebotalho das grandes invasões, dessas hordas que, incapazes de prosseguirem na marcha em direcção ao Ocidente, se deixaram ficar ao longo dos Cárpatos e do Danúbio, para aí se esconderem, se deixarem ficar adormentadas, massa de desertores nos confins do Império, ralé com alguns laivos de latinidade. Tal passado, tal presente. E tal futuro. Que provação para a minha jovem arrogância! “Como se pode ser romeno?” era uma pergunta a que eu só podia dar resposta por meio de uma mortificação de todos os instantes. Odiando os meus, o meu país, os seus camponeses intemporais, apegados ao seu torpor, e como que resplandecentes de pasmo, corava por deles descender, renegava-os, recusava-me à sua subeternidade, às suas certezas de larvas petrificadas, às suas divagações geológicas. Bem podia procurar, no seu rosto, o desassossego, os arremedos da revolta: infelizmente, neles o macaco estava a morrer. Pois não pertenciam, no fundo, ao mineral? Não sabendo como sacudi-los, como animá-los, cheguei a sonhar com o seu extermínio.[7]

Não me incomodam as críticas romenas, há muitas coisas no meu país que eu mesmo odeio, mas paremos um pouco para pensar no contexto histórico: estamos na década de 1950,[8] a Romênia é praticamente dominada e governada pela União Soviética (e a Europa Ocidental e os EUA nos venderam, não como no caso da Ucrânia hoje, porque tinham medo de Stalin), as maiores mentes do país foram exiladas, torturadas ou assassinadas na prisão, ninguém pode falar o que pensa sem arriscar suas vidas ou as de suas famílias, os combatentes da Resistência (“esperando pelos americanos”) são caçados nas montanhas como feras,[9] e Cioran escreve, do coração do mundo livre, que os romenos “surgiram da escória dos bárbaros, da rebotalho das grandes invasões”. Este é um traço fascista (e oportunista) do pensamento de Cioran que eu pessoalmente abomino: abusar de uma vítima, bater na cabeça de alguém quando está caído. Quando a vítima estiver caída, pare! Se você não pode ajudar – e sempre pode, mas prefere mentir para si mesmo que está além de seus poderes – pelo menos não faça mais mal! A Romênia estava em seu ponto histórico mais baixo e não merecia outro golpe… É quase como se ele dissesse que merecemos ser pisoteados pelos bárbaros russos.

Contudo, na década de 1990, devido aos magníficos esforços de Gabriel Liiceanu, a obra de Cioran foi publicada integralmente pela Editora Humanitas. Li Cioran pela primeira vez como aluno (eu tinha apenas 14 anos) e lembro que havia uma moda-Cioran naqueles anos (1992-96). Cioran é odiado na Romênia por duas razões. A primeira eu abordei acima: ele era antinacionalista – embora adorasse a língua romena (uma combinação única entre latim e eslavo extremamente adequada para a poesia – objetivamente falando, alguns poetas romenos do século XX estão entre os melhores do mundo) e a bela paisagem romena, mas odiava a história romena e a considerava demasiado humilde para as suas ambições.[10] A segunda razão é religiosa: depois de mais de um século de existência jurídica, meu país não é totalmente secularizado. A igreja ortodoxa romena é praticamente uma governante na Romênia e ainda mantém opiniões ultrapassadas: por exemplo, posiciona-se contra a cremação, contra os direitos dos homossexuais, contra a legalização da prostituição. Como grande parte da população se identifica como religiosa, a igreja pode até influenciar no processo de votação. Além disso, é extremamente rica e poderosa. Recomendo este filme, de Daniel Sandu, se quiser aprender mais a respeito: One Step Behind the Seraphim (2017). É claro que um blasfemo e antinacionalista como Cioran só pode ser um marginal no meu país.

R. M. – Que diferenças você vê entre os escritos romenos e franceses de Cioran? Não só em termos de estilo, mas de pensamento também. O próprio Cioran dizia, nas entrevistas que deu, que todos os seus livros “procedem de uma e mesma visão da vida, de um mesmo sentimento de existência, se preferir. […] Tal visão não me abandonou. O que mudou foi a maneira de traduzi-la.”[11] Você vê a ligação entre as obras romenas e francesas de Cioran mais no sentido de ruptura e descontinuidade, mais no sentido de uma continuidade deslocada e sutil, ou uma combinação de ambos?

Ş. B. – Há uma espécie de descontinuidade entre as obras romenas e francesas, mas como Marta Petreu argumenta em An Infamous Past,[12] o Breviário de decomposição (1949), seu primeiro livro em francês, ainda pode ser considerado uma obra “romena” Por quê? Pois tematicamente ainda é o primeiro Cioran, o niilista inflamado, e não o cripto-cético-estóico dos anos 1970. A primeira obra é schopenhaueriana-nietzscheana-spengleriana, a última tem o cansaço agridoce de Marco Aurélio.[13] O insight de Marta Petreu é brilhante. Lembre-se que foi concebido antes de todos conhecerem os Exercices négatifs! (De fato, acredito que Marta Petreu merece mais crédito, porque um monte de intelectuais romenos e franceses copiam os seus trabalhos e fazem as mesmas observações depois, como se o que ela escreveu fosse “senso comum”. Não é!) Você não pode entender Cioran se não ler seus primeiros livros. Nos cumes do desespero (1934) começa onde Ecce homo (1888) de Nietzsche termina, como afirmo no meu livro Internal Conflict.[14] Cioran começa pelo fim, como ele mesmo nos diz. Nos cumes do desespero tem a mesma intensidade e vibração nietzschianas, acho que é uma ‘bomba mental’, quase a obra de um psicótico: pode enlouquecer se você levá-lo a sério! As traduções em inglês dos livros romenos de Cioran são boas, mas muito cortadas – faltam muitos fragmentos, importantes para mim como filósofo. Então, é preciso aprender o romeno para saber o que Cioran realmente é.

R. M. – Para quem quer entender Cioran a fundo, qual a importância de conhecer os seus escritos romenos? Quão importante é conhecer o jovem Cioran, “nos cumes do desespero”, para compreender o segundo Cioran, o autor de língua francesa? Além disso, até que ponto é importante se familiarizar com a língua nativa de Cioran, mesmo que superficialmente, para compreender sua mentalidade, sua visão peculiar sobre diversos temas? Por exemplo, Cioran escreve muito em francês sobre o ennui (tédio, fastio), termo cuja história de uso filosófico que remonta a Pascal, mas, até aí, ele já havia escrito em romeno sobre a mesma experiência, o mesmo sentimento, ou seja, plictiseală. Eu me pergunto como algumas palavras romenas especiais como dor, zădărnicie e razne, entre outras usadas pelo primeiro Cioran, moldam e refletem a topologia da sua alma romena, como ele as carrega em sua mente mesmo como escritor francês, depois de abandonar sua língua nativa…[15] É correto supor que Écartèlement (1979) é uma noção já presente nos primeiros escritos de Cioran, como Sfîrtecare,[16] que por acaso é o título deste livro em romeno? Se for a mesma noção presente no Livro das Ilusões (1936), onde ele escreve que “Solo dolore este, pentru noi ceilalţi, calea sfîşierilor”, “cred în sfîşieri”,[17] então pode-se dizer que “écartèlement” é uma ideia já contida nos escritos romenos de Cioran (ele apenas deu-lhe um nova forma, quase como se Cioran se traduzisse de uma língua para outra, de plictiseală a ennui, de sfîrtecare para écartèlement).

Ş. B. – Exatamente. Não se pode ser especialista em Heidegger sem saber o alemão. Você não pode escrever autenticamente sobre Rimbaud se o francês for desconhecido para você. O mesmo se aplica a Cioran e à sua excessiva “alma romena”. Em relação às palavras romenas específicas, eu escrevi algo: “No original romeno, sfîrşeală (traduzido aqui como cansaço) vem de sfîrşit, que significa “fim”. Sfîrşeală denota não apenas exaustão ou nojo, mas poderia ser interpretado fenomenologicamente como um afeto que explora o estado de espírito de quem antecipa a morte, mais exatamente a náusea e o tédio de quem está doente da vida e não tem outra esperança senão a sua destruição. Esse cansaço é uma reminiscência da descrição de Kierkegaard da mortificação (uma morte que se vive e morre) em A doença até a morte. Cioran define a agonia como uma batalha [frămîntare] entre a vida e a morte. Em romeno, frămîntare é apenas uma metáfora da batalha e tem um significado mais visceral: inquietação, tortura, ansiedade, agitação, preocupação. É melhor entender a agonia como um território entre a vida e a morte, onde não se pode viver nem morrer, onde se deve desesperar”.[18] Além disso, em relação a ennui/plictiseală, temos em romeno uma palavra ainda mais legal: urât. Se você usar como adjetivo, significa “(muito) feio”, “(quase) hediondo”. Quando usado como substantivo, significa: “tédio”, cafard, spleen, e muito mais. É um tédio combinado com ansiedade, depressão, náusea, não muito longe da acídia.[19] Temos a expressão romena: Mi-e urât de mor, que pode ser traduzida como: “Estou mortalmente cansado / de saco cheio / desgostoso”. Lucian Blaga em seu Spațiul mioritic [20]argumentou que existem três palavras romenas originais que não podem ser traduzidas: dor, jale e urât.[21]

R. M. – Em seu artigo sobre o “niilista como um não-homem segundo Cioran: análise da desumanidade psicológica”,[22] você articula os conceitos de niilismo e anti-humanismo em relação a Cioran. Poderia nos falar aqui, um pouco, sobre o anti-humanismo de Cioran? Você reconhece um sentimento impotente e impotente de revolta (metafísica) em sua postura negativa (no sentido camusiano[23])? Eu me pergunto se Cioran realmente acreditava e esperava que essa condição pós-humana[24] fosse possivelmente realizável (e desejável)… Cioran incorria de bom-grado em fabulações distópicas e “apocalípticas”, mas, por outro lado, também sabia e reconhecia abertamente que, “a longo prazo, a vida sem utopia se torna irrespirável”.[25] É possível viver “sem chão”, sin fundamentación, sem nenhuma base sólida, como teria dito Cioran a estudantes espanhóis que leram o seu Breviário, porque “não estamos despertos e não nos interrogamos o tempo todo, sendo a lucidez absoluta incompatível com a respiração. Se estivéssemos, a cada momento, conscientes do que sabemos, se, por exemplo, a sensação da falta de fundamento fosse ao mesmo tempo contínua e intensa, cometeríamos suicídio ou cairíamos na idiotia.”[26] Dito isso, você não acha que a imagem sombria e distópica que Cioran pinta da humanidade futura pode carregar uma ambivalência (uma dualidade) que faz dela ao mesmo tempo um desejo de misantropo antinatalista e uma espécie de exorcismo ou conjuração por antecipação (por um amor contrariado ao “animal enfermo”, insone e extático)? Não pode ser uma forma anti-essencialista de “humanismo” radical e subversivo, dir-se-ia “titânico”[27]?

Ş. B. – Você me dá o que pensar: suspeito que a sua pergunta seja o ponto de partida de um dos meus futuros artigos. Agora mesmo, posso lhe dizer o que quero dizer com anti-humanismo. Fiquei intrigado – já no meu primeiro livro de 2004, baseado na minha tese de graduação[28] – com o conceito de “não-homem” segundo Cioran: “Há pessoas ainda longe de ultrapassar a forma de existência animal ou vegetal. É natural que elas desejem e admirem o fenômeno humano. Mas quem sabe o que significa ser homem procura se tornar qualquer coisa, exceto homem. […] Pois, se a diferença entre hoem e animal reside no fato de o animal não poder ser nada além de animal, enquanto o homem pode ser não homem, ou seja, outra coisa que não ele mesmo – então eu sou um não homem.”[29] Eu também sempre me senti um “não homem”. Claro, sou um ser humano, não um alienígena, nem um algoritmo gerado por computador (espero!), mas também sinto que há uma distância entre mim e os outros, estou ontologicamente sozinho, como Edgar Allan Poe disse no seu esplêndido poema:

Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.

A partir dessa visão autobiográfica da desumanidade segundo Cioran (humana apenas do ponto de vista biológico), defenderei no meu próximo livro (a ser publicado em inglês, em 2024) que o anti-humanismo de Cioran, o qual – à diferença de uma variedade mais branda, como a de Foucault – acolhe a misantropia, sendo prefigurado por diversos autores do século XIX como Nietzsche, Maupassant, Lautréamont, Stirner, Mainländer, entre outros. Como você pode ver, levo o anti-humanismo de Cioran muito pessoalmente e não me importo se os críticos afirmam que não passa de uma projeção da minha parte. Como Orwell colocou esplendidamente, estou acostumado a ser a “minoria de um só”. Ou, se preferir, a versão de Sábato: “En todo caso había un solo túnel, oscuro y solitario: el mío, el túnel em el que había transcurrido mi infancia, mi juventud, toda mi vida”.[30]

R. M. – Em outro dos seus artigos, você aproxima Cioran e Philipp Mainländer, “em direção ao que nunca nasceu”.[31] Admitindo que Cioran é inegavelmente um filósofo e, como tal, deve ser devidamente inserido na história da filosofia e tradição filosófica do Ocidente, dos pré-socráticos aos pós-estruturalistas e existencialistas, de Platão a Kierkegaard e Nietzsche, como você vê a posição filosófica de Cioran em meio a essa constelação de autores, teorias, ideias e estilos? Cioran é um cético e um pessimista? Como você interpreta a concorrência de negação e dúvida no logos de Cioran? Na sua opinião, Cioran se aproxima de Schopenhauer e se distancia de Nietzsche em se tratando de temperamentos ou humores filosóficos, uma visão pessimista da vida e do mundo (o mal radical e universal, sofrimento sem sentido, absurdo), ontologia negativa e ética negativa? Pela mesma moeda, você acha que Cioran se aproxima ainda mais de Mainländer do que de Schopenhauer? Nesse sentido, talvez o chamado “vitalismo” de Cioran possa ser considerado um “mortalismo” (a Wille zum Leben se torna uma Wille zum Tode)?

Ş. B. – Cioran é um schopenhaueriano, com certeza. Recomendo o artigo de Marta Petreu sobre isso, Filosofii paralele, traduzido para o francês.[32] Praticamente, a batalha niilista é entre Schopenhauer/Nietzsche-1/Cioran/“Buda” e Nietzsche-2 (Jung também está na linha de Nietzsche-2). Podemos categorizá-lo como um parafilósofo, como Hannay chama Kierkegaard, mas, gostemos ou não, Cioran é um filósofo.[33]

E se esta for a verdadeira filosofia? Uma combinação de poesia, música e vida? Não gosto dos filósofos que escrevem mal. Concordo, é claro, que Kant é o maior gênio filosófico, e tive meu quinhão de passar horas em uma única página da Crítica da razão pura, como estudante, mas não consigo investir emocionalmente em Kant ou Hegel. Se Kant e Hegel fossem os únicos filósofos (e graças a Deus temos Schopenhauer para dispensarmos Hegel!), eu não seria um filósofo: preferiria fumar um cigarro atrás do outro contemplando o pôr do sol!

Sim, acho que é possível ser cético e niilista ao mesmo tempo. O niilismo pode ser entendido como ceticismo radical (noi nu credem în nimic / “não acreditamos em nada”, como Eminescu exclamou em seu Epigonii, embora em outro contexto). Ademais, penso que se possa ser niilista e antiniilista ao mesmo tempo. E acho que nós, niilistas, podemos resgatar a religião, até mesmo Deus.[34] Algumas tradições esotéricas afirmam que se você ama a Deus, você receberá a iniciação em “dez anos” (não se deve tomá-lo literalmente, mas em alusão ao Karma: está mais para 10 vidas). Mas se você o odeia, você receberá a iniciação em “um ano”. E se isto for verdade? E se os niilistas forem santos e mártires no altar do Deus otiosus?

R. M. – Você escreveu um artigo sobre “O homem violento de Sartre como niilista gnóstico”, um tema instigante. Cioran foi apresentado na Itália, por Mario Andrea Rigoni, como l’anti-Sartre.[35] Não sem razão, pois o filósofo romeno pode ser lido como um antípoda niilista-gnóstico de Sartre e de Heidegger,[36] para quem “o mau demiurgo é o deus mais útil que já existiu”,[37] “uma indispensável hipótese de trabalho”[38] (“sem ele, para onde escoaria a nossa bílis?”[39]). Na versão inicial do Breviário de decomposição, havia um texto intitulado “Sartre”, que acabou virando “Um empresário de ideias” na versão final. Cioran poderia ser esse “niilista gnóstico” de Sartre?

Ş. B. – Eu acho que o bom (e de certa forma também o ruim e o inautêntico) do niilismo é que, comparado ao anarquismo, não requer ação. Caso contrário, eu certamente estaria na prisão, e Cioran teria sido “esquartejado”.[40]

R. M. – Você escreveu um livro intitulado Ontologia negației: eseu despre nihilism (Ontologia da negação: ensaio sobre o niilismo, 2004). Pode dar-nos uma visão geral do livro? Falando em niilismo, você concordaria com Philippe Tiffreau quando afirma que Cioran é “um anarquista nas bordas, niilista no meio e místico no centro”[41]?

Ş. B. – É o meu primeiro livro em romeno, publicado quando ainda fazia a minha segunda graduação. Acabei de revisá-lo para uma segunda edição e, embora achasse que era uma bagunça estilística (ainda estava aprendendo a escrever), as ideias são boas. Trata-se de um estudo sobre o niilismo do século XIX a partir das obras de dois filósofos, Kierkegaard e Nietzsche, dois poetas, Rimbaud e Lautréamont, e dois filósofos políticos (anarquistas), Stirner e Bakunin. Para resumir, comecei a minha carreira de escritor como um niilista e um teórico do niilismo, não muito diferente de um dos meus (anti-)modelos, Nietzsche.

Em relação à afirmação de Tiffreau, acho que ela não apenas é verdadeira, mas reflete a essência da obra de Cioran. Ele é um místico fracassado: uma combinação de Stavróguin e Aliocha Karamazov. “Fui benevolente; minha alma brilhou com amor e humanidade”, escreve o monstro sem nome de Mary Shelley. Eis o ponto de partida. Todos nós conhecemos a continuação: “Serás meu bem, ó mal!”  (famosa exclamação do Satã de Paraíso perdido). Só não sabemos como será o final. A partir daqui, há muitos caminhos: ou a obra sombria de John Doe, do filme Se7en, ou o método de Rust Cohle, da série True Detective… E nossas buscas “humanas demais humanas” no interim… Obrigado por suas perguntas maravilhosas. Espero de verdade que possamos nos encontrar pessoalmente, em algum lugar no planeta de Cioran…


NOTAS:

[1] A Grande União da Romênia foi amplamente celebrada em 2018 no país, ensejando debates e publicações. Ver a entrevista com Miguel Angel Gómez Mendoza, historiador colombiano e especialista na obra de Lucian Boia, historiador romeno.

[2] Considerado o grande poeta nacional romeno, “Eminescu é a grande desculpa da Romênia”, segundo Cioran. A versão inicial do Breviário de decomposição, Exercices négatifs, publicada postumamente, inclui um texto sobre o poeta, “Mihail Eminesco” (traduzido ao português e disponível no Portal E. M. Cioran). A obra poética de Eminescu segue inédita em português, ao menos no Brasil. A revista (n.t.) Nota do Tradutor publicou recentemente Rugaciunea unui dac (“A Oração de um dácio”), poema comentado por Cioran na versão inicial do Breviário. Cf. EMINESCU, Mihai, “A Oração de um dácio”. Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. In: Revista (n.t.) Nota do Tradutor, no 22, vol. 1, junho de 2021, pp. 36-40. Disponível em: https://www.notadotradutor.com/previas/(n.t.)_Mihai_Eminescu.html

[3] Muito embora tivessem orgulho da sua identidade romena, os pais de Cioran amiúde falavam húngaro em casa. A atitude de Cioran em relação ao império bicéfalo sempre foi ambivalente, uma mescla de veneração e rechaço. “A Europa Ocidental era então o Império Austro-Húngaro. Sibiu, encravada na Transilvânia, pertencia ao império; a nossa capital dos sonhos era Viena. Eu sempre me senti ligado, de uma forma ou de outra, ao império… do qual nós, romenos, éramos escravos!” CIORAN, Entretien avec Fernando Savater, Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, p. 19. Na carta endereçada a Constantin Noica, que se tornaria o primeiro capítulo de História e utopia (1960), esta anamnese: “Nascido na parte de lá dos Cárpatos, você não podia conhecer o gendarme húngaro, terror de minha infância na Transilvânia. Quando de longe via algum deles, era tomado de um pânico que me fazia fugir: ele era o estrangeiro, o inimigo; odiar era odiá-lo. Por causa dele, eu detestava todos os húngaros com uma paixão verdadeiramente magiar.” CIORAN, História e utopia. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 17.

[4] “Os poemas de luz” em romeno.

[5] Presente em documentos que remontam ao século 11, Transilvânia, de ultra silvam, “além da floresta”, é o nome latino dado pelos colonizadores romanos à região. Em romeno chama-se Ardeal, e em húngaro, Erdély (uma leve similitude morfológica entre elas, bastante distintas do nome latino).

[6] “A Floresta dos Enforcados” em romeno.

[7] CIORAN, “Pequena teoria do destino”, A Tentação de existir. Trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’Água, 1988, p. 43-44

[8] Após sua publicação, em 1956, um exemplar de La Tentation d’exister foi levado da França para a Romênia, clandestinamente, passando a circular entre amigos e conhecidos de Cioran, entre eles Lucian Blaga, que reagiu com uma crítica violência ao texto citado por Ştefan Bolea, “Pequena teoria do destino”. Em dezembro de 1957, uma longa nota nos Cahiers de Cioran manifesta a mágoa e a decepção de quem “colocava L. Blaga no pedestal” (p. 130-131). Expatriado, escrevendo em francês, Cioran se voltará contra o nacionalismo desesperado daquele que, em sua juventude, considerava a Romênia “um ponto que o meu desespero tenta salvar” (Transfiguration de la Roumanie, p. 339), encarnando a “lucidez criminosa” que ele mesmo condenava em Schimbarea la fata a României (1936). Homo duplex, Cioran sempre levou em si, virtualmente, o seu oposto, antagonista, o outro do eu. Na seguinte passagem de Transfiguração da Romênia, vemos o Entusiasta apaixonado pelo destino da Romênia sendo espreitado pelo Cético indiferente e desiludido, de uma “lucidez criminosa”: “Se não aderíssemos profundamente ao fenômeno da Romênia, se pudéssemos ser perfeitamente objetivos em relação a ela, não nos importaríamos se desempenhasse ou não um papel importante no mundo. Julgaríamos natural que ela tivesse o destino das pequenas culturas, e o seu anonimato não nos incomodaria em nada. Mas um apaixonado da Romênia não pode aceitar que ela esteja perpetuamente condenada ao destino medíocre que teve até agora. Espíritos de uma lucidez criminosa veem nela um microcosmo destinado a desaparecer, ao contrário dos entusiastas, que a colocam no âmago do seu coração e, portanto, no ritmo do mundo.” CIORAN, Transfiguration de la Roumanie. Trad. de Alain Paruit. Paris: L’Herne, 2009, p. 108.

[9] Ver o filme Portretul luptătorului la tinerețe [Retrato do guerreiro quando jovem], do cineasta romeno Constantin Popescu (2010). https://www.imdb.com/title/tt1727532/

[10] Ver “O complexo de Fiesco”, capítulo do livro de Ion Vartic, que inclui uma seção intitulada “Como se pode ser romeno?”. VARTIC, Ion, Cioran, ingenuo y sentimental. Trad. de Francisco Javier Marina Bravo.  Zaragoza: Mira Editores, 2009, p. 57.

[11] CIORAN, Interview with Gerd Bergfleth, Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, p. 150.

[12] PETREU, Marta, An Infamous Past: E. M. Cioran and the Rise of Fascism in Romania. Transl. by Bogdan Aldean. Chicago: Ivan R. Dee, 2005.

[13] “Respondi, a um estudante que queria saber o que eu pensava acerca do autor de Zaratustra, que deixara há muito de o frequentar. Porquê?, perguntou-me ele. – Porque o acho demasiado ingénuo… […] É-me muito mais próximo um Marco Aurélio. Não há qualquer hesitação da minha parte entre o lirismo do delírio e a prosa da aceitação: encontro mais reconforto, e até mais esperança, junto de um imperador fatigado do que de um profeta fulgurante.” CIORAN, Do inconveniente de ter nascido. Trad. de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 79.

[14] BOLEA, Ştefan, Internal Conflict in Nineteenth-Century Literature: Reading the Jungian Shadow. Lanham (MD): Lexington Books, 2020.

[15] “Do meu país eu herdei o niilismo de raiz, o seu traço fundamental, a sua única originalidade. Zădărnicie, nimicnicie – estas palavras extraordinárias, não, não são palavras, são as realidades do nosso sangue, do meu sangue.” CIORAN, Cahiers: 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997, p. 685.

[16] “Dilaceração”, “desmembramento”, “esquartejamento” (nome francês para o método de tortura em que os membros da vítima são atrelados a quatro cavalos). Sfîrtecare é o título de Écartèlement em romeno. Trata-se, neste caso, de uma metáfora espiritual, a “dilaceração” como condição do místico, na experiência interior, cuja alma é “dilacerada” à medida que se aproxima de Deus ou do Nada. 

[17]Solo dolore é para nós a via das dilacerações. […] Eu creio nas dilacerações.” CIORAN, O Livro das ilusões. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 190. Em francês: “Pour nous autres, solo dolore est la voie des déchirements. […] Je crois aux déchirements.” IDEM, Le Livre des leurres. Trad. de Grazyna Klewek et Thomas Bazin. In: Oeuvres. Paris: Gallimard, 1995, p. 253. “Solo dolore es para el resto de nosotros la vía de los desgarros. […] Yo creo en los desgarros.” IDEM, El Libro de las quimeras. Trad. de Joaquín Garrigós. Barcelona: Tusquets, 1996, p. 218 (nosso destaque).

[18] BOLEA, Ştefan, “Death without death: Kierkegaard and Cioran about agony”, in TEODORESCU, Adriana (ed.), Death Within the Text: Philosophical and Aesthetic Approaches to Literature. London: Cambridge Scholars Publishing, 2019, pp. 72-83. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/332267384_Death_without_Death_Kierkegaard_and_Cioran_about_Agony

[19] Acedia é um termo latino bastante frequente na Idade Média que designa o sentimento de tédio, fastio, melancolia e/ou tristeza característico de monges enclausurados. Há um texto no Breviário de decomposição com este título (p. 99-100). Para saber mais sobre a acídia, como expressão monástica medieval na história da melancolia, da Antiguidade aos tempos atuais, cf. STAROBINSKI, Jean, A tinta da melancolia: uma história cultural das lágrimas. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

[20] Trata-se do segundo volume da Trilogia culturii (1936) de Lucian Blaga. Cf. BLAGA, Lucian, Trilogia culturii. Bucureşti: Humanitas, 2011.

[21] Dos três termos romenos, apenas dois constam no Dicționar de termeni cioranieni: dor (98 ocorrências) e urât (52). No texto “Apoteose do vago”, do Breviário de decomposição (p. 47-51), Cioran correlaciona o alemão Sehnsucht, o inglês yearning e o português saudade como termos praticamente sinônimos (e intraduzíveis). Não é mencionado dor, que tampouco aparece neste texto em sua tradução romena (curiosamente, Cioran é um autor romeno que passou a escrever em francês e acabou tendo os seus livros traduzidos de volta ao seu idioma nativo). Na versão romena de “Apoteose do vago” (Tratat de descompunere, trad. de Irina Mavrodin, Humanitas, 1992, p. 50-54), ocorre um substantivo derivado do étimo dor, dorința (“desejo”), do verbo a dorí, (“desejar”), que conta com o expressivo número de 140 ocorrências nos textos romenos de Cioran. A frase Mi-e dor de tine, em romeno, significa “Sinto falta / saudade de você” (I miss you em inglês). Cf. CONSTANTINOVICI, Simona (ed.), Dicționar de termeni cioranieni, vol. I/II. Timişoara: Editura Universităţii de Vest; Milano: Criterion Editrice, 2020

[22] BOLEA, Ştefan, “The Nihilist as a Not-Man: An Analysis of Psychological Inhumanity”, Philobiblon – Transylvanian Journal of Multidisciplinary Research in Humanities, vol. 1, no. 1, January 2015, pp. 33-44. Available at: https://www.researchgate.net/publication/285610429_The_nihilist_as_a_not-man_An_analysis_of_psychological_inhumanity

[23] Em O Mito de Sísifo (1942), após criticar o que chama de “tradição do pensamento humilhado”, representada por pensadores existenciais com tendência mística ao irracional ou suprarracional (ele nomeia Kierkegaard, Chestov, Heidegger e Jaspers), Camus tematiza, no capítulo seguinte, o assim-chamado “suicídio filosófico”. Cioran poderia muito bem ser inserido nessa tradição de pensamento negativo. No Breviário de decomposição, após prescrever-se “venenos abstratos” (talvez para evitar ter de recorrer a um de verdade), Cioran diz “Adeus à filosofia”. Ademais, Cioran se encaixa, em diversos aspectos do seu pensamento e da sua vida, ao Homem revoltado tematizado por Camus no livro de 1951.

[24] “Os cínicos não são nem super nem sub-homens, mas pós-homens. Chegas a compreendê-los e inclusive a amá-los, quando uma confissão dirigida a ti ou a ninguém escapa do tormento de tua própria ausência: Eu fui alguma vez um homem, e não mais sou um. Quando não há mais ninguém em ti, nem mesmo Diógenes, e te encontras vazio até da vacuidade, e em teus ouvidos já não ressoa o nada…” CIORAN, Amurgul gândurilor (1940). Bucureşti: Humanitas, 1991, p. 127 (tradução nossa).

[25] CIORAN, Entrevista com Branka Bagavac Le Comte, in Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, p. 267 (tradução nossa).

[26] CIORAN, “Relendo…”, Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 156.

[27] “Sempre diferentes, não somos nós mesmos senão à medida que nos apartamos da nossa definição, o homem sendo, nas palavras de Nietzsche, das noch nicht festgestellte Tier, o animal cujo tipo não foi ainda determinado, fixado.” CIORAN, “L’Arbre de vie”, La Chute dans le temps, Œuvres, p. 1078 (nossa tradução). No último parágrafo deste mesmo texto, Cioran chega a uma conclusão paradoxalmente humana a partir do pesar de ser humano: “Já que tudo o que se concebeu e se fez desde Adão é ou suspeito ou perigoso ou inútil, que fazer? Dessolidarizar-se da espécie? Seria esquecer que nunca se é tão humano como quando se lamenta sê-lo.” IDEM, Ibid., p. 1082-1083.

[28] BOLEA, Ştefan, Ontologia negației: eseu despre nihilism. Cluj-Napoca : Casa Cărţii de Ştiinţă, 2004.

[29] CIORAN, “Deixar de ser homem”, Nos cumes do desespero. Trad. de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2012, p. 84-85.

[30] SÁBATO, Ernesto, El túnel. Barcelona: Editorial Seix  Barral, 1983, p. 129.

[31] BOLEA, Ştefan, “Toward the Never-Born: Mainländer and Cioran”, Revue Roumaine de Philosophie, no 65, 1, Bucureşti, 2021, p. 145–155. Disponível em: https://www.academia.edu/79896648/Toward_the_Never_Born_Mainl%C3%A4nder_and_Cioran

[32] PETREU, Marta, “Schopenhauer et Cioran: philosophies parallèles”, Cahiers Emil Cioran, Approches critiques, II (textes réunis par Eugène van Itterbeek). Sibiu: Editura Universităţii « Lucian Blaga »; Leuven: Edition Les Sept Dormants, 2000, pp. 107-122. Disponível em: https://www.academia.edu/81594167/PETREU_Marta_Schopenhauer_et_Cioran_philosophies_parall%C3%A8les_

[33] HANNAY, Alastair, Kierkegaard. London: Reaktion Books, 2018.

[34] Cf. SLOTERDIJK, Peter, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019.

[35] RIGONI, Mario A., “E.M. Cioran. La rivincita dell’ anti-Sartre”, Corriere della sera, 28 febbraio 2011, p. 35.

[36] Na leitura de Peter Sloterdijk, Cioran é um anti-Heidegger, um “doppelganger sombrio” do autor de Ser e Tempo. Se pertence a Heidegger a “tese cripto-católica de que pensar é agradecer”, deve-se atribuir a Cioran a contra-tese gnóstica de que “pensar é vingar-se”. SLOTERDIJK, Peter, “The Selfless Revanchist: a note on Cioran”, Not Saved: Essays after Heidegger. Transl. by Ian Alexander Moore and Christopher Turner. Malden, MA: Polity, 2016, p. 254 (tradução nossa).

[37] CIORAN, Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1171.

[38] “Necessito do mau demiurgo como de uma indispensável hipótese de trabalho. Prescindir dele equivaleria a não compreender nada do mundo visível”, escreve Cioran nos Cahiers (p. 549). Eis um ponto fundamental a criar uma cumplicidade inaudita entre Cioran e Harold Bloom em matéria de pensamento e mentalidade de tipo gnóstico-dualista: “Não faz muito sentido dizer que ‘Javé é amor’, ou que devemos amar Javé. Ele não é, nunca foi e jamais será amor. […] Traduzindo a questão em termos religiosos, o Javé de ‘J’ é a representação mais convincente de alteridade transcendental que já encontrei na vida. E, no entanto, Javé não é apenas ‘antropomórfico’ (termo inútil!), mas é mesmo absolutamente humano, e não é, de maneira alguma, um sujeito agradável – e por que deveria sê-lo? Não pretende se candidatar a cargo político, não busca a fama nem almeja receber tratamento favorável por parte da mídia. Se o cristianismo insiste que Jesus Cristo é a boa nova (asserção tornada inválida ao longo da história), então, com toda a certeza, Javé é a ‘má nova’ encarnada, e a Cabala nos diz que ele, com toda a certeza, tem um corpo imenso. É algo terrível cair nas garras do Javé vivo.” BLOOM, Harold, Jesus e Javé: os nomes divinos. Trad. de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 196-198.

[39] CIORAN, Le mauvais démiurge, Œuvres, p. 1171.

[40] Écartélé, de Écartèlement, título de um dos livros franceses de Cioran.

[41] TIFFREAU, Philippe, Cioran ou la dissection du gouffre. Paris: Henri Veyrier, 1991, p. 28.

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