O que Eduardo Marinho pensa sobre Bolsonaro? | Traficando Informação

Eduardo Marinho é artista plástico, pensador e escritor, ativista social e exemplar cidadão brasileiro. “Um para mim vale 10 mil, se for o melhor” (Heráclito). Daria 10 mil Olavos por 1 Eduardo Marinho…

Na prática, qualquer um pode rivalizar com o diabo; na teoria não ocorre o mesmo. Cometer horrores e conceber o horror são dois atos irredutíveis um ao outro: não há nada em comum entre o cinismo vivido e o cinismo abstrato.

CIORAN, História e Utopia (1960)

Eduardo Marinho. Eis alguém que compreendeu o horror:

Vivemos numa sociedade que tem no seu centro de importância os interesses empresariais, não o ser humano, não a vida, não o equilíbrio harmônico da sociedade. Nada disso interessa. Interessa a exploração extrema. Isso resulta em miséria, e o que se faz é investir em mais segurança pública para a “contenção das massas”, para descer a porrada em quem não se conformar. A coisa funciona de uma forma muito simples, muito linear, muito óbvia. Mas existem entorpecentes psicológicos que deixam a população hipnotizada, narcotizada, “zumbizada”… Aqueles que enxergam a realidade acabam acreditando que estão vendo errado, não acreditam no que estão vendo, condicionados pela razão da formação de criança: o modelo de ensino é esse, enquadrador, você tem que achar natural a miséria, que é natural tudo ser como é… [..] É uma sociedade mau caráter que te exige mau caráter para te aceitar. Ou você é conivente com os crimes sociais, ou você tá fora. […] O mínimo que a sociedade te exige é conivência com os crimes que ela comete contra a sua população – o mínimo. Agora, se você conseguir exercer perversidade, espremer os injustiçados, extrair deles lucro, aí você ganha patamares de privilégio: a perversidade é premiada, porque a sociedade é perversa por natureza.

Eduardo Marinho, entrevista realizada por Hare Brasil em 2018 (após a eleição de Bolsonaro)

Cioran escreve como um moralista francês (La Rochefoucauld, Chamfort, Joubert), porque os moralistes franceses foram um dos seus principais modelos de estilo, mas a sua alma está mais próxima de Diógenes, o Cínico, do que desses “maniqueístas de salão” que criticam a sociedade mas não podem passar sem ela. É no sentido desse cinismo radicalmente antinomístico (e parrhesiástico) que se pode entabular um diálogo filosófico entre Emil Cioran e Eduardo Marinho:

Desde que a sociedade se constituiu, os que pretenderam subtrair-se a ela foram perseguidos ou achincalhados. Perdoa-se tudo, contanto que você tenha uma profissão, um subtítulo sob seu nome, um selo sobre seu nada. Ninguém tem a audácia de gritar: “Não quero fazer nada!”; se é mais indulgente com um assassino do que com um espírito liberado dos atos.

Tentem ser livres: morrerão de fome. A sociedade só os tolera se são sucessivamente servis e despóticos; é uma prisão sem guardiões, mas da qual não se escapa sem perecer. Para onde ir, quando só se pode viver na sociedade e quando já não se tem instintos, e quando não se é tão arrojado para mendigar, nem tão equilibrado para entregar-se à sabedoria? No final das contas, continua-se a ser como todo mundo, fingindo atarefar-se; resigna-se a tal extremo graças aos recursos do artifício, entendendo que é menos ridículo simular a vida que vivê-la.

A sociedade não é um mal, é um desastre: que estúpido milagre que se possa viver nela! Quando a contemplamos, entre a raiva e a indiferença, torna-se inexplicável que ninguém tenha sido capaz de demolir seu edifício, que não tenha havido até agora pessoas de bem, desesperadas e decentes, para arrasá-la e apagar seus vestígios.

Enquanto os homens sentirem paixão pela sociedade, reinará nela um canibalismo disfarçado. O instituto político é a consequência direta do Pecado, a materialização imediata da Queda. Cada um deveria estar ocupado em sua solidão, mas cada um vigia a dos outros. Os anjos e os bandidos têm seus chefes: como as criaturas intermediárias – o grosso da humanidade – poderiam prescindir deles? Suprima seu desejo de ser escravos ou tiranos: a sociedade ruirá em um abrir e fechar de olhos.
O pacto dos símios está para sempre selado; e a história segue seu curso, horda esbaforida entre crimes e sonhos. Nada pode detê-la: mesmo os que a execram participam de sua carreira…

Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. “Tudo o que sei aprendi na escola das putas”, deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo, quando, a exemplo delas,
especializou-se no sorriso cansado, quando os homens são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo, o mercado onde vende sua amargura, como suas companheiras, seu corpo.

CIORAN, Breviário de decomposição (1949)

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