Presenciamos a banalização de todas as coisas, pessoas e experiências. Tudo vale o mesmo, ou seja, nada vale mais ou menos, nada importa efetivamente, e assim o mercado acaba por impor os seus critérios e cânones. Por isso, nesta era de uniformidade cinzenta, exceções e singularidades tendem a se diluir em tons soft, assépticos e pálidos… Em nome de um falso igualitarismo, cabeças são cortadas. A ideia de “gênio criador”, particularmente, é subversiva e politicamente incorreta. O politicamente correto dita, com o seu sutil microfascismo, que nada e ninguém pode estar acima da mediocridade padronizada. O que só pode espantar um crítico literário que fala da necessidade de retornar à “ideia do gênio criativo” e considera que o futuro da humanidade reside no futuro da imaginação criativa.
Falecido recentemente, o norte-americano Harold Bloom realizou uma poderosa releitura estético-metafísica da tradição literária ocidental. As suas polêmicas declarações autoritárias podem ser exasperantes, mas são sempre justificadas por um caminho de vida coerente dedicado à leitura apaixonada e à valorização dos grandes livros da humanidade. Claro que há notáveis ausências, vieses, em alguns casos pouco justificáveis ou toleráveis. Trata-se, porém, de um homem que fez do amor aos livros a sua vida, o seu trabalho, o seu legado. A sua busca vital e intelectual é motivada pelo desejo de criação e invenção humana: Onde encontrar a sabedoria? é o título de uma obra fundamental sua, que pode ser lida como o projeto de traçar uma cartografia individual-coletiva e uma bússola para valorizar o arconte do conhecimento humano de todos os tempos sob três critérios : esplendor estético, força intelectual e sabedoria. Infelizmente, esses critérios de beleza, verdade e discernimento são cada vez mais escassos e remotos em nossos dias.
O seu depoimento sobre outro grande estudioso da mística judaica, Gershom Scholem, aplica-se tanto ao amigo de Walter Benjamin quanto ao professor estadunidense: “O trabalho de uma vida dedicada à recuperação e salvaguarda da sabedoria antiga”. O Cânone Ocidental. A escola e os livros de todos os tempos desperta ódio e elogios. Uma obra que nos convida a repensar as ideias de cânone e de autor clássico, em uma era relativista, anticanônica, marcada pelo desaparecimento do autor e da autoridade, onde o classicismo é denunciado como elitismo, violência epistêmica e imposição. Bloom enfatiza: “Um sinal de originalidade capaz de conferir status canônico a uma obra literária é aquela estranheza que nunca acabamos de assimilar, ou que se torna algo tão assumido que permanecemos cegos às suas características. Dante é o maior representante da primeira possibilidade, e Shakespeare um exemplo fenomenal da segunda”.
As metáforas e imagens das obras-primas definem e redefinem a história da humanidade. Obras originais e poderosas tornam-se canônicas porque nos ensinam a experimentar, ou pelo menos vislumbrar, o mundo e o ser humano de outras formas. Os grandes mestres da criação são autênticos revolucionários: criam arte e literatura ex nihilo. O incendiário professor de Yale nos fala de literatura com uma paixão incandescente e transbordante. Seu gênio é possuído pelo entusiasmo criativo. Pensar arte e literatura a partir do cânone é assumir a fragilidade, caducidade e finitude do ser humano e suas criações. É tomar partido por uma seleção sempre arbitrária, tendenciosa, contingente, mas que busca dar um salto para a dimensão trans-histórica e vislumbrar a eternidade do ato criador original. O cânone literário não é apenas uma coleção de obras com méritos estéticos, mas também a exibição da própria condição humana encarnada como obra artística.
Daí sua consideração de William Shakespeare como o epicentro do cânone criativo, que, segundo o crítico, reinventa e destaca a condição humana moderna, de uma individualidade irredutível, em vez de tipos e arquétipos universais. A sua leitura sobre Shakespeare é simplesmente deslumbrante. Ela nos mostra um escritor válido para compreender a condição humana de todos os tempos, principalmente em tempos caóticos como os atuais. Daí a recomendação de Bloom: “Temos que nos exercitar e ler Shakespeare com a maior tenacidade possível, sabendo ao mesmo tempo que suas obras nos lerão com ainda mais força. Ele definitivamente nos lê”.
A angústia da influência revela a anatomia das relações intertextuais que atravessam as grandes obras. Este livro nos ajuda a entender e atender à genealogia da criação e recriação das obras-primas de todos os tempos. Sua exegese do pensamento gnóstico e religioso nos mostra um crente lúcido capaz de compreender a tradição ancestral de um presente profanado e aberto ao futuro.
Os seus trabalhos jornalísticos proporcionam reflexões que transcendem a opinião dominante, nos mobilizam a pensar. São memoráveis as suas polêmicas com os colegas e interlocutores de Yale, como o grande Paul de Man, e com o patrono da desconstrução, Jacques Derrida (publicadas em 1979 sob o título Desconstruction and criticism). O debate contido nas suas memórias é realmente rico, a ser lido com enorme prazer. É um texto programático e paradigmático seminal que antecipa as discussões críticas da contemporaneidade.
As visões de Bloom podem parecer autoritárias, mas na realidade são declarações de princípios de um autêntico pensador que fez da tradição literária e estética a salvaguarda de uma condição humana à beira do naufrágio. O seu evangelho secular consiste na recuperação de uma paideia estética como um arconte humano sagrado. Harold Bloom é um grande crítico literário que fez da crítica literária um verdadeiro exercício intelectual de recriação do sentido do humano diante da derrocada do mundo e do homem dentro dele.
Sigifredo Esquivel Marín, outubro de 2022
Trad. de Rodrigo Menezes