No tratado a seguir, eu empreendo experimentalmente a tentativa de estabelecer uma comparação entre dois movimentos espirituais, ou dois pontos de vista, ou dois sistemas, que aparecem muito distanciados no espaço e no tempo, e que à primeira vista parecem incomensuráveis por natureza: um deles, do mais esclarecido presente, conceitual, subtil e eminentemente “moderno” num sentido que ultrapassa o sentido cronológico da palavra; o outro, de um passado nebuloso, mitológico e tosco – estranho até ao seu próprio tempo, e nunca acolhido na respeitável sociedade de nossa tradição filosófica. Minha afirmação é que os dois possuem alguma coisa em comum entre si, e que esta alguma coisa é de tal natureza que seu estudo, tanto pela semelhança quanto pela diferença, pode levar a uma mútua e mais clara compreensão de ambos.
Quando digo “mútua” , estou me declarando por uma certa circularidade do processo. O que pretendo dizer pode ser ilustrado por minha própria experiência. Quando, há muitos anos, voltei-me para o estudo da gnose. observei que os pontos de vista, de certo modo a “ótica” que eu havia adquirido na escola de Heidegger, colocavam-me em condições de ver aspectos do pensamento gnóstico que ainda não haviam sido vistos até então. E fiquei cada vez mais impressionado com o aspecto familiar daquilo que parecia tão estranho. Olhando para trás, inclino-me a crer que foi a força de atração desta confusamente pressentida proximidade que primeiro me atraiu para o labirinto gnóstico. Quando então, após longa permanência em terras estranhas, eu retornei à minha própria terra, ao palco da filosofia contemporânea, verifiquei que o que eu havia aprendido lá fora fez-me entender melhor as plagas de onde havia partido. O haver-me ocupado amplamente com o niilismo antigo demonstrou-se – pelo menos a mim – como uma ajuda para determinar e classificar o sentido do niilismo moderno, da mesma e exata maneira como este de início me havia equipado para a descoberta de seu obscuro primo no passado distante. Ocorreu comigo que o existencialismo, que havia fornecido os meios para uma análise histórica, ficou ele próprio envolvido pelos resultados desta análise. A adequação de suas categorias para esta matéria particular impelia a uma reflexão. Elas se adaptavam como se tivessem sido feitas sob medida. Não teriam, realmente, sido feitas talvez sob medida? De início eu considerara aquela adequação simplesmente como um caso de sua pretensa validade universal, mostrando sua utilidade para explicar toda “existência” humana. Mas então surgiu em minha mente a possibilidade de que a aplicação das categorias poderia, neste caso, estar baseada, lá e cá, na espécie particular de “existência” – no que havia fornecido as categorias, e no que a elas mostrou-se tão capaz de responder.
Era a história de um adepto que se considerava dono de uma chave capaz de abrir qualquer porta. Cheguei a uma determinada porta, experimentei a chave, e eis que a chave dava na fechadura, e a porta abriu-se amplamente. A chave, então, havia conservado sua força. Só mais tarde, quando eu já havia desistido de acreditar em uma chave universal, foi que comecei a interrogar-me por que neste caso ela havia funcionado tão bem. Teria eu acertado com a chave certa na fechadura certa? Se tivesse sido este o caso, o que teria sido então que na relação de existencialismo e gnose havia feito com que a última se abrisse ao toque do primeiro? Com esta inversão da abordagem, as soluções em um terreno convertiam-se em perguntas no outro, ao passo que de início pareciam ser apenas a confirmação de uma verdade geral.
Portanto, o que havia começado como o encontro entre um método e uma matéria, terminou por conscientizar-me de que o existencialismo, que em si pretende explicar as estruturas básicas da existência humana, podendo assim servir como princípio do método, era ele próprio a filosofia de uma determinada situação histórica da existência humana, Uma situação análoga (embora, sob outro aspecto, muito diferente) havia provocado no passado uma resposta análoga. Por isso não perde em seriedade a questão colocada pelo existencialismo; mas foi alcançada uma perspectiva adequada, quando se reconheceu e se restringiu a algumas de suas visões a situação por ele refletida.
Noutras palavras, as funções interpretativas se invertem e tornam-se recíprocas – a fechadura se transforma em chave, e a chave em fechadura. A solução “existencialista” da gnose, tão bem justificada (ou na medida em que é justificada) por seu êxito hermenêutico, é um convite à sua contrapartida natural, à tentativa de uma leitura “gnóstica” do existencialismo.
JONAS, Hans, “Gnose, existencialismo e niilismo”, Princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Trad. de Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 2004.
CONTEÚDO RELACIONADO:
[…] _________, “Gnose, existencialismo e niilismo”, in: Princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Trad. de Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 2004. Disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/11/03/gnose-existencialismo-e-niilismo-hans-jonas/ […]
CurtirCurtir
[…] _________, O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Trad. de Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 2004. Excerto: “Gnose, existencialismo e niilismo”, disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/11/03/gnose-existencialismo-e-niilismo-hans-jonas/ […]
CurtirCurtir