O mundo de ontem, o mundo de hoje – Stefan ZWEIG

A bem da verdade, admito que havia algo de grandioso, arrebatador e até de sedutor nesse primeiro movimento das massas, a que dificilmente alguém escapava. E, apesar de todo o ódio e toda a aversão à guerra, eu não gostaria que faltasse na minha vida a lembrança desses primeiros dias. Como nunca antes, milhares, centenas de milhares de pessoas sentiram o que deveriam ter percebido em tempos de paz: que formavam parte de um todo. Uma cidade de dois milhões de habitantes, um país de quase cinquenta milhões sentiam nesse momento que viviam um episódio da história universal, um momento que nunca voltaria, e que cada um estava sendo conclamado a lançar o seu minúsculo eu naquela massa ardente para se purificar de todo egoísmo. O arrebatador sentimento de fraternidade engolfou nesse momento todas as diferenças de camadas sociais, línguas, classe, religião. Desconhecidos conversavam na rua, pessoas que se evitaram durante anos davam-se as mãos, por toda parte viam-se rostos animados. Cada um se sentia potencializado, não era mais o indivíduo isolado de antes, fazia parte de uma massa, era povo, e sua pessoa, normalmente insignificante, ganhara um sentido. O modesto funcionário dos correios, que em geral separava cartas sem parar de manhã até de noite, de segunda a sábado, o escrivão, o sapateiro de repente tinham em suas vidas uma oportunidade romântica: virar herói, e qualquer pessoa que usasse uniforme era festejado pelas mulheres, saudado pelos que haviam ficado para trás. Eles aceitavam o poder desconhecido que os tirava do cotidiano; até a tristeza das mães, o medo das mulheres envergonhava-se de revelar seu sentimento tão natural naquelas horas do primeiro entusiasmo. Mas talvez um outro poder, mais profundo, mais misterioso, estivesse atuando nessa ebriedade. Esse vagalhão se precipitou com tanta força e tão de repente sobre a humanidade que, cobrindo a superfície de espuma, fez subir à tona os escuros impulsos e instintos inconscientes do animal-homem – o que Freud chamou com perspicácia de “aversão à civilização”, o desejo de romper com o mundo das leis e dos parágrafos e de pôr para fora os antiquíssimos instintos sanguinários. Quem sabe essas forças ocultas também fizessem parte daquela louca ebriedade em que tudo se misturava: o prazer do sacrifício e o álcool, o desejo de aventura e a credulidade excessiva, a velha magia das bandeiras e das palavras patrióticas – essa ebriedade sinistra de milhões, que palavras mal conseguem descrever e que por um momento conferiu ao maior crime do nosso tempo um impulso violento e quase arrebatador.

ZWEIG, Stefan, O mundo de ontem. Trad. de Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.