Os sábios idealistas do mundo não suportam a palavra nascimento.
Oettinger apud Koslowski
Na gnose, a metafísica se transforma em psicopatologia e pneumatologia. Ela reverencia a chegada do pneuma no mundo como uma catástrofe de alienação; toda vida na direção cegueira da ida é, num sentido fundamental, “ofensivo” – ou seja, seu efeito separa do self. Como crítica ao poder hipnotizador do mundo, a gnose implica a primeira grande psicoterapia. Por isso, os mensageiros gnósticos se apresentam como médicos do mundo, detentores do pleno poder de falar à alma com doses de palavras evocativas de lembranças. Eles são especialistas em dizer aquilo que os indivíduos precisam ouvir para serem desipnotizados. Como lógicos, são psicagogos; como psicagogos, terapeutas; como terapeutas, teósofos. Para eles, a psicoterapia é, de imediato, teoterapia – contanto que possam ajudar o divino “em nós”, a centelha pneumática. Visto, porém, que o Deus da gnose é o Deus distante do mundo, ao qual só pode corresponder uma teologia negativa, o direcionamento teoterapêutico da alma a Deus leva diretamente a uma determinação negativa da alma. Onde, até hoje, foram realizados experimentos de psicologia filosófica, eles ainda seguem as possibilidades abertas gnosticamente da psicologia negativa. A partir de então, o centro dos ensinamentos pneumáticos da autocompreensão da “alma” é ocupado pela fala de um não conhecimento próprio lúcido. (agnosia)
A fim de compreender as valências terapêuticas da abordagem gnóstica, é recomendável lembrar a situação dos psíquicos da gnose negra. Eles são os enfermos do mundo no sentido pleno da palavra, os misfits do cosmo, que desfrutam das desvantagens do fato de terem nascido até o amargo fim. É justamente em seu meio que, muitas vezes, ocorre um efeito que poderíamos descrever como um atrofiamento da gnose até um existencialismo sombrio. A melancolia da doença do mundo desses psíquicos inclui uma centelha voluntária – poderíamos dizer: um orgulho da incurabilidade, que se manifesta numa zombaria contra todas as tendências de esclarecimento.
“Não me perdoo por ter nascido. É como se, ao insinuar-me neste mundo, tivesse profanado um mistério, traído um compromisso importante, cometido uma falta de uma gravidade inominável.” (Cioran, Do inconveniente de ter nascido)
“O deus mau é o deus mais útil que já existiu. Se não o tivéssemos à mão, para onde escoaria nossa bílis? Qualquer forma de ódio se dirige em última instância contra ele. […] Seu mérito é, a bem da verdade, inestimável: ele nos dispensa até de nossos remorsos, já que tomou a iniciativa de nossos fracassos.” (Cioran, Le mauvais démiurge)
“A instauração de um equívoco universal é a proeza mais calamitosa que teremos realizado e que nos coloca como rivais do demiurgo.” (Ibidem)
Nesse sentido, Hans Jonas está errado quando estabelece um paralelo quase direto entre o existencialismo sombrio moderno e as gnoses antigas. Estas se orientam pelo vínculo entre conhecimento e redenção. As “gnoses” sombrias modernas, por sua vez, desenvolvem apenas uma consciência do meio caminho. Seus representantes admitem que caíram no cosmo; por meio da dogmatização do caminho de ida para a escuridão, eles se separam da visão das experiências anódicas. Eles não conseguem esquecer nem o mundo nem a si mesmos, eles vivem como memória da raiva. São patéticos do “ficar preso”, vítimas teimosas da coerção ao “ter que ser” – sua centelha de autoconsciência incandesce na insistência no direito de permanecer magoado.
A pesquisa psicológica dos últimos cinquenta anos se aprofundou extraordinariamente na dinâmica de perturbações fundamentais e complexas desse tipo. Essa “profundeza” não é isenta de armadilhas epistemológicas: os resultados da pesquisa analítica de psicoses, da psicologia pré-natal e do estudo da perinatalidade psicológica não podem, por razões contidas na natureza do objeto, ser popularizados – segundo as regras do “pensamento imaginador” – eles podem ser copiados e comunicados apenas na forma de vistas externas ou Stories.

Aquilo que Gustav Hans Graber apresentou sobre a ambivalência primordial; aquilo que Stanislav Grof trouxe à luz do dia sobre a catástrofe subjetiva do nascimento; aquilo que Béla Grunberger soube dizer sobre a agressão anúbica – tudo isso possui a estrutura do conhecimento primário intransferível e só pode ser compreendido na execução do processo primário; e é justamente isso que remete ao tipo de conhecimento gnóstico.
Gnosis hodou é conhecimento do caminho – no início, isso se referia ao conhecimento gnóstico, mais tarde, ao conhecimento místico do “caminho de volta”. Um conhecimento integral do hodos inclui inclui, porém, também a anamnese da queda no mundo. Psicologias primárias modernas tiram disso consequências para as passagens iniciais e potencialmente mais terríveis do “vir ao mundo” humano.
«Desde que estou no mundo» – este desde parece-me carregado de um significado tão assustador que se torna insuportável. (Cioran, Do inconveniente de ter nascido)
Em vista desse tipo de problemas, a determinação gnóstica dupla da alma, como psique e como pneuma, pode ser extraordinariamente fértil. Dela resulta em geral a necessidade de anular o psíquico de forma pneumática; onde havia psique haverá de ser pneuma. Em especial, isso vale para as camadas catastróficas da parte da psique mais obscura. A terapêutica pneumática conduz o sujeito a ênstases pré-psíquicas, onde também as tendências de destruição do mundo e do self da vida fracassada estão anuladas. Assim, constrói-se outra memória – uma memória cujos conteúdos nos permitem viver novamente: ela guarda lembranças de um mundo “suficientemente bom”.
Pelo que há de “profundo” em nós, estamos expostos a todos os males: não há salvação enquanto conservemos a conformidade com nosso ser. Algo deve desaparecer de nossa composição e uma fonte nefasta deve secar; só há uma saída: abolir a alma, suas aspirações e seus abismos; ela envenenou nossos sonhos; é preciso extirpá-la, como também sua necessidade de “profundidade”, sua fecundidade “interior”, e suas demais aberrações. O espírito e a sensação nos bastarão; de seu concurso nascerá uma disciplina da esterilidade que nos preservará dos entusiasmos e das angústias. Que nenhum “sentimento” torne a preocupar-nos, e que a “alma” se transforme na velharia mais ridícula… (Cioran, Breviário de decomposição)
Parte da função lógica dessas transformações é um trabalho com os pronomes pessoais, especialmente com “eu” e “id”, e com preposições espaciais, especialmente com “dentro de” e “oposto a”. Psíquicos no sentido da gnose e psicóticos no sentido dos diagnósticos modernos sofrem com um distúrbio da capacidade de usar as palavras “eu” e “dentro de” corretamente no sentido estrutural profundo. Eles não sabem o que significa dizer “eu” e “dentro de” de forma boa. O pronome “eu” os ameaça com um problema de explosão, enquanto a preposição “dentro de” contém perigos de sufocamento.
“Outrora tive um ‘eu’; agora sou apenas um objeto… […] Não tornarei a dizer: “Eu sou” sem enrubescer. O despudor do alento, o escândalo da respiração estão ligados ao abuso de um verbo auxiliar…” (Cioran, Breviário de decomposição)
“Por muito tempo fiz a teoria do homem-fora-de-tudo. Eu me tornei este homem, eu agora o encarno. Minhas dúvidas deram em algo, minhas negações tomaram corpo. Vivo agora o que antes apenas imaginava viver. Encontrei-me enfim um discípulo.” (Cioran, Le mauvais démiurge)
Para os psíquicos obscuros, o espaço interno do mundo está minado pelo “eu”; e o espaço externo do mundo está obstruído pelo “dentro de”. Por isso, não conseguem encontrar tranquilidade nem em si mesmos n em no mundo. Essa impossibilidade posicional do “existir” corresponde precisamente às versões mais sombrias da catodologia gnóstica: o caminho de ida para o Dasein é uma queda num mundo de prisão. A gnose mais antiga, porém, vê uma grande promessa nessa interpretação; ensina que “existe” uma virada e um caminho de volta, basta que a alma se lembre corretamente de “si” mesma e de sua “origem”. Nessa lembrança ocorreria a ressurreição do morto que você já é.
“Estamos todos no fundo de um inferno em que cada instante é um milagre.” (Cioran Le mauvais démiurge)
“A certeza de que não existe salvação é uma forma de salvação, é mesmo a salvação. A partir daí, tanto se pode organizar a própria vida como construir uma filosofia da história. O insolúvel como solução, como única saída…” (Cioran, Do inconveniente de ter nascido)
Mas será que realmente “existem” uma virada e um processo anódico? A tentativa de responder a essa pergunta demarca o início da terapia pneumática. Evidentemente, a única possível força iniciadora da virada dentro de mim é um evento “dentro de” mim mesmo. Mas “eu” já sou o “para longe de mim mesmo”, que corresponde à minha experiência de mim mesmo no inferno existente.
Se a virada pode ocorrer apenas “dentro de” mim, a princípio, ela é impossível para mim, porque eu não posso ser o local da virada no local da virada. “Eu” e “dentro de” são incompatíveis um com o outro. Nesse sentido, seria correto dizer que a virada só pode ocorrer “espontaneamente”. Portanto, eu precisaria chegar ao ponto em que pudesse ser “espontaneamente” eu mesmo e estar dentro de mim mesmo – diferentemente do meu estado atual em que continuo o meu desesperado “para longe de mim mesmo”. Se quiser que “dentro de mim” ocorra a virada para o bem, ela só pode acontecer se eu chegar “espontaneamente” – ou seja, não através de “mim mesmo” ao ponto em que consigo estar dentro de mim. Naturalmente, só posso estar dentro de mim se eu me aguentar –se eu parar de fugir de mim mesmo, se meu ferimento por meio de ocorrências do mundo estiver transferido para o passado.
“Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. […] O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais! […] Escrever e venerar não andam juntos: quer se queira ou não, falar de Deus é olhá-lo do alto. A escrita é a desforra da criatura e sua resposta a uma Criação sabotada.” (Cioran, Exercícios de admiração)
Como, porém, adquiro um passado verdadeiro? Eu “resolvo” o ferimento transformando minha explosão em língua. Nisso consiste o possível significado anódico da negatividade excessiva. O caminho de volta dos psíquicos negros pode começar com explosões de ódio com caráter de evento. Se, na dor, ele alcançar seu fundo, surge a gnose da vida ferida. A partir d então, esta sabe o que ela não deseja absolutamente: tudo isso. Seu ódio compreensivo irrompe com o sim incondicional à negação furiosa. Com sua e minha erupção, finalmente venho a estar dentro de mim. A explosão ousada põe a alma em movimento – enquanto a covardia dos psicopatas prefere instalar-se na imobilidade ardilosa de um kitsch sombrio.
“É difícil, é impossível crer que o deus bom, o ‘Pai’, tenha se envolvido no escândalo da criação. Tudo leva a crer que não teve nela participação alguma, que ela provém de um deus sem escrúpulos, de um deus tarado. A bondade não cria: falta-lhe imaginação; ora, é preciso tê-la para fabricar um mundo, por mais fajuto que seja. É, a rigor, da mescla de bondade e de maldade que pode surgir uma obra. Ou um universo. A julgar pelo nosso, é muito mais fácil remontar a um deus suspeito que a um deus honorável.” (Cioran, Le mauvais démiurge
“Desfazer, descriar, é a única tarefa a que o homem se pode dedicar, se ele aspira, como tudo indica, a distinguir-se do Criador.” (Cioran, Do inconveniente de ter nascido)
A psique ferida, o eu composto passa a ser um “si mesmo” não composto, cuja bondade é essencialmente determinada por sua negatividade. É bom por que não “é”. Seu parceiro nessa bondade é, no pensamento gnóstico, o não Deus negativo, sobre-ente. Também este só seria bom na medida em que seria diferente de tudo que é. Se ele fosse algo, seria simplesmente o não ferido que não fere; ao mesmo tempo, não poderia ser responsabilizado por aquilo que realmente feriu você. Assim, ele se tornaria o cúmplice absoluto de seu direito à neutralização daquilo que o limitou e destruiu. Notícias dele agem sobre os recipientes apropriados como substâncias psicotrópicas – são logoi, palavras que falam de modo imediato ao self em seu “des-devir” como que “de dentro”.
Ao ouvir as notícias dessa fonte do self desprovida de mundo, ocorre em mim “espontaneamente” a virada. Assim, a gnose se transforma em terapia cognitiva primária – ela dá acesso a outra memória. O sujeito pode dizer: metagenneto, nasço de outra forma, compreendo-me de maneira nova, sim, sou novo, pois agora sei que sou o outro compreender. A terapia pneumática leva ao “livrar-se da constância imposta do ‘ser si mesmo’ em preocupações da relação com o mundo” (Hans Jonas, Gnosis und Spätantiker Geist, vol. II/1, p. 62).
Quando a virada é bem-sucedida, o sujeito encontra o espaço em que pode ser “aí”. Com isso, passa a possuir o espaço “dentro do mundo”, que lhe é de direito. Agora, pode se tornar habitante de uma realidade, pois consegue permitir que o mundo seja em si mesmo. Quando o ser em “Deus” da alma foi apreendido, torna-se possível também o “ser na alma” do mundo. A terapia gnóstica cura por meio da integridade do nada.
“Eis por que os Mistérios antigos, pretensas revelações dos segredos últimos, não nos legaram nada em matéria de conhecimento. Sem dúvida, os iniciados estavam obrigados a não transmitir nada. Uma vez afastados os véus, o que podiam descobrir senão abismos sem importância? Só há iniciação ao nada – e ao ridículo de estar vivo.” (Cioran, Breviário de decomposição)
“Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo.” (Cioran, Silogismos da amargura)
O nada é, porém, o anônimo do ser humano. Posso ser no mundo quando consigo ser em mim mesmo; “em mim mesmo” significa ser em nada; “em nada” significa em “Deus”; “em Deus” significa em você. Em você significa curiosamente: em direção a você, oposto a você em um mundo agora aberto, ao alcance de gritos, ao alcance do amor. Após a reinterpretação gnóstica do sentido do ser, os minutos se tornam preciosos. A ascensão ao céu é substituída pelo cotidiano. Este recria o convívio humano a partir do conhecimento dos caminhos dos outros.
Felizmente para nós, o tempo não esgota nossa substância. O indestrutível, o alhures, é concebível: em nós? fora de nós? Como sabê-lo? […] O remédio para nossos males é em nós mesmos que devemos buscá-lo, no princípio intemporal de nossa natureza. Se a irrealidade de tal princípio fosse demonstrada, provada, estaríamos irremediavelmente perdidos. […] Vão dizer que substituímos um fantasma por outro, que as fábulas da idade de ouro são tão válidas quanto o eterno presente com o qual sonhamos, e que o eu original, fundamento de nossas esperanças, evoca o vazio e, no final das contas, se reduz a ele? Pode ser. Mas um vazio que concede a plenitude não contém mais realidade do que a que possui a história em seu conjunto? (Cioran, História e utopia)
SLOTERDIJK, Peter, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019, pp. 93-98.
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[…] SLOTERDIJK, Peter, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019. Excerto: “A gnose como psicologia negativa”, disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/11/16/gnose-psicologia-negativa-sloterdijk/ […]
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