“Profetismo, Apocalipticismo e Gnosticismo em Cioran, ou: Como tornar-te o Herege que és” – Rodrigo MENEZES

Harold Bloom e Peter Sloterdijk coincidem em uma afirmação crucial a respeito do gnosticismo, uma intuição formulada por eles quase com as mesmas palavras e que se oferece para nós como uma valiosa pista para abordarmos o Cioran gnóstico, o gnosticismo na obra do pensador romeno.

Em Weltrevolution der Seele (Revolução Mundial da Alma, 1993), Sloterdijk atribui a Jacob Taubes, um filósofo da religião judeu, o mérito de ter vislumbrado “da forma mais íntima as leis segundo as quais o extremismo herético, seja ele antigo ou moderno, se intensifica: quando fracassa o profetismo, surge a apocalíptica; quando fracassa também a apocalíptica, surge a gnose.” (Pós-Deus, p. 80).

Em Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade (1996), Harold Bloom afirma praticamente a mesma coisa, dizendo que o gnosticismo “se levanta como um protesto contra a fé apocalíptica, mesmo quando o faz dentro de uma dessas fés, como fez sucessivamente no judaísmo, cristianismo e Islã. A religião profética torna-se apocalíptica quando a profecia falha, e a religião apocalíptica torna-se gnóstica quando o apocalipse falha, como felizmente sempre falhou e, devemos esperar, voltará a falhar” (p. 31).

Essa tripla diferenciação é crucial para entender a singularidade do fenômeno gnóstico, de que forma a gnose se distingue das fés religiosas hegemônicas nos sucessivos momentos históricos, e horizontes culturais, nos quais tende a irromper o espírito da heresia (não só no cristianismo, como observa Bloom, mas em todas as religiões monoteístas). Ela também serve de esquema genealógico-interpretativo para compreender a valência gnóstica do pensamento de Cioran, podendo ser aplicada para discernir as mesmas 3 fases no âmbito de sua vida e obra, em seu itinerário espiritual no sentido de tornar-se o Herege que é.

1. Profetismo (1927-1940)

Por mais blasfemos e escandalosos que sejam seus escritos de juventude, como Lágrimas e Santos (1936), Cioran está longe de ser o Herege Gnóstico que se tornará, enquanto ainda se encontra em solo nativo, na pátria romena, imerso em sua atmosfera cultural e espiritual. Filho de um sacerdote cristão ortodoxo, que depositava no filho altas expectativas religiosas, o jovem Cioran verdadeiramente desejou ter a fé cristã, crer em Deus, e poder pertencer à comunidade religiosa dos seus compatriotas (como o professor Nae Ionescu e o amigo Mircea Eliade). Mas a Dúvida e a Negação sempre prevaleceram para ele, no tocante à vida do espírito. O filósofo da insônia não apenas conheceu a fundo a vontade de crer, em seus anos romenos, ao ponto do desespero, como acreditou que poderia passar por uma conversão súbita e, assim, “tornar-se santo”, receber uma revelação como uma espécie de chamado à vida religiosa (ao modo de um Aliocha). Seria um “santo salvador da pátria”, o “profeta” de uma nova Romênia, doravante “transfigurada”.

Desde o ingresso na Universidade de Bucareste (onde se tornaria um dos representantes da Jovem Geração de 27, participando também do grupo Criterion, liderado por Eliade), passando pelos ensaios e panfletos políticos anteriores a Nos cumes do desespero (1934), e especialmente por Transfiguração da Romênia (1936), até os últimos escritos em romeno quando já residia na França (especialmente Sobre a França, que marca uma virada no seu pensamento e uma ruptura com o nacionalismo, o profetismo e o messianismo de juventude). O Livro das ilusões (1936) abunda em devaneios proféticos. Aí Cioran se indaga “por que as doenças não alimentariam nossa visão profética? Por que não poderíamos convertê-las em molas de nossa missão e de nosso destino? […] Não quereis um mundo onde da dor sorveríeis felicidade; da negação, êxtases; e do desespero, profecias?” Neste livro há toda uma seção sobre “A Profecia e o Drama do Tempo”:

O valor do ethos profético consiste na vontade de aniquilar-se a si mesmo por meio de uma existência intensa, como se fosse um êxtase. A base de qualquer profecia reside em uma concepção dramática da vida no tempo. […] O sentimento normal e corrente da temporalidade só pode levar a esperar a vida, a uma cômoda concepção que se compraz nas surpresas que oferecem os diversos momentos. Os homens esperam tudo do tempo, que seus ideais se cumpram no futuro, que suas esperanças se tornem realidade e que a morte chegue “a seu tempo”. Contra essa atitude, nosso frenesi profético não tem que conhecer limites.

CIORAN, “A profecia e o drama do tempo”, O Livro das Ilusões (1936)

Cumpre notar que O Livro das ilusões foi publicado no mesmo ano que Transfiguração da Romênia, o libelo político que marca o passado legionário (extremista, fascista) de Cioran, e que, uma vez exumado, após permanecer incógnito por décadas no mundo ocidental, traria à tona, para o seu pesar, a vergonha e a culpa de um erro inominável. Por causa desse livro, que Cioran se arrependeria amargamente de ter escrito, e ainda mais de ter publicado, ele viveu perseguido pelos fantasmas de seu “passado infame”, nas palavras de Petreu, tendo que refutar e descontruir continuamente, sempre do zero a cada nova ocasião, as pechas de reacionário, fascista e (sobretudo) antissemita, quando ele mesmo já não se reconhecia em seu antigo eu (romeno), tendo abjurado e renegado suas antigas crenças, esperanças e ideais, até a sua própria identidade, doravante determinado a ser o mais herético dos hereges, em franca oposição ao nacionalismo ortodoxo de sua juventude legionária. Sonhando com um imperialismo messiânico do povo romeno, em Transfiguração da Romênia, Cioran escreve: “Nenhum povo alcançou a universalidade unicamente pela força do espírito e nenhum se impôs sobre o mundo sem um processo que mobilizasse um conjunto de meios em que a bestialidade e a profecia caminhassem juntas.” (Schimbarea la față a României)

2. Apocalipticismo (1940-1960)

O profetismo de Cioran estava fadado ao fracasso, à decepção e à desilusão, que são, por assim dizer, a matéria-prima da lucidez. Por uma questão de temperamento, por sua natureza mesma (temerária, titânica, trágica), o jovem intelectual e aspirante a “profeta”, em sua ambição de ser um “salvador da pátria”, o santo-herói de uma “Transfiguração da Romênia”, estava condenado a fracassar nessa missão e, fracassando, a experimentar a mais profunda e amarga desilusão, posto que resultava não só de elevadíssimas expectativas depositadas alhures, em contingências que não estão ao alcance de ninguém controlar, mas sobretudo em si mesmo. A decepção era infalível.

Segundo os comentários de Sloterdijk e Bloom, o apocalipticismo entra em cena quando o profetismo falha ou tarda a realizar-se, assim como o gnosticismo entra em cena quando as promessas (ou ameaças) apocalípticas falham ou tardam a realizar-se, como felizmente aconteceu até hoje e, tudo leva a crer, continuará acontecendo. Neste sentido, a primeira grande expressão da fase “apocalíptica” de Cioran, já não profética, mas ainda não plenamente gnóstica, coincide com seu livro de estreia em língua francesa, o Breviário de decomposição. A figura do “Antiprofeta”, muito embora se insurja contra o profetismo de outrora (sendo Cioran o “antiprofeta” e o “ex-profeta”), não é ainda eminentemente gnóstico. Além disso, sem dúvida encontraremos uma ou outra ideia ou imagem gnóstica no Breviário (se não também ecos do profetismo romeno), mas, no conjunto sinóptico da obra, o gnosticismo do Breviário (e dos livros adjacentes, antes e depois dele) não é nada comparado com o que virá em livros como Le mauvais démiurge (1969), Do inconveniente de ter nascido (1973), Écartèlelement (1979) e quase todos os que se seguirão (não apenas no quesito quantitativo, mas também pela expressão cada vez mais explícita e ostensiva das referências gnósticas).

Já sem coincidir com a ânsia profética de sua juventude legionária, e sem ter alcançado ainda o ápice de sua descristianização, de sua autotransformação em direção à Heresia, pode-se dizer que, neste ciclo inaugurado pelo Breviário e fechado, digamos, em História e Utopia (de 1960, livro que já possui, aliás, importantíssimas proposições de cunho gnóstico), Cioran se encontra em sua fase “apocalíptica”, que é também a mais niilista e fatalista. É como se, em face da desilusão profética recente, e incapaz de superá-la plenamente, Cioran desejasse (e até conspirasse a favor de) um “apocalipse” que fosse capaz de por um fim à marcha dos tempos e, afinal, extinguir o universo tal como nós o conhecemos. É um autor em vias de maturação intelectual, que tem viva no espírito a memória da febre e do desespero, ainda não no ponto mais elevado de sua reivindicada lucidez, e que não pôde ainda tirar todas as consequências práticas de suas negações teóricas (o que é especialmente verdadeiro no tocante ao seu diálogo, ou monólogo, com Deus).

História e utopia (1960) é um livro no limiar entre o apocalipticismo e a gnose, contrapondo à história, com suas convulsões e monstruosidades, o eleatismo de um absoluto atemporal. Algumas proposições cruciais deste livro, na transição entre o apocalipticismo raivoso da fase intermediária e a lucidez gnóstica da última fase: “O indestrutível, o alhures, é concebível: em nós? fora de nós? Como sabê-lo? No ponto em que as coisas se encontram, só merecem interesse as questões de estratégia e de metafísica, aquelas que nos fixam na história e as que nos afastam dela: a atualidade e o absoluto, os jornais e os Evangelhos…”

Ademais, é em História e utopia que começa a despontar com uma veemência tipicamente gnóstica o acosmismo de Cioran, a dualidade antropológica e ontológica que possibilita a sentença condenatória, definitiva e irreversível, da História em bloco (inútil e infrutífera), e, concomitantemente a essa negação, a afirmação (inédita até então) da realidade efetiva de um “princípio intemporal de nossa natureza” (outro modo de dizer: imortalidade). A história, para Cioran, é o reino da má repetição, a duração de uma queda, desgaste inútil de energia e sacrifício gratuito de vidas. “A história, espaço onde realizamos o contrário de nossas aspirações, onde as desfiguramos sem cessar, não é, evidentemente, de essência angélica. Ao considerá-la, só concebemos um desejo: promover a agrura à dignidade de uma gnose.”

O que importa, a partir daí, a história! Ela não é o fundamento do ser, mas sua ausência, o não de toda coisa, a ruptura do vivente consigo mesmo; não sendo constituídos pela mesma substância que ela, nos recusamos a cooperar em suas convulsões. Pode nos esmagar à vontade, só atingirá nossas aparências e nossas impurezas, esses restos de tempo que ainda arrastamos, símbolos de fracasso, marcas de escravidão. […] O remédio para nossos males é em nós mesmos que devemos buscá-lo, no princípio intemporal de nossa natureza. Se a irrealidade de tal princípio fosse demonstrada, provada, estaríamos irremediavelmente perdidos. Que demonstração, que prova contudo poderiam prevalecer contra a convicção íntima, apaixonada, de que uma parte de nós escapa à duração, contra a irrupção desses instantes em que Deus é supérfluo ante uma claridade surgida subitamente de nossos confins, beatitude que nos projeta para longe de nós mesmos, comoção exterior ao universo? E essa comoção, mesmo que só a tivéssemos sentido uma vez, bastaria para nos reconciliar com nossas vergonhas e com nossas misérias, das quais ela é sem dúvida a recompensa. É como se o tempo em sua totalidade tivesse vindo nos visitar, uma última vez, antes de desaparecer… É inútil remontar depois ao antigo paraíso ou correr em direção ao futuro: um é inacessível; o outro, irrealizável. O que importa, ao contrário, é interiorizar a nostalgia ou a espera, necessariamente frustradas quando se voltam para o exterior, e obrigá-las a descobrir ou a criar em nós a felicidade da qual, respectivamente, sentimos nostalgia ou esperança. Só há paraíso no mais profundo de nosso ser, e como que no eu do eu; ainda é preciso, para encontrá-lo aí, ter recorrido a todos os paraísos, desaparecidos e possíveis, tê-los amado e detestado com a rudeza do fanatismo, tê-los escrutado e rejeitado depois com a competência da decepção.

CIORAN, “A idade de ouro”, História e Utopia (1960)

Eis a expressão viva e poética do momento em que Cioran experimenta (ou apenas vislumbra) isso que chamaremos não “salvação” (le salut em francês), mas délivrance, “libertação” ou “redenção”, o Adeus pneumático (em espírito) à história, ao mundo, à existência e a si próprio (enquanto ilusão de uma identidade fixa e permanente ao longo do tempo). É a conclusão salutar (e paradoxal) da lucidez extrema, esse “último grau da consciência”, que dá a Cioran o sentimento do indestrutível, a convicção inaudita, íntima e apaixonada de que “uma parte de nós escapa à duração”, a sensação beatífica de ter “esgotado o universo e sobrevivido a ele”, a “irrupção desses instantes em que Deus é supérfluo ante uma claridade surgida subitamente de nossos confins, beatitude que nos projeta para longe de nós mesmos, comoção exterior ao universo”. Por fim, cumpre notar que ele mesmo alude às duas fases anteriores, a profética (implícita na “rudeza do fanatismo”) e a apocalíptica (implícita na rejeição do fanatismo profético e na “competência da decepção”).

3. Gnosticismo (1964-1987)

Pode-se divisar na sequência de História e Utopia, La Chute dans le temps (1964) e Le mauvais démiurge (1969) uma trilogia gnóstica no conjunto da obra de Cioran. Não por acaso, ela se encontra no âmago da transição entre as fases apocalíptica e gnóstica. Antes de chegar a vez de Le mauvais démiurge, o livro gnóstico de Cioran por excelência, La Chute dans le temps representa um intermezzo indispensável entre a fase apocalíptica, que se encerra com a confissão de acosmismo em História e utopia, e a fase gnóstica, quando Cioran se torna cada vez mais acentuadamente o Herético gnóstico que é. O gnosticismo cioraniano não se reduz a um único livro, Le mauvais démiurge, no qual estaria inteiramente concentrado, de modo que, sem este livro, nem sequer se cogitaria falar de heresia gnóstica a propósito de Cioran. Muito pelo contrário: mesmo subtraindo este livro do conjunto da obra, todo o restante conteria ainda gnosticismo de sobra, toda uma pletora (espalhada em aforismos, ensaios) de ideias, imagens, alegorias e motivos gnósticos.

Do inconveniente de ter nascido (1973), livro de aforismos breves como Silogismos da amargura, contém muitos aforismos de temática gnóstica, como aquele no qual Cioran se orgulha de ter vindo da mesma região que Trácios e Bogomilos (seita gnóstica balcânica), porque uns lamentavam o nascimento e os outros, para inocentar a Deus, acusavam Satã pela infâmia da Criação.

Écartèlement (1979), o livro seguinte, não fica atrás no quesito heresia gnóstica. Este livro (cujo título se traduz por “Esquartejamento”) começa com a citação de uma lenda gnóstica segundo a qual ter-se-ia travado no céu uma batalha entre os partidários do Arcanjo Miguel e uma legião de demônios, em que parte dos anjos, indecisos, se limitaram a observar, sem tomar partido. Moral da história: foram lançados, como castigo, para viver no mundo e na história, para que aprendessem a tomar partido em vez de pretender neutralidade quando nada leva a ela.

A lição de moral é uma conclusão paradoxal que concilia conhecimento gnóstico com dúvida cética, em vez de opô-los, como se fossem incompatíveis (um pré-conceito amiúde nutrido pelos especialistas tanto da gnose quanto do ceticismo). A existência histórica e intramundana só é praticável à medida de nossa capacidade e disposição ao parti-pris, a fazer escolhas e tomar decisões, e isso muito aquém da esfera política e ideológica, pura e simplesmente no âmbito da vida cotidiana. Assim, o ceticismo (ao menos na concepção de Cioran) não é necessariamente compatível com a vida, nem benéfico para ela. A estrutura do mundo e a forma como está organizado, a dinâmica da história e o modo como se desdobra no devir, nada disso incita à indiferença ou à suspensão do juízo, muito pelo contrário: o mundo e a história, avessos a todo tipo de neutralidade ou impassibilidade, constituem o medium próprio (o tempo-espaço) do dogmatismo, dessa vontade de crer que é o germe do fanatismo; a necessidade de possuir uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a tara dogmática, a paixão por um dogma, qualquer um, a tentação totalitária de impô-lo (a sua verdade) sobre os demais…

Em sua diatribe contra Joseph de Maistre (na qual emprega, para rivalizar com o dogmatismo ultracatólico do autor francês, um contradogmatismo ultragnóstico), Cioran afirma que “é absurdo imaginar que a verdade consiste na opção, quando toda tomada de posição equivale a um desprezo pela verdade. Para nossa infelicidade, a escolha, a tomada de posição é uma fatalidade a que ninguém escapa.” Esta conclusão pós-apocalíptica, de um ceticismo gnóstico, é contemporânea de Écartèlement (1979). O primeiro capítulo, “As duas verdades”, entrelaça a referida lenda gnóstica com referências gnosiológicas e ascéticas extraídas do budismo. “As duas verdades”, no caso, equivalem a samvriti, “verdade de erro”, “verdade ilusória”, e paramartha, “verdade verdadeira”, “verdade última”. Esse alexandrinismo, a combinação sincrética de heresia gnóstica e ascética budista, manifesta no livro de 1979, é igualmente uma característica de Le mauvais démiurge (10 anos antes), livro que combina ensaios de heresia (filosofia e teologia) gnóstica com meditações sobre a libertação (délivrance) pela vacuidade em chave budista.

A julgar pela teoria budista das duas verdades, o apocalipticismo recai (como o profetismo) na categoria de samvriti: superstição, ilusão, vã esperança, equívoco da inteligência, obnubilada pelo desejo. E paramartha? É possível formular qualquer juízo a seu respeito?

Nós não temos escolha senão entre verdades irrespiráveis e superstições salutares. Só as verdades que não ajudam a viver merecem o nome de verdade. Superiores às exigências do vivente, não condescendem a ser nossas cúmplices. São verdades ‘inumanas’, verdades de vertigem, rejeitadas porque ninguém pode passar sem apoios disfarçados de slogans ou de deuses.

CIORAN, “Les deux vérités”, Écartèlement (1979)

O longo processo de “descristianização” iniciado por Cioran na Romênia, a autotransformação no sentido de tornar-se o Herege que é, terminará por conduzi-lo não somente à gnose, mas também ao budismo. São duas predileções que despontam juntas em sua maturidade, na França. Em Le mauvais démiurge e em Écartèlement, Cioran deixa transparecer, com efeito, a intenção de aproximá-los e amalgamá-los intuitivamente, tanto quanto possível, numa espécie de alexandrinismo espiritual, embora nunca chegue a efetuar esta síntese (ao menos não de forma sistemática e conclusiva). A postulação de uma afinidade eletiva entre gnose e budismo, o que fica apenas sugerido e reticente na obra de Cioran, é tudo menos um disparate, do ponto de vista fenomenológico e historiográfico. Teólogos, filósofos e historiadores da religião, Edward Conze em primeiro lugar, têm publicado volumosos estudos, na linha de religião e mística comparada, sobre os pontos de contato e as conexões históricas profundas entre a gnose ocidental e o imperativo do “despertar” no contexto do Oriente budista.

Grande parte da dificuldade em compreender Cioran como um pensador (e místico) gnóstico provém de generalizações, reducionismos e estereótipos em torno do que significa gnose, gnóstico, gnosticismo. Se temos em mente a imagem de um heresiarca como fundador de religião ou líder de seita, munido de um saber esotérico e elitista reservado a uns poucos “eleitos”, realmente fica difícil levar adiante qualquer exegese gnóstica de Cioran. Mas se levarmos em conta que há tantas gnoses quanto gnósticos, e que uma gnose não é (e nem poderia ser) idêntica a qualquer outra, o mesmo valendo para as concepções da salvação, abre-se então, em nosso horizonte hermenêutico, uma variedade de experiências e mentalidades religiosas de tipo gnóstico, dentre as quais podemos discernir as de Cioran.

A gnose cioraniana não é teológica nem teotrópica, no que difere dos sistemas gnósticos clássicos, aproximando-se neste aspecto da ascética budista. Ela não se funda na crença em Deus (nem mesmo no “Deus exilado”, absconditus et otiosus, dos gnósticos), não concebe qualquer realidade divina transcendente como “destino” de uma alma imortal. Deus, no itinerário espiritual de Cioran, não passa de uma etapa intermediária, um entreposto a meio-caminho entre a existência no “inferno deste mundo” e essa “comoção exterior ao universo”, evocada em História e utopia (sendo essa comoção a recompensa pela “nefasta lucidez”). A confissão de beatitude, nas linhas finais de “A idade de ouro”, é enfática no sentido de declarar, ante uma “claridade surgida subitamente de nossos confins”, a superfluidade de todos os deuses… A gnose cioraniana não é o saber místico de uma transcendência divina e separada deste mundo, à qual a alma deve retornar, como quem retorna ao lar espiritual. É “mística sem absoluto“, o “êxtase da existência pura, das raízes imanentes da existência”, uma visão extática (e mortificadora) que “destrama os véus superficiais para facilitar o acesso ao âmago do mundo”, como se lê em Nos cumes do desespero (“Êxtase”, p. 51).

Êxtase como exaltação na imanência, como iluminação neste mundo, como visão da loucura deste mundo – eis um substrato para uma metafísica – válida até mesmo para os momentos derradeiros, para os momentos finais. O verdadeiro êxtase é perigoso. Ele se assemelha à última fase de iniciação aos mistérios egípcios, em que, em vez do conhecimento explícito e definitivo, dizia-se: “Osíris é uma divindade negra”, ou seja, o absoluto permanece incognoscível em si. Não vejo no êxtase das raízes últimas da existência outra coisa senão uma forma de loucura, não de conhecimento. Não podemos ter essa experiência extática a não ser na solidão, quando temos a impressão de planar acima deste mundo.

CIORAN, “Êxtase”, Nos cumes do desespero (1934)

Paradoxalmente, o “acesso ao âmago do mundo” é o mesmo caminho que leva para “fora do mundo”, culminando na apoteose de uma “comoção exterior ao universo”. Essa fenomenologia do êxtase (a descrição da experiência mística como “visão da loucura deste mundo”, não como a revelação da presença de Deus e sua infalível providência) coincide com a lucidez do Herege gnóstico em sua fase tardia, pós-profética e pós-apocalíptica (lucidez à qual serão incorporados, numa espécie de alexandrinismo extemporâneo, elementos do budismo). “Êxtase” (a experiência extática descrita sob este título, em Nos cumes do desespero) é a gnose de Cioran, o seu conhecimento extático, na solidão da experiência interior (Bataille). A sua não é uma mística ao modo cristão (profética ou apocalíptica), que se traduza na anunciação de uma nova era messiânica ou na espera de um Juízo Final. O apocalipse gnóstico não é um juízo final por vir, inatual no presente; os apocalipses se sucedem na sua alma ao ritmo dos dias e das horas, assim como “a vida se cria no delírio e se desfaz no tédio” (Breviário). A mística cioraniana é uma mística gnóstica da lucidez como despertar em um “inferno no qual cada instante é um milagre” (Le mauvais démiurge).

Trata-se de uma concepção ateológica da transcendência na imanência, o “êxtase das raízes últimas da existência”, visão extática que não revela nenhuma presença divina providencial e redentora, apenas um demonismo vital, idiota e ilusório, fator de dinamismo e da “loucura deste mundo”. Essa visão — repisada, aprofundada e esgotada em sua própria “loucura”, levada ao paroxismo do desespero e do desgosto — transmuta-se, com o tempo, na lucidez como o “último grau da consciência”, “culminação do processo de ruptura entre o espírito e o mundo” (La Chute dans le temps), a condição atópica e acósmica do “Homem-fora-de-tudo” (Le mauvais démiurge); a lucidez como “centelha de luz” em meio às trevas, clarividência indestrutível que dá ao indivíduo a sensação de ter “esgotado o universo e sobrevivido a ele” (note-se a semelhança com “planar acima deste mundo”).

A lucidez descrita por Cioran é o estado de quem despertou no “inferno deste mundo” e fez sua travessia, de quem teve o inconveniente da “iluminação neste mundo”, em que “nada está em seu lugar, começando pelo próprio mundo” (Breviário). Quando a Gnose é secularizada, esvaziada de alcance metafísico e destituída de toda eficácia soteriológica, atrofiando-se em lucidez intramundana, sem nenhuma transcendência, torna-se, na melhor das hipóteses, psicoterapia, princípio terapêutico, fator de cura da alma doente, de desprendimento desse “maldito eu” e desse “maldito mundo”, uma ars moriendi “válida até mesmo para os momentos derradeiros, para os momentos finais” (Nos cumes do desespero).

È aqui que gnose e budismo se entrelaçam na filosofia da redenção cioraniana. Cioran renegou a ortodoxia cristã do seu país para tornar-se pouco a pouco o Herege que é, o maior herege que a história já conheceu, não apenas em religião, como em filosofia e em tudo. Cioran é herético até para si, contra si mesmo. Se, a julgar pelo conjunto da obra, a sua (a)cosmovisão é gnóstica (dualista, pessimista, niilista, acósmica), a sua concepção da libertação é eminentemente budista (mediante o vazio). Ou então, para fazer justiça à contraparte ocidental do pensamento de Cioran, pode-se dizer que todo o seu pensamento (filosófico, religioso, místico) é um amálgama de catodologia (teoria da queda) gnóstica e cenologia budista (de kenos, “vazio”).

A “salvação” (ou, mais precisamente, a “libertação”, délivrance) é, para Cioran, uma urgência existencial, o problema capital (não puramente teórico) que eclipsa todos os outros: “Vencer este mundo, sair dele sem abandoná-lo. Nem paraíso, nem inferno; vitória sobre este mundo, sobre todos os mundos” (Cahiers) Nada mais, nada menos: eis toda a délivrance almejada.

Para concluir, não poderíamos deixar de mencionar um texto emblemático do pensamento antiprofético e pós-apocalíptico de Cioran, em sua fase tardia (gnóstica): “Urgência do Pior”. Apesar do que o título poderia sugerir (um desejo apocalíptico qualquer), este ensaio de Écartèlement (1979) tem o mérito de desmascarar o apocalipticismo, esmiuçando o mecanismo das escatologias no qual ele se funda, para concluir — no espírito da gnose antiprofética e pós-apocalíptica — que “de nada serve inventar um ‘intermédio consolador’, esse procedimento fastidioso das escatologias”.

Não é que não tenhamos o direito de imaginar essa nova humanidade, transfigurada ao sair do horrível; mas quem nos garante que, alcançado seu objetivo, ela não recairia nas misérias da antiga? […] Renunciemos, portanto, às profecias, hipóteses frenéticas, cessemos de nos deixar enganar pela imagem de um futuro distante e improvável, atenhamo-nos a nossas certezas, a nossos abismos indubitáveis.

CIORAN, “Urgência do pior”, Écartèlement, in Revista (n.t.) Nota do Tradutor, ano 5, no 9, novembro de 2014. [PDF]

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