Gnosis é uma das palavras gregas para dizer “conhecimento”, mas não a única (há também episteme). Encontramo-la na máxima délfica que se tornaria o lema socrático por excelência: “Conhece-te a ti mesmo”, Gnôthi seauton em grego. A gnose, na acepção específica que nos interessa aqui (religião e heresia gnóstica, gnose helenística, gnosticismo cristão), tem em comum com o Gnôthi seauton socrático o fato de ser um conhecimento de si (seauton) na experiência interior, uma autoinquirição por aproximação e familiarização, seja em relação à própria alma, seja em relação a um interlocutor, amigo ou ser amado. Mas as analogias param por aí. O radicalismo da heresia gnóstica redescreverá o Cosmo dos gregos, em sua perfeita harmonia racional, como uma prisão “acósmica”.
A VIRTUOSA IDENTIDADE DE SÓCRATES
E A “DIFERENÇA GNÓSTICA”
Peter Sloterdijk

O conhecimento gnóstico seria, portanto, nada menos do que a autopenetração do hóspede do mundo, do pneuma existente; de sua lembrada iniciadora de sua “origem” surge a história da alma, narrada por ela mesma — e para ela mesma. Na natureza desse tipo de narrativas da alma cognitiva sobre si e para si mesma encontramos o vínculo tipicamente gnóstico entre imaginação e rigor; este resulta do reconhecimento da seriedade da situação pela alma — de seu exílio “no mundo”; a imaginação cria asas diante da liberdade nova de um “não ser deste mundo” autoconsciente.
Com a distinção entre “no mundo” e “do mundo”, o gênio lógico de um pensamento gnóstico abre – já no nível mitológico – seu caminho. O tamanho da engenhosidade da nova distinção — poderíamos até chamá-la a diferença gnóstica — se revela quando consideramos as operações que ela viabiliza. Enquanto estar “no mundo” e ser “do mundo” representavam um complexo homogêneo, as negações totais do ente eram lógica e linguisticamente inviáveis. O mundo, como epítome do ente, é, a princípio, tão inegável quanto o “estar no mundo”. O fato do mundo sempre se antecipa a qualquer negação. A tese de que algo é não pode ser enfraquecida por qualquer antítese. Mas a partir do momento em que a diferença gnóstica entre “no mundo” e “do mundo” é estabelecida, abre-se um campo de negabilidades do mais alto nível de generalizações. Este é imediatamente invadido por enormes energias mitológicas e teológicas. Agora, os diques simbólicos, que represavam a negatividade psíquica, podem ser rompidos. A diferença gnóstica gera uma nova língua da insatisfação com o mundo – ela solta a língua do espírito mudo da grande negação. Quando a alma pode se atribuir uma esfera sem mundo, ela adquire, a partir do lugar inegável do “no mundo”, a possibilidade de negar tudo que é “do mundo”.
Nessa visão, a irrupção de formas de pensamento gnóstico se impõe sobretudo na história do desdobramento da negatividade. Esta, porém, não é meramente uma questão de lógica. Dela depende o peso de autointerpretações mais elevadas da “existência” humana; sim, a própria palavra “existência” não teria qualquer significado para nós sem a revolução das relações de negação no espaço do pensamento gnóstico e cristão primitivo. Por meio da descoberta gnóstica de uma possibilidade de negação total — não “do mundo em si”, mas daquilo que é “do mundo” — surge uma “dimensão” religiosa e filosoficamente fértil da distância ao mundo: ela é o lar — que o leitor me perdoe a expressão — de espíritos críticos desde João Evangelista até Heidegger, desde Simão o Mago até C. G. Jung, desde Basílides até Adorno.
Apenas agora podemos perguntar pelas “origens” da gnose na história da religião e pelas condições psico-históricas de sua emergência. Qual, então, é o suposto anuviamento dos sentimentos de vida naquela “era do medo” da Antiguidade tardia? Por que surgiram aqueles boatos da alegre piedade cosmológica helênica que, de repente, teria se transformado em um desespero gnóstico e cristão primitivo? Como a afirmação pôde se transformar em negação, a maravilha em desprezo temeroso? […] Apenas desde que a alma se compreende como uma entidade contraposta ao mundo — mais exatamente, como uma entidade cercada de mundo, mas que não pode ser remetida a ele — o “mundo como superobjeto pode ser afastado como um todo. O anticosmismo gnóstico é primeiramente a consequência de uma conquista gramatical: na expressão “este mundo” do gnosticismo e do cristianismo primitivo, a novidade lógica se manifesta abertamente. “Mundo” se transforma em objeto de uma deixis universal – de repente, é possível apontar, pelo menos verbalmente, para ele com o dedo: Olhe para ele, para “este” mundo. A partir de agora, o que ainda poderá surpreendê-lo? A gnose se desenvolve como o desdobramento sistemático desse efeito: ela articula uma mudança estrutural da maravilha – do filosofar para o pavor, do pavor para a paródia. Ela vive de sua distância virtual do todo obscurecido, do qual não existência distância. […]
Tertuliano está certo: os hereges são criados na escola da pergunta Unde malum. Aquele que busca a origem do mal já está, do ponto de vista ortodoxo, a caminho de passar para o lado da maldade; o crime de lesa-majestade de Deus se aproxima perigosamente na reflexão sobre de onde, ou melhor de quem provém o mal. Aqui, porém, se faz valer o temperamento gnóstico. Predisposto para a gnose é aquele a quem, em questão de verdade, importa mais ser esperto do que piedoso. Faz parte da esperteza da gnose poder ter raiva de um criador mau: uma pessoa de temperamento gnóstico sabe ir ao encontro de um demiurgo confuso com a frieza agraciada daquele que reconhece a obra cósmica segundo um fascínio apenas temporário. Isso explica a simpatia dos hereges pelas serpentes espertas, pelos anjos rebeldes e pelos paradoxos luciféricos. Quando a vida atormentada no cosmo miserável não estiver afetada também na fonte de seu orgulho — o direito de nascença ao sucesso —, ela se rebelará contra a lástima de sua dependência de redenção. A alma gnóstica não quer saber da charis, que é oferecida como perdão a um criminoso. O que lhe dá asas è a lembrança carismática de um direito pré-primordial à perfeição. “Tudo que chamarão de ‘graça’ tem sua ‘razão suficiente’ no fracasso do mundo” (H. Blumenberg, Matthäuspassion).
SLOTERDIJK, Peter, “A verdadeira heresia: a gnose. Sobre a religião mundial da ausência de mundo”, in: Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis, Vozes, 2019, p. 74-76, 81-82.
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