Javé, desde Filo de Alexandria até o presente, tem sido continuamente alegorizado, mas apresenta uma tenacidade sublime, e não pode ser despojado das características absolutamente humanas de sua personalidade e de seu caráter. Supondo-se que Javé tenha optado pelo exílio, ou por se ocultar do aqui e agora, ou que talvez seja culpado de deserção, é possível compreender por que Deuses teológicos o substituíram. […] Minha cultura é judaica, mas não faço parte do judaísmo normativo; definitivamente, não acredito na Aliança. Aqueles que acreditam, e aqueles que aceitam a submissão que é o islamismo, afirmam que Deus é Uno e que Jesus não é Deus, conquanto o islamismo considere Jesus um predecessor profético do último mensageiro de Alá: Maomé. O monoteísmo de judeus e muçulmanos é tão severo quanto perene.
Mas qual seria, precisamente, a importância do monoteísmo? Goethe, grande ironista, observou: “Enquanto estudantes da natureza, somos panteístas; como poetas, politeístas; enquanto seres morais, monoteístas.” Nem mesmo Freud, em nada teísta, foi capaz de evitar a noção de que o monoteísmo constitui um avanço moral, em relação ao politeísmo. Freud foi sempre um judeu ferrenho, embora ateu; mas por que será que a obra de sua autoria intitulada Moisés e o Monoteísmo admite, de imediato, que o distanciamento do politeísmo implica um devido “progresso em espiritualidade”? Por que “a ideia de um Deus mais augusto” será mais simpática à psicanálise do que os deuses confusos do Egito, ou os deuses irados dos canaanitas? […]
Toda religião, para Freud, reduz-se ao desejo pelo pai, uma ambivalência edipiana que faz de O Futuro de uma Ilusão o livro mais fraco de Freud, pois baseia-se em uma leitura equivocada de Hamlet, que tem afinidades com Montaigne e não com Cristo. A identificação de Freud com Moisés contribui para tornar Moisés e o Monoteísmo um dos mais marcantes entre os escritos extraordinários do pensador austríaco, em que Javé, o Deus guerreiro, é civilizado por meio de um remorso judaico, de vez que os próprios judeus matam Moisés, evento imaginado por Freud. Essa condição civilizada, com todo o seu desconforto cultural, é o que Freud quer dizer com “monoteísmo”, o que configura uma interpretação surpreendente. Tal “monoteísmo”, na verdade, é repressão que estabelece uma civilização benigna, ao passo que o politeísmo é visto como um retorno ao estado de natureza hobbesiano, em que a vida é algo detestável, bruto e breve. As estranhas transposições freudianas procedem porque nos conduzem de volta ao Javé segundo “J” – a Autora original do que é mais marcante no que chamamos hoje de Gênesis, Êxodo e Números –, que concede a bênção de “mais vida, em um tempo ilimitado”.
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Javé foi e ainda é a personificação mais misteriosa de Deus até hoje ensaiada pela humanidade; no entanto, ele iniciou a carreira como monarca guerreiro do povo a que chamamos de Israel. A despeito de encontrarmos Javé cedo ou tarde na vida, confrontamos uma personalidade exuberante e um caráter tão complexo que decifrá-lo é impossível. Refiro-me apenas ao Javé da Bíblia Hebraica, e não ao Deus daquela obra inteiramente revista, a Bíblia Cristã, com o seu Antigo Testamento e gratificante Novo Testamento. O historicismo, seja à antiga ou renovado, parece incapaz de confrontar a incompatibilidade total entre Javé e Jesus Cristo. […] Nada no cristianismo teológico é para mim tão difícil de apreender quanto a noção de Jesus Cristo enquanto um Deus que morre e revive. O sistema que compreende a Encarnação, o Perdão dos Pecados e a Ressurreição põe por terra a Tanak – acrônimo que denomina as três partes que perfazem a Bíblia hebraica: a Torá (os cinco livros de Moisés), os Profetas e os Escritos – quanto a tradição oral judaica. Posso entender um Javé oculto, desertor, em exílio voluntário, mas o suicídio de Javé é algo que está além do hebraísmo.
Eu poderia levantar objeções a mim mesmo, argumentando que Javé, não raro ultrajante, mas também me deixa perplexo, e que Jesus Cristo é um triunfo de imaginação comparável a Javé, ainda que de maneira diversa. Estou sempre a oscilar entre o agnosticismo e a mística, mas a minha infância judaica ortodoxa perdura em mim na forma da reverência a Javé. Nenhuma outra representação de Deus de que tenho conhecimento se aproxima do Javé paradoxal conforme descrito pela Autora “J”. Talvez eu devesse omitir da sentença anterior as palavras “de Deus”, porquanto nem mesmo Shakespeare inventou um personagem cuja personalidade é tão rica em termos de contradições. O Jesus de Marcos, Hamlet e Dom Quixote são os principais concorrentes de Javé, tanto quanto o Odisseu homérico, transmutado no Ulisses cuja histórica de busca e afogamento reduz Dante, o Peregrino, ao silêncio.
[…] Jesus e Javé: Os Nomes Divinos não visa à busca. Meu único objetivo é sugerir que Jesus, Jesus Cristo e Javé são três personagens totalmente incompatíveis, e explicar como e por que isso se dá. Entre esses três seres (se assim for possível chamá-los), Javé é o que me deixa mais aturdido, e, basicamente, rouba a cena neste livro. São infindas as deturpações a ele impostas, inclusive por grande parte da tradição rabínica, bem como por pesquisas que permanecem abafadas – quer de origem cristã, quer de origem judaica ou leiga. Javé continua sendo o maior personagem literário, espiritual e ideológico do Ocidente, seja ele conhecido por nomes tão diversos como Ein-Sof (“sem fim”, na Cabala) ou Alá (no Alcorão). Deus caprichoso, um diabrete, ele me remete a um aforismo do sombrio Heráclito: “O tempo é uma criança que joga damas; governo de criança.”
[…] O título deste livro utiliza uma forma da palavra “divino” como adjetivo e como referência ao substantivo “divinação” uma vez que os nomes Javé e Jesus preservam a sua força mágica. Na realidade, os judeus que continuam a confiar na Aliança costumam evitar os dois nomes, embora por motivos bastante diversos.
Na minha idade (acabo de completar 74 anos), inicio indagando: qual é o gênero do meu livro? Tendo sido amante da grande literatura a vida inteira, faço crítica literária, mas com uma mescla do que chamo de “crítica religiosa”, em que William James é meu modelo distante. Não sou crítico histórico de literatura nem de religião; estudante de Emerson, considero a crítica mais aliada à biografia do que aos mitos que denominamos “história”. No entanto, as biografias tanto de Jesus quanto de Javé não podem ser redigidas. Jack Miles fez o melhor que pôde nos livros God e Christ, mas essa biografia dupla culmina no suicídio de Deus, e Javé não se presta a esse tipo de crise. Desaparecimento, auto-exílio, escapatórias astutas são inclinações javistas; o suicídio, porém, jamais.
[…] Não creio ser possível compreender a personalidade de Jesus sem o entendimento prévio das qualidades pessoais de Javé. Teólogos, de Filo de Alexandria até a atualidade, têm tentado obscurecer a alusão frequente de Javé na Bíblia hebraica como humano teomórfico. Felizmente, a teologia fracassa ao ser confrontada com o Javé da Autora “J”, cujo descendente literário mais próximo é o Rei Lear shakespeariano, simultaneamente pai, monarca e divindade irascível. […] Jesus era um rabino, o que ainda significa mestre, e ensinava a Torá, conquanto com desvios muito pessoais. Não veio abolir, mas cumprir a Lei, por mais que São Paulo, Martinho Lutero e muitos outros tenham se empenhado, ardentemente, em compreender mal esse que é o mais sutil dos mestres, cuja ironia transcende até mesmo a ironia do Sócrates de Platão. Sócrates não era plantonista, e Jesus não era cristão. Ele não dizia quem era, e nenhum de nós – cristãos, muçulmanos, judeus ou secularistas – poderá saber aquilo que só Javé sabe.
[…] A complexidade do próprio Javé é infinita, labiríntica e para sempre inexplicável, a despeito do extraordinário talento interpretativo demonstrado pelos Sábios do Talmude e da Cabala, bem como pelos mestres sufis que confrontaram o Alcorão, obra inteiramente “falada” por Javé, enquanto Alá, expressando a gama de reações de Deus diante das nossas falhas, na tentativa de nos submetermos à sua vontade. As surpreendentes alternâncias de Javé, revelando-se e ocultando-se, podem nos levar à loucura, especialmente porque, seja na Torá ou no Alcorão, a fúria de Javé costuma ser súbita e arbitrária. Javé ordena a um Moisés recalcitrante que desça até o Egito, mas enquanto o profeta se encaminha para o local, Javé tenta matá-lo, em um acampamento noturno no Neguev. E convém deter a disputa de culpa pela Crucificação: Javé sacrifica Jesus e, de fato, o abandona, ao menos neste mundo.
O gnosticismo, seja considerado religião ou mera tendência, foi levado (em consequência dessas características de Javé) a se tornar aquilo que Hans Jonas chamou de “êxtase do inaudito”. Essa resposta contundente a uma força literária arrasadora constituiu uma rebelião contra a Tanak e Platão, e produziu o Jesus gnóstico celebrado por William Blake, o maior dos poetas-profetas ingleses de John Milton. William Butler Yeats, o mais eloquente dos poetas anglo-irlandeses, trouxe o argumento de Blake ao século XX, ainda que não demonstrasse o amor que Blake demonstra pela figura de Jesus.
Não se pode dispensar Javé como um “Nobodaddy”, tampouco será o “Deus carrasco”, de que fala James Joyce. Ou seremos entidades transcendentais, ou apenas máquinas de entropia, e Javé, com toda a sua ambivalência, estabelece a diferença entre as duas possibilidades, ao menos tratando-se de culturas que derivam do hebraísmo e sua consequente helenização, inclusive as religiões rivais – judaísmo, cristianismo e islamismo – e sua subsequente secularização relativa. Se Shakespeare nos contém (o que, de fato, ocorre), então Javé contém Shakespeare, fosse o poeta-dramaturgo dissidente católico, protestante, hermético ou pioneiro do niilismo, um precursor de tudo o que estava por surgir.
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É sensato temer Javé. Haverá bases para amá-lo? Ou será tal amor apenas um treinamento que capacita aqueles que o cristianismo chama de mártires, os “atletas da morte”? Jávé espera receber ambos: amor onde existe temor, e temor onde existe amor, fusão destrutiva quando se trata de duas pessoas, mas adequada tratando-se só de Javé. Cada um de nós precisa decidir se a questão diz respeito à Antiga Aliança ou à Nova, ou se devemos nos submeter a Alá. Se recusarmos as três alternativas, seremos secularistas, humanistas, niilistas ou gnósticos que descartam o Nobodaddy de William Blake. Há outras opções, importadas da Ásia, mas o budismo não me vai bem.
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Um velho adágio estabelece que cada um de nós tem o Deus que merece. Mas se merecemos um Javé tão irascível, vingativo e até homicida, é outra questão. Os cruzados preferem esquecer que o próprio Javé tortura e executa Jesus, por elevado desígnio, se o Evangelho de João for crível. Qual será a culpa humana que deve ser expiada pela tortura que Javé impõe a Jesus e pela crucificação de centenas de milhares de outros judeus nas mãos das forças romanas de ocupação? De início, dispenso as apologias que São Paulo e Santo Agostinho fazem a Deus: na queda de Adão, todos pecamos. Os grandes Sábios do Talmude não defendiam essa doutrina bárbara, importação helênica do mito do portador do fogo, Prometeu, atormentado por um Zeus sádico, e, no extremo, o relato xamanista e órfico da vingança de Dioniso contra os que dilaceraram e devoraram o deus infante. Javé e a menos autoconsciente das divindades, em todos os tempos, mas Jesus, particularmente no Evangelho de João, é um milagre da autoconsciência mais elevada, modelo implícito de Hamlet, torre solitária shakespeariana e apoteose do autoconhecimento.
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Uma esplêndida admoestação de Baruch Spinoza tem me perseguido há mais de meio século: “É preciso aprender a amar a Deus sem jamais esperar que ele nos ame em retribuição.” Eticamente, isso tem certa pungência, mas será humanamente aceitável? Se substituirmos Deus por Hamlet, na asserção de Spinoza, esta se torna mais compreensível para mim. A definição cristã amplamente aceita – “Deus é amor” – desaparece na aura da inspirada “intoxicação” de Spinoza, se aplicarmos a caracterização que Coleridge confere ao grande moralista judeu: “homem intoxicado com Deus”. Se for intoxicada com Deus, a leitora haverá de sorrir, benignamente, diante da minha preocupação, mas não estaria Spinoza falando de Javé, em vez do Deus Pai de Jesus Cristo? […] Não faz muito sentido dizer que “Javé é amor”, ou que devemos amar Javé. Ele não é, nunca foi e jamais será amor. Muitos, se não a maioria, de nós, em algum momento, nos apaixonamos por alguém que não é capaz de aceitar amor, nem de retribui-lo, embora ele ou ela talvez exija amor, mesmo que somente como devoção ou respeito. […] Javé não pode ser domesticado. Em termos shakespearianos, Javé combina aspectos de Lear, Falstaff e Hamlet: a fúria imprevisível de Lear, o vitalismo irresistível de Falstaff e a inquietação da consciência constatada em Hamlet. Diante das perguntas retóricas de Javé, ou bem nos detestamos, a exemplo de Jó, ou revidamos em vão, a exemplo do capitão Ahab criado por Melville, o mais valente e obcecado dos gnósticos.
Sabemos que, para muitos de nós, Javé continua a ser a resposta mais acertada para uma pergunta angustiante: “Quem é Deus?” Um budista, um hindu ou um taoísta não concordaria, tampouco muitos cristãos, muçulmanos e judeus, mas a minha resposta é a de um crítico literário, e se fundamenta na força e no poder da única personalidade literária que, tratando-se de vivacidade e notoriedade, ultrapassa até Hamlet, Falstaff, Iago, Lear e Cleópatra. Traduzindo a questão em termos religiosos, o Javé de “J” é a representação mais convincente de alteridade transcendental que já encontrei na vida. E, no entanto, Javé não é apenas “antropomórfico” (termo inútil!), mas é mesmo absolutamente humano, e não é, de maneira alguma, um sujeito agradável – e por que deveria sê-lo? Não pretende se candidatar a cargo político, não busca a fama nem almeja receber tratamento diferenciado por parte da mídia. Se o cristianismo insiste que Jesus Cristo é a boa nova (asserção tornada inválida pela brutalidade dos cristãos ao longo da história), então, Javé é a “má nova” encarnada, e a Cabala nos diz que ele, com toda a certeza, tem um corpo, um corpo imenso. É algo terrível cair nas garras do Javé vivo.
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Judeus que continuam a crer na Aliança não encontram o Javé ambivalente que descrevo, assim como cristãos que acreditam que Jesus foi o Cristo contemplam uma figura bastante diversa daquela que eu enxergo. A perspectiva comanda nossa reação a tudo o que lemos, especialmente tratando-se da Bíblia. Aprendendo dos estudiosos, sejam cristãos ou judeus, ainda assim questionamos o seu condicionamento, que tantas vezes lhes sobredetermina a apresentação. É evidente que tal cautela também se aplica a mim, um crítico literário dividido entre o legado judaico e um desconforto gnóstico diante de Deus. […] Agrada-me a observação bem-humorada de Donald Akenson: “Não posso crer que um indivíduo que goze de saúde mental possa gostar de Javé.” Mas, conforme acrescenta o próprio Akenson, isso é irrelevante, pois Javé é realidade. Eu iria um pouco mais adiante e identificaria Javé com a “prova de realidade”, segundo Freud, que se assemelha ao entendimento lucreciano do modo como as coisas são. Na condição de princípio de realidade, Javé é irrefutável. Todos temos de morrer, cada qual na sua hora, e não posso concordar com a crença farisaica de Jesus na ressurreição do corpo. Javé, tanto quanto a realidade, tem um senso de humor bastante ácido, mas a ressurreição do corpo não é uma de suas piadas judaicas ou freudianas.
[…]
Por que a maioria das pessoas, em todos os tempos e lugares, precisa de Deus ou dos deuses? Ou por que Deus precisa de nós? Essas perguntas ou não têm resposta ou costumam ser respondidas de maneira apressada. Os poetas precisam de Deus porque politeísmo é poesia. Será Javé um poema? Será o Senhor Jesus Cristo um poema? Cristo precisa (ou elege) nos amar, de acordo com a maioria dos cristãos com que me deparo, e estes elegem (ou precisam) amá-lo. Um filósofo judeu-francês popularizou a noção radical de alguns judeus pós-Holocausto, de que precisam amar a Torá mais do que a Deus. Contudo, toda a Cabala e grande parte do Talmude agregam a Torá e Javé. Será que a Torá nos ama? Quanto a mim, ignoro Javé, quando, em dados momentos, ele afirma amor pelo povo judeu. Concretamente, ele não ama o povo judeu, e isso não decorre do fato de termos matado Cristo; foi ele quem o matou, utilizando como agentes os romanos e alguns judeus colaboracionistas. Se Javé precisava dos judeus, ou dos cristãos, ou dos muçulmanos, ou de zoroastrianos, hindus, budistas, confucianos, taoístas, etc., ao que parece, ele dependia de alimentação à base de oferendas, e desejava um bombardeio de louvores, orações, cânticos em ação de graças, além de amor desmedido, incessante. Será Javé, simplesmente, um Rei Lear cosmológico e atemporal, o patriarca dos patriarcas?
[…] Jack Miles, no vigoroso estudo God: A Biography (Deus: uma biografia), propõe que Javé se retira para o Paraíso, terminado o Livro de Jó. Esse recuo explica a angústia típica da narrativa hebraica; a pergunta da Tanak é sempre “Javé agirá?”. Implicitamente, a resposta final é que ele não agirá, e que nos abandonou, talvez porque esteja enrolado nas contradições do seu próprio caráter e personalidade. Os Sábios do Talmude não concordariam com tal interpretação, mas os judeus pós-Holocausto confrontam esse enigma. […] Quem perdeu os avós nos campos de alemães de extermínio haverá de confiar em um Javé que só pode ser impotente ou indiferente? O gnosticismo judaico, na minha avaliação, teve origem no holocausto perpetrado pelos romanos.
BLOOM, Harold, Jesus e Javé: os nomes divinos. Trad. de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.