Nada mais frágil do que a faculdade humana de admitir a realidade, de aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real. Esta faculdade falha tão freqüentemente que parece razoável imaginar que ela não implica o reconhecimento de um direito imprescritível — o do real a ser percebido —, mas representa antes uma espécie de tolerância, condicional e provisória. Tolerância que cada um pode suspender à sua vontade, assim que as circunstâncias o exijam: um pouco como as aduanas que podem decidir de um dia para outro que a garrafa de álcool ou os dez maços de cigarros — “tolerados” até então — não passarão mais. Se os viajantes abusam da complacência das aduanas, estas demonstram firmeza e anulam todo o direito de passagem. Da mesma forma, o real só é admitido sob certas condições e apenas até certo ponto: se ele abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa. Uma interrupção de percepção coloca então a consciência a salvo de qualquer espetáculo indesejável. Quanto ao real, se ele insiste e teima em ser percebido, sempre poderá se mostrar em outro lugar.
Esta recusa do real pode, naturalmente, tomar formas muito variadas. A realidade pode ser recusada radicalmente, considerada pura e simplesmente como não-ser: “Isto — que julgo perceber — não existe.” As técnicas a serviço de uma tal negação radical são, aliás, elas mesmas muito diversas. Posso aniquilar o real aniquilando a mim mesmo: fórmula do suicídio, que parece a mais segura de todas, ainda que, apesar de tudo, um minúsculo coeficiente de incerteza pareça vinculado a ela, se acreditarmos, por exemplo, em Hamlet: “Quem gostaria de carregar esses fardos, gemer e suar sob uma vida fatigante, se o temor de algo após a morte, desta região inexplorada, de onde nenhum viajante retorna, não perturbasse a vontade e não nos fizesse suportar os males que temos por medo de nos lançarmos naqueles que não conhecemos?” Posso também suprimir o real com menores inconveni-entes, salvando a minha vida ao preço de uma ruína mental: fórmula da loucura, muito segura também, mas que não está ao alcance de qualquer um, como lembra uma célebre frase do doutor Ey: “Não é louco quem quer”. Em troca da perda de meu equilíbrio mental, obterei uma proteção mais ou menos eficaz com relação ao real: afastamento provisório no caso do recalcamento descrito por Freud (subsistem vestígios do real em meu inconsciente), ocultação total no caso da forclusão descrita por Lacan. Posso, enfim, sem sacrificar nada da minha vida nem de minha lucidez, decidir não ver um real do qual, sob outro ponto de vista, reconheço a existência: atitude de cegueira voluntária, que simboliza o gesto de Édipo furando os olhos, no final de Édipo Rei, e que encontra aplicações mais ordinárias no uso imoderado do álcool ou da droga.
Entretanto, essas formas radicais de recusa do real permanecem marginais e relativamente excepcionais. A atitude mais comum, face à realidade desagradável, é bastante diferente. Se o real me incomoda e se desejo livrar-me dele, me desembaraçarei de uma maneira geralmente mais flexível, graças a um modo de recepção do olhar que se situa a meio-caminho entre a admissão e a expulsão pura e simples: que não diz sim nem não à coisa percebida, ou melhor, diz a ela ao mesmo tempo sim e não. Sim à coisa percebida, não às conseqüências que normalmente deveriam resultar dela. Esta outra maneira de se livrar do real assemelha-se a um raciocínio justo coroado por uma conclusão aberrante: é uma percepção justa que se revela impotente para acionar um comportamento adaptado à percepção. Não me recuso a ver, e não nego em nada o real que me é mostrado. Mas minha complacência pára por aí. Vi, admiti, mas que não me peçam mais. Quanto ao restante, mantenho o meu ponto de vista, persisto no meu comportamento, exatamente como se não tivesse visto nada. Coexistem paradoxalmente a minha percepção presente e o meu ponto de vista anterior. Aí, trata-se menos de uma percepção errônea do que de uma percepção inútil.
Esta “percepção inútil” constitui, ao que parece, uma das características mais marcantes da ilusão. Estaríamos provavelmente enganados em considerar esta como resultando principalmente de uma deficiência no olhar. Às vezes se diz que o iludido não vê: ele está cego, cegado. É inútil a realidade se oferecer à sua percepção: ele não consegue percebê-la, ou a percebe deformada, tão completamente atento que está apenas aos fantasmas de sua imaginação e de seu desejo. Esta análise, válida sem nenhuma dúvida para os casos propriamente clínicos de recusa ou ausência de percepção, parece muito sumária no caso da ilusão. Menos ainda que sumária: antes à margem de seu objeto.
Na ilusão, quer dizer, na forma mais corrente de afastamento do real, não se observa uma recusa de percepção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar. Mas no que concerne à aptidão para ver, o iludido vê, à sua maneira, tão claro quanto qualquer outro. Esta verdade aparentemente paradoxal se torna perceptível a partir do momento em que pensamos no que se passa com a pessoa cega, tal como nos mostra a experiência concreta e cotidiana, ou ainda o romance e o teatro. Alceste, por exemplo, em O misantropo, vê bem, de forma perfeita e total, que Célimène é uma coquete: esta percepção, que ele acolhe todo dia sem protestar, nunca é posta em questão. E, no entanto, Alceste está cego: não por não ver, mas por não associar seus atos à sua percepção. O que vê é colocado como fora de circuito: o coquetismo de Célimène é percebido e admitido, mas estranhamente separado dos efeitos que seu reconhecimento deveria normalmente acarretar no plano prático. Pode-se dizer que a percepção do iludido é como que cindida em dois: o aspecto teórico (que designa justamente “aquilo que se vê”, de théorein) emancipa-se artificialmente do aspecto prático (“aquilo que se faz”). Aliás, é por isso que este homem afinal de contas “normal” que é o iludido está, no íntimo, muito mais doente do que o neurótico: porque, de maneira diferente do segundo, ele é deliberadamente incurável. Aquele que está cego é incurável não por ser cego, mas sim por ser dotado de visão: porque é impossível lhe “fazer ver de outra forma” algo que já viu e que ainda vê. Toda “advertência” é vã: não se poderia “advertir” alguém que já tem, debaixo dos olhos, aquilo que se pretende que ele veja. No recalcamento, na forclusão, o real pode even-tualmente reaparecer, se acreditarmos na psicanálise, graças a um “retorno do recalcado”, nos sonhos e nos atos falhos. Mas, na ilusão, esta esperança é vã: o real não voltará jamais, porque já está aí. Observaremos de passagem a que ponto o doente de que os psicanalistas se ocupam representa um caso anódino e, em suma, benigno, em comparação com o homem normal.
A ILUSÃO ORACULAR: O ACONTECIMENTO E SEU DUPLO
É uma característica ao mesmo tempo geral e paradoxal dos oráculos o fato de se realizarem surpreendendo pela sua própria realização. O oráculo tem o dom de anunciar o acontecimento por antecipação: de modo que aquele ao qual este acontecimento é destinado tem tempo de se preparar para ele e de, eventualmente, tentar impedi-lo. Ora, o acontecimento se efetua tal como fora vaticinado (ou anunciado por um sonho ou alguma outra manifestação premonitória); mas esta efetuação tem a curiosa sina de não corresponder à expectativa no próprio momento em que esta deveria julgar-se satisfeita. A é anunciado, A se produz e não o reencontramos mais aí. Pelo menos não exatamente. Entre o acontecimento anunciado e o acontecimento efetuado há um tipo de diferença sutil que basta para desconcertar aquele que, no entanto, esperava precisamente aquilo de que é testemunha. Ele reconhece sim, mas logo não o reconhece mais. Entretanto, não ocorreu nada além do acontecimento anunciado. Mas este, inexplicavelmente, é outro.
Uma fábula de Esopo, O rapaz e o leão pintado — da qual existem numerosas outras versões tanto antigas quanto modernas —, ilustra esta particularidade geralmente associada à realização dos oráculos:
Um ancião timorato tinha um filho único cheio de coragem e apaixonado pela caça: sonhou que este morria nas garras de um leão. Temendo que o sonho se realizasse, mandou construir um palácio custoso e magnífico para servir de moradia ao filho. Para distraí-lo, mandara pintar nas paredes animais de todo tipo, entre os quais figurava um leão. Mas a visão de todas essas pinturas só fez aumentar o desgosto do rapaz. Um dia, aproximando-se do leão, exclamou: “Fera cruel, foi por sua causa e por causa do sonho mentiroso do meu pai que me trancaram nesta prisão para mulheres.” Com estas palavras, bateu com a mão na parede para arrancar o olho do leão. Mas um prego se cravou na sua unha causando-lhe uma dor violenta e uma inflamação que resultou em um tumor. A febre que então ardia logo fez com que passasse da vida para a morte. Embora fosse pintado, o leão não deixou de matar o rapaz, para quem o artificio do pai de nada serviu.
Fábula, 295, trad. E. Chambry. Paris, Les Belles Lettres.
De que se trata aqui, se abstraímos a moral exposta por Esopo, que se limita a observar que “é preciso aceitar corajosamente a sorte que nos espera, e não tentar trapacear, porque dela não saberíamos fugir”? Trata-se, evidentemente, do destino, e, no presente caso, de seus ardis: quer dizer que o real — o conjunto dos aconteci-mentos designados para a existência— é dado como inelutável (destino), chamado então a se produzir a despeito de todos os esforços empreendidos para obstá-lo (ainda que pelo subterfúgio de um “ardil”). Se acontece de estarmos prevenidos de antemão desta necessidade inerente a todo acontecimento, e logo teoricamente capazes de impedi-lo, o destino responderá com um estratagema que frustrará a tentativa de esquiva e, às vezes, até se divertirá — eis a sua ironia — em transformar a esquiva no próprio meio de sua realização, de modo que, em tais casos, aquele que procura impedir o acontecimento temido se torna o agente de sua própria desgraça, e o destino, por elegância ou por preguiça, delega aqui às vítimas a responsabilidade de fazer todo o trabalho no seu lugar.
Este é, como sempre foi dito com pertinência, o sentido mais evidente deste tipo de fábula.
Mas, além deste primeiro sentido, existe certamente outro, mais rico e mais geral. A prova disso é o fato de esta fábula — e toda história análoga — continuar a interessar, a revelar à atenção daquele que a escuta alguma verdade profunda, independente, então, de toda consideração do destino e de seus ardis. Quem sabe realmente que nunca existiu nada parecido com o destino e com a inelutabilidade — como La Fontaine que, retomando a fábula de Esopo, extrai do apólogo uma moral inversa e assimila os efeitos do destino a “efeitos do acaso”— que reconhece em toda fábula onde figuram estes temas uma reconstituição feita posteriormente e destinada a marcar com o selo da necessidade o que tinha sido apenas um encadeamento ocasional e aleatório, reconhece entretanto nessas pinturas do destino o eco de uma certa verdade. Parece que algo fala nessas histórias.
Este algo está claramente ligado, antes de tudo, à sensação de ter sido enganado. Diz-se que fomos apenas um joguete nas mãos do destino; passada a ilusão do destino, permanece a sensação de ter sido um joguete, quer dizer, de ter sido enganado. Exatamente no sentido em que, na esgrima ou em outro lugar, somos surpreendidos por uma finta. Protegeu-se à esquerda enquanto era atacado à direita. E, ao se proteger, deixou sem defesa precisamente o lugar vulnerável, de modo que o gesto da esquiva veio se confundir com o gesto fatal. Ainda não é dizer o bastante: o gesto da esquiva e o gesto fatal são apenas um único e mesmo gesto, como o misterioso caminho de Heráclito, que ao mesmo tempo sobe e desce.
O oráculo só se realizou graças a esta malfadada precaução, e é o próprio ato de evitar o destino que acaba por coincidir com a sua realização. Se bem que, em suma, a profecia não anuncie nada além do gesto de esquiva infeliz. Esta estrutura irônica, ou mais precisamente elíptica, da realização dos oráculos é muito freqüente e constitui mesmo um dos temas favoritos da literatura oracular. Pode-se observar, em primeiro lugar, que esta falha da “defesa” é apenas um aspecto bastante banal da finitude humana. Para se proteger de forma eficaz, para estar em segurança total, seria necessário poder pensar em tudo ao mesmo tempo. Ora, sabe-se que se o homem possui o privilégio de pensar, não recebeu o dom da ubiqüidade intelectual: ele pensa alguma coisa num dado momento, e nada mais naquele momento. Eis por que sempre pode se tornar uma presa fácil: porque, enquanto se protege aqui, sempre haverá milhares de ali por onde pegá-lo. Esta fragilidade, que constitui o tema da Toca de Kafka, dá profundidade ao dito dos nzakara, habitantes da República Centro-Africana, tal como relata mme. Retel-Laurentin: “Quem sabe o que pode acontecer na outra extremidade da aldeia?” […]
Como um acontecimento A poderia ser considerado altamente improvável com relação a um acontecimento B, se fica demonstrado que este acontecimento B, ele próprio, é, na melhor das hipóteses, muito mais improvável ainda? Supondo que fosse realizada esta outra versão do destino de Édipo, aparentemente mais de acordo com o oráculo, não se distinguiria ela, por sua vez, de mil outras versões de que, justamente, se vislumbraria então a maior probabilidade? A realização do destino de Édipo — tal como foi selado pelo oráculo — não elimina então nenhuma eventual probabilidade igual ou superior àquela finalmente escolhida pela realidade: já que tudo o que é imaginável aqui é mais complicado e mais improvável do que será o acontecimento real. Se a palavra do oráculo pode ser dita “oblíqua”, a via pela qual Édipo realiza o seu destino é, em contrapartida, a via reta por excelência: não passou por nenhum desvio, e talvez seja justamente isso o que se chama o “ardil” do destino — ir direto ao alvo, não se atrasar no caminho, comparecer na hora certa.
No entanto, apesar desta análise, persiste a impressão de ter sido enganado por uma fatalidade onipotente e astuciosa, que frustra todos os meios empregados para se fazer frente a ela. Mas esta fatalidade assume agora um sentido mais preciso, no que se reconheceu a sua imprecisão: o acontecimento fatal pega de surpresa porque apaga outro acontecimento que nunca foi pensado, do qual nunca se teve nenhuma idéia.
A surpresa apresenta aqui um caráter propriamente inesperado: ela consiste, na realidade, em refutar o acontecimento real em nome de um acontecimento que nunca seria imaginado, de uma realidade que jamais foi e jamais será pensada. O acontecimento tomou o lugar de “outro” acontecimento, mas este outro acontecimento não é nada. Precisa-se, assim, o engodo de que é vítima aquele que espera um acontecimento mas se espanta por vê-lo ocorrer: existe realmente engodo em algum lugar e este algum lugar reside precisamente na ilusão de estar enganado, de acreditar que há “alguma coisa” da qual a realização do acontecimento teria, em suma, tomado o lugar. É então a sensação de estar enganado que é, aqui, enganadora. Ao se realizar, o acontecimento não fez outra coisa senão realizar-se. Ele não tomou o lugar de outro acontecimento.
Evidentemente, não se poderia negar por isso a ambigüidade inerente à palavra profética, nem as tiradas de duplo sentido que aparecem constantemente tanto nos oráculos como nas tragédias. Trata-se apenas de compreender que esta ambigüidade não consiste no desdobramento de uma sentença em dois sentidos possíveis, mas, ao contrário, na coincidência dos dois sentidos que só depois se vê que são dois em aparência, mas um na realidade. O Édipo Rei de Sófocles abunda em ilustrações desta ambigüidade, sendo a mais elementar e mais profunda a sentença em que Édipo enuncia que ele é, ao mesmo tempo, aquele que ele é e aquele outro que procura: “Voltando, por minha vez — declara orgulhosamente o rei Édipo —, à origem (dos acontecimentos que permaneceram desconhecidos), sou eu que os porei à luz, έγὠ φαυῶ. O escoliasta não deixa de observar que há nesse ego phanô qualquer coisa de dissimulado, que Édipo não quer dizer, mas que o espectador compreende, já que tudo será descoberto no próprio Édipo, έπεἰ τὀ πᾱν έν αύτῶ φανήσεται. Ego phanô = sou eu que porei à luz o criminoso — mas também: eu me descobrirei criminoso.”
ROSSET, Clément, O real e seu duplo. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
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