Frente ao progresso irrefreável das técnicas de supervisão, o futurista David Brin assevera a fuga para frente, exigindo a supervisão de todos por todos; portanto, uma democratização da supervisão. A partir daí ele tem esperança de criar uma transparent society. Desse modo, postula um imperativo categórico: “Can we stand living exposed to scrutiny, our secrets laid open, if in return we get flashlights of our own thet we can shine on anyone […]?” A utopia de Brins, da transparent society, repousa na ilimitude da supervisão. Todo e qualquer fluxo de informações assimétrico que produza uma relação de poder e domínio deve ser eliminado. O que se exige é, pois, uma iluminação completa recíproca. Não só o inferior é supervisionado pelo superior, mas também o superior é supervisionado pelo inferior. Cada um e todos são expostos à visibilidade e ao controle, e, quiçá, adentrando inclusive a esfera privada. Essa supervisão total degrada a transparent society a uma sociedade de controle desumana, na qual todos controlam todos.
Transparência e poder não se coadunam muito bem. O poder prefere velar-se no oculto, e a práxis arcana é uma das práxis do poder. A transparência é que derriba a esfera arcana do poder, sendo que a transparência recíproca só pode ser alcançada através de uma supervisão permanente, que vai tomando uma forma cada vez mais excessiva. Essa é a lógica da sociedade da supervisão. Além do mais, o controle total aniquila a liberdade de ação e leva, em última instância, à uniformização. A confiança, que produz espaços de ação pautados na liberdade, não pode simplesmente ser substituída pelo controle: “Os seres humanos têm de crer e confiar em seus senhores. Com essa confiança conferem-lhe uma certa liberdade de ação, renunciando a um constante exame e supervisão. Sem essa autonomia não é possível dar passo algum” (SENNETT, R. Respekt im Zeitalter der Ungleichheit. Op. cit., p. 152).
A confiança só é possível em uma situação que conjuga saber e não saber. Confiança significa edificar uma boa relação positiva com o outro, apesar de não saber dele; possibilita ação, apesar da falta de saber. Se de antemão sei tudo, já se torna supérflua a confiança. Transparência é um estado no qual se elimina todo e qualquer não saber, pois onde impera a transparência já não há espaço para a confiança. Em vez do mote transparência cria confiança dever-se-ia propriamente dizer: a transparência destrói a confiança. A exigência por transparência torna-se realmente aguda quando já não há mais confiança, e na sociedade pautada na confiança não surge qualquer exigência premente por transparência. Por isso, a sociedade da transparência é uma sociedade da desconfiança e da suspeita, que, em virtude do desaparecimento da confiança, agarra-se ao controle. A intensa exigência por transparência aponta precisamente para o fato de que o fundamento moral da sociedade se tornou frágil, que os valores morais da honestidade e sinceridade estão perdendo cada vez mais importância. Em lugar da instância moral pioneira aparece a transparência como novo imperativo social.
HAN, Byung-Chul, Sociedade da transparência. Trad. de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ : Vozes, 2017.
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