“O segundo Cioran e a campanha abolicionista da alma” – Rodrigo MENEZES

Uma das diferenças mais marcantes no pensamento de Cioran na passagem dos escritos romenos aos franceses, após a Segunda Guerra, é a reação crítica, em nome da lucidez do espírito, às ilusões das quais outrora fizera a apologia (ver O Livro das ilusões). “Ilusão” se refere, antes de tudo, e fundamentalmente, à ilusão de profundidade, à suposição de que há algo por detrás das aparências e esse algo essencial é “profundo”, “misterioso”, de que a verdade se oculta nas “profundezas do ser”, distante da luz do fenômeno que se revela à consciência…

Na antropologia e na psicologia esboçadas por Cioran, a “profundidade” é um atributo (e um preconceito) da “alma”, conforme distinta do “espírito”: “O espírito em si só pode ser superficial, pois sua natureza está preocupada unicamente com a ordenação dos acontecimentos conceituais, e não com suas implicações nas esferas que significam“, ou seja, nas esferas anímicas. “Espírito”, para Cioran, é sinônimo de inteligência, numa acepção muito próxima à de Paul Valéry, quase como um “espírito geométrico” no âmbito das ideias e da expressão (secura, concisão, limpidez), mas também no sentido de boutade, veleidade, diletantismo, estetismo, ironia, delicadeza.

O lirismo bárbaro (“sangue, sinceridade e chamas”), característico dos escritos febris da sua juventude, é a confissão de uma alma transbordante, trágica e elegíaca, dilacerada e dolorosa, enferma em suma. O jovem pensador insone faz o elogio da tirania das paixões da alma, em detrimento de toda “sagesse“, necessariamente fundada no “espírito” (ou razão, o hegemonikon dos estoicos) cuja função é ordenar, abstrair, depurar, “dominar a alma” em suma (sendo a “alma” essencialmente afecção e paixão, pathos). De profundis: um título (de O. Wilde) para o jovem romeno “nos cumes do desespero”.

A reação (auto)crítica às ilusões que nutriam os seus anos romenos representa uma inversão axiológica em relação ao culto do irracional, do lirismo que é só “sangue, sinceridade e chamas”, da alma e suas paixões violentas, do “profundo” enquanto tal, e (o que era inédito antes do Breviário de decomposição) uma “conversão” à ordem da lucidez do espírito, abraçando doravante uma variedade de “sabedorias crepusculares”, a começar pelo ceticismo, conhecendo enfim as “virtudes do cansaço”. Se, na década de 1930, Cioran declarava guerra à inteligência em nome da “alma” e o seu lirismo dissolutivo, a partir do Breviário, lançará uma campanha abolicionista da alma em nome do espírito. Se antes se comprazia no turbilhão da “vida interior”, agora sente-se sufocado e oprimido por ela. Decepcionado e traumatizado pelos paroxismos, cumes e abismos da “alma”, como quem tivesse vislumbrado o seu “fundo demoníaco”, Cioran sentencia:

Pelo que há de “profundo” em nós, estamos expostos a todos os males: não há salvação enquanto conservemos a conformidade com nosso ser. Algo deve desaparecer de nossa composição e uma fonte nefasta deve secar; só há uma saída: abolir a alma, suas aspirações e seus abismos; ela envenenou nossos sonhos; é preciso extirpá-la, como também sua necessidade de “profundidade”, sua fecundidade “interior”, e suas demais aberrações. O espírito e a sensação nos bastarão; de seu concurso nascerá uma disciplina da esterilidade que nos preservará dos entusiasmos e das angústias. Que nenhum “sentimento” torne a preocupar-nos, e que a “alma” se transforme na velharia mais ridícula…

“Rostos da decadência”, Breviário de decomposição

O texto se intitula “Rostos da decadência”. Trata-se de uma apologia da “decadência”, não destituída de ironia (reiterando, retoricamente, um termo inequivocamente depreciativo, carregado de moralismo e metafísica). A apologia da decadência é um contradictum da Apologia da barbárie escrita por Cioran poucos anos antes ainda em romeno. Nada mais “consubstancial” à Décadence que a lucidez cioraniana: “O erro dos que captam a decadência é querer combatê-la, enquanto seria preciso fomentá-la: ao desenvolver-se, esgota-se e permite o advento de outras formas. O verdadeiro precursor não é o que propõe um sistema quando ninguém o quer, mas o que precipita o Caos e é seu agente e turiferário.” (“Rostos da decadência”). A “decadência” não é senão a hegemonia da consciência (ou espírito) sobre tudo o que é vital, pulsional, instintual, e portanto irracional, é o “sangue demasiado tíbio para aturdir ainda o espírito, é o sangue esfriado e enfraquecido pelas ideias, o sangue racional…” (“Rostos da decadência”).

O segundo Cioran afirma retrospectivamente: “Como nossos instintos tiveram que se embotar e seu funcionamento se abrandar antes que a consciência estendesse seu controle sobre o conjunto de nossos atos e de nossos pensamentos!” (“O advento da consciência”). Mas, admite ele, não sem algum pesar, “despertamos tarde demais: temos contra nós os anos fecundados unicamente pela presença dos instintos, que devem ficar estupefatos com as conclusões a que conduzem nossas meditações e decepções. E reagem: no entanto, como adquirimos a consciência de nossa liberdade, somos donos de uma resolução tanto mais atraente quanto não a colocamos em prática.” (“Recursos da autodestruição”)

O jovem Cioran opta pela brutalidade das paixões e pela tragédia permanente, pelo lirismo bárbaro e pelo Caos como “projeto de vida”. A partir do Breviário, o pensador romeno de expressão francesa erige como valores superiores a sutileza e a frivolidade, o ceticismo, o diletantismo e a ironia, o espírito da boutade e o dito espirituoso, a “sabedoria crepuscular” e o “sorriso cansado”. Equacionando “decadência” e triunfo do “espírito” sobre o barbarismo da “alma”, triunfo da “lucidez” sobre o “império dos instintos”, Cioran correlaciona “decadência”, “delicadeza” e “civilidade”, por um lado, vitalidade/atividade anímica e barbárie, pandemônio e caos, por outro. “Os delicados nos deixam entrever o momento em que as porteiras serão perturbadas por escrúpulos de estetas; em que os camponeses, sobrecarregados pelas dúvidas, não terão mais vigor para empunhar o arado; em que todos os seres, corroídos pela clarividência e vazios de instintos, se extinguirão sem forças para ter saudades da noite próspera de suas ilusões….”

Nunca ocorreria ao primeiro Cioran, “nos cumes do desespero”, fazer a apologia da “delicadeza” e da “frivolidade”. O primeiro texto do Breviário representativo dessa nova postura filosófica, na antípoda do seu antigo eu, é “Civilização e frivolidade”:

Ninguém alcança logo de saída a frivolidade. É um privilégio e uma arte; é a busca do superficial por aqueles que, tendo descoberto a impossibilidade de toda certeza, adquiriram nojo dela; é a fuga para longe desses abismos naturalmente sem fundo que não podem levar a parte alguma.
Permanecem, entretanto, as aparências: por que não alçá-las ao nível de um estilo? Isto é o que permite definir toda época inteligente. Chega-se a encontrar mais prestígio na expressão do que na alma que a sustenta, na graça do que na intuição; a própria emoção torna-se polida. O ser entregue a si mesmo, sem nenhum preconceito de elegância, é um monstro; só encontra em si zonas obscuras, onde rondam, iminentes, o terror e a negação. Saber, com toda sua vitalidade, que se morre e não poder ocultá-lo, é um ato de barbárie. Toda filosofia sincera renega os títulos da civilização, cuja função consiste em velar nossos segredos e disfarçá-los com efeitos rebuscados. Assim, a frivolidade é o antídoto mais eficaz contra o mal de ser o que se é: graças a ela, iludimos o mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas profundidades. Sem seus artifícios, como não envergonhar-se por ter uma alma? Nossas solidões à flor da pele, que inferno para os outros! Mas é sempre para eles, e às vezes para nós mesmos, que inventamos nossas aparências…

Cioran não alcançou logo de saída a frivolidade; custou-lhe muitas noites de sono, amarguras, decepções e desilusões. Outro texto-chave do Breviário, tendo em vista a inversão da embriaguez lírica da alma para a secura lúcida do espírito, é “O veneno abstrato”. O conceito que serve de título ao texto deve ser entendido em oposição ao “veneno concreto” (Cioran diz “imediato”), ou seja, a experiência subjetiva do negativo nas mais variadas formas, males (afecções negativas) como tédio, angústia, tristeza, medo, desespero, etc. O “veneno abstrato” é o mal concreto doravante atenuado pela sua racionalização e formulação verbal. Escrever sobre a morte ajuda a aplacar a obsessão da morte.

Mesmo nossos males vagos, nossas inquietudes difusas, quando degeneram em fisiologia, convém, por um processo inverso, reconduzi-los às manobras da inteligência. E se alçássemos o tédio – percepção tautológica do mundo, tênue ondulação da duração – à dignidade de uma elegia dedutiva, se oferecêssemos a ele a tentação de uma prestigiosa esterilidade? […] Converter os venenos imediatos em valor de troca intelectual, elevar à função de instrumento a corrupção sensível, ou cobrir por meio de normas a impureza de todo sentimento e de toda sensação, é uma busca de elegância necessária ao espírito, comparada à qual a alma – essa hiena patética – é apenas profunda e sinistra. O espírito em si só pode ser superficial, pois sua natureza está preocupada unicamente com a ordenação dos acontecimentos conceituais, e não com suas implicações nas esferas que significam. Nossos estados só lhe interessam na medida em que são transmutáveis. Assim, a melancolia emana de nossas vísceras e alcança o vazio cósmico; mas o espírito só a adota purificada do que a une à fragilidade dos sentidos; ele a interpreta; refinada, torna-se ponto de vista: melancolia categorial. A teoria espreita e capta nossos venenos, e os faz menos nocivos. É uma degradação para o alto, pois o espírito, amante das vertigens puras, é inimigo das intensidades.

“O veneno abstrato”, Breviário de decomposição

O jovem pensador romeno, que considerava o desespero uma “forma negativa do entusiasmo”, se comprazia na intoxicação direta com os “venenos concretos” da subjetividade humana. Sem se contentar em contemplar os abismos, mergulhava neles e, se fosse viável, habitá-los-ia pela eternidade. O segundo Cioran, a partir do Breviário de decomposição, mostra-se determinado a fugir “para longe desses abismos naturalmente sem fundo que não podem levar a parte alguma”, a “converter os venenos imediatos” em “venenos abstratos”: fórmulas, aforismos, fragmentos de experiências exteriorizadas (e exorcizadas) pelas palavras, essas “sombras de realidade” que, não obstante, possuem uma virtude providencial, o poder terapêutico de nos livrar de nossas obsessões e de nossos males demasiado concretos (“venenos imediatos”).

Em um dos seus últimos livros, já consagrado literariamente, ele diz: “O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!” (“Confissão resumida”). Um aforismo de Razne, um dos últimos textos de Cioran escritos em romeno (engavetado e publicado postumamente), antes da decisão de mudar de língua e começar a minuciosa redação do Breviário, é bastante ilustrativo:

O dia em que não formulei algumas definições, se evaporou sem remédio. Sem elas, não temos nenhum meio para contradizer o nosso nada. Quando milhares delas forem encontradas para a morte, me parecerá que não é mais importante morrer.
A sabedoria é o último cansaço ao qual nos conduz o exercício das definições.

“Pensamentos extraviados” (aforismos inéditos de Razne), in: (n.t.) Revista Literária em Tradução, ano IX, vol. 2, dezembro de 2019

Este é um “veneno abstrato” formulado originalmente em romeno. Todo o Breviário é um (não tão) volumoso “Veneno abstrato”. A começar pela “decomposição” do título, que já denota certa abstração, um distanciamento objetivo e “categorial” em relação ao “desespero” do primeiro livro em língua romena (1934). O desespero é o “veneno imediato” da alma; o Breviário representa a abstração desse desespero imediato em “Veneno abstrato”: é doravante interpretado, formulado, torna-se ponto de vista, “desespero categorial”. O Desesperado torna-se exterior ao seu desespero, um espectador de suas próprias vertigens.

O terceiro texto-chave no tocante à reviravolta do pensamento de Cioran, notadamente à campanha abolicionista da alma lançada no Breviário de decomposição, intitula-se “O pensamento interjetivo”. Talvez mais do que todos os outros, este texto deixa claro que a psykhé, para Cioran, é uma “alma” demasiado cristã, ou cristianizada (o que fica subentendido pela “perdição” inescapável e pela “santidade” inserida entre a “ciência” e a “comédia”):

O espírito não tem defesa contra os miasmas que o assaltam, pois surgem do lugar mais corrompido que existe entre a terra e o céu, do lugar onde a loucura jaz na ternura, cloaca de utopias e vermineira de sonhos: nossa alma. E mesmo que pudéssemos mudar as leis do universo ou prever seus caprichos, ela nos subjugaria por suas misérias, pelo princípio de sua ruína. Uma alma que não esteja perdida? Onde está, para que se faça o seu processo, para que a ciência, a santidade e a comédia apoderem-se dela!

“O pensamento interjetivo”, Breviário de decomposição

A “decomposição” do Breviário não é unicamente fisiológica, mas também anímica e, em certo sentido, espiritual. O fedor da podridão não emana unicamente do corpo. Os “venenos imediatos” da “alma” se infiltram no “espírito”, paralisando-o. Enquanto a “alma” subsistir nas “profundezas” do eu, o “espírito” será acossado por ela, contaminado pelos seus “miasmas” imemoriais, pela sua “corrupção original”. A “alma” (sempre cristã para Cioran) é “o lugar mais corrompido que existe entre o céu e a terra”, lugar onde “a loucura jaz na ternura”, “cloaca de utopias e vermineira de sonhos”. Eis, talvez, um elogio assassino da “alma” (essa especialidade retórica que Cioran aprendeu com Joseph de Maistre). “Abolir a alma” não significa desumanizar-se e tornar-se um zumbi ou um robô. Significa viver e pensar de modo adogmático e ateleológico, sem fundamento nem sentido último, duvidar sempre do que emana de baixo, das nossas vísceras e dessas “zonas obscuras, onde rondam, iminentes, o terror e a negação”. É cultivar o ceticismo, essa “embriaguez do atoleiro”, e não colocar acima da Dúvida senão a satisfação que proporciona, é preferir “as nuanças do inacabado e as dialéticas afetivas à unidade de um sublime beco sem saída. Só a incúria salva.” (Breviário de decomposição)

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