“Precisamos falar sobre o textão”: entrevista com Alexandre Soares CARNEIRO (UNICAMP)

O plural implícito de “se” e o plural confessado do “nós” constituem o refúgio confortável da existência falsa. Só o poeta assume a responsabilidade do “eu”, só ele fala em seu próprio nome, só ele tem o direito de fazê-lo. A poesia se degrada quando torna-se permeável à profecia ou à doutrina: a “missão” sufoca o canto, a ideia entrava o voo. O lado “generoso” de Shelley torna caduca a maior parte de sua obra: Shakespeare, felizmente, nunca “serviu” para nada.

CIORAN, Breviário de decomposição

Alexandre Soares Carneiro possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (1986), mestrado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (1992) e doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (1997). Atualmente é professor assistente doutor da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura de corte, literatura medieval, Gil Vicente, idade média e literatura portuguesa. É editor da coluna “Em poucos traços”, do Jornal da Unicamp, onde publicou recentemente um ensaio provocador sobre Cioran: “Precisamos falar sobre o textão”.


RODRIGO MENEZES – Caro Alexandre, muito obrigado por aceitar fazer esta entrevista. Gostei bastante do seu texto sobre Cioran, “Precisamos falar sobre o textão”, publicado recentemente no Jornal da Unicamp. Quando e como você teve seu primeiro contato com a obra de Cioran? Qual foi a sua primeira impressão?

ALEXANDRE S. CARNEIRO – A primeira notícia que tive dele foi nos anos 1990, mas, inicialmente, apenas folheava, intrigado, suas obras nas livrarias. Em algum momento, comprei o Breviário de Decomposição e os Exercícios de Admiração, nas traduções que devemos a José Thomaz Brum, e depois edições de bolso em francês. Passei a citar Cioran na conversação, por diversão. Como sabemos, há nele um gosto muito apurado para a frase de efeito, um jeito peculiar de fazer a dura realidade se impor. “Longe de mim querer destruir suas ilusões: a vida se encarregará disso” – sentenças do tipo…. Nas aulas sobre máximas e aforismos ele passou a se fazer presente, pois seus textos compunham muito bem com a perspectiva dos moralistas clássicos, como La Rochefoucauld, e a de outros escritores fragmentários como Lichtenberg, Leopardi, Nietzsche. Tenho um grande interesse pelas formas breves, entre outros motivos por sua relevância como pedagogia para a escrita. Por volta de 2003 comecei a meditar mais seriamente sobre o autor, por influência de um texto de Clément Rosset, filósofo que lia sistematicamente nesse período. A essa altura já conhecia toda a sua obra francesa e logo avancei para os Cahiers, a correspondência editada, as entrevistas, biografias, artigos, estudos. Ministrei uma disciplina em que o aproximava de Marco Aurélio e Montaigne, a partir do tema “escrever para si”.

R.M. – Sua leitura de Cioran mudou, de alguma maneira, desde o primeiro contato até hoje? A compreensão que você tem do pensador romeno hoje é a mesma que nas primeiras leituras?

A.S.C.– Descobre-se, aos poucos, uma maior densidade nele, ultrapassando-se o lado provocador. Além das questões relativas à obra, temos, no seu caso, um itinerário pessoal  emblemático: um personagem complicado que atravessa um século ainda mais complicado, sobre o qual ele reflete com uma lucidez incomparável. Pensemos nos ensaios de História e Utopia, por exemplo. Uma etapa importante dessa minha aproximação gradual tem a ver com a caracterização de sua escrita como “exercício espiritual”, proposta por Marc Fumaroli em “Cioran ou la spiritualité de la décadence”. Nesse período, eu estudava a obra de Pierre Hadot, autor que disseminou essa ideia, e que despertou meu interesse para o tema da filosofia como forma de vida, em contraponto à ideia de filosofia como discurso acadêmico. Professor universitário que sou, os questionamentos do Cioran a respeito do nosso ethos intelectual me falavam de perto. Gosto de reler, por exemplo, sua diatribe contra os professores, em que declara sua rejeição àquela “competência assassina” que pode se tornar um subproduto indesejável de nossa atividade. Ao lado de outros autores, ele foi determinante para meu interesse pelo gênero ensaístico. Cioran o praticou de modo excelente, sobretudo nos Exercícios de Admiração. Ali ele nos apresenta autores pouco conhecidos no Brasil, como Otto Weininger, Maria Zambrano, Guido Ceronetti, Benjamin Fondane, embora também fale de Valery, Fitzgerald e Beckett. Ele desperta nosso  interesse pela obra daqueles personagens pouco conhecidos e sugere uma leitura renovada dos mais difundidos. São escolhas e abordagens bastante pessoais, e mesmo idiossincráticas, mas sua visão é sempre sagaz. Seu texto sobre Borges é, para mim, canônico. São leituras que fizeram parte de uma experiência vital, longe de qualquer projeto profissional (que ele não tinha). A única exceção é o ensaio sobre Valery. Como lemos nos Cahiers, o projeto quase desmorona, pois ele recebera um polpudo adiantamento para escrever o prefácio a uma tradução norte-americana de obras daquele autor, mas, na releitura, descobre que sua avaliação mudara, e o tom final está longe de ser elogioso… Essas passagens dos Cahiers são muito elucidativas a respeito de seu ethos de escritor, de seu “método” de trabalho, se se pode dizer; e, no final, podem ser bastante divertidas, embora revelem muito de seu estado depressivo também.

R.M. – Como você situa Cioran no horizonte do pensamento filosófico e literário do século 20? Muito se discute sobre sua pertença ou não à filosofia, se o “pensador” romeno seria um filósofo (devidamente reconhecido como tal pelas autoridades instituídas) ou se seria um “mero escritor”, um “literato” sans plus (o que denota certo preconceito filosófico, escolástico e dogmático, ainda muito forte na Academia, como se a filosofia lidasse com a verdade objetiva e última sobre as coisas e a literatura fosse “mera ficção”). Seria esta uma discussão ociosa, impertinente?

A.S.C. – Da perspectiva que mencionei, penso que a obra de Cioran nos conecta com questões de grande relevância presentes na filosofia antiga, e também na contemporânea. Ele frequentou com interesse os filósofos antigos e helenistas, ao lado dos autores da tradição oriental, para quem a questão, digamos, existencial, ocupa o primeiro plano. Seu “Adeus à filosofia” pode ser lido como uma chave para entender uma virada pessoal nessa direção, que traz a marca de um ceticismo radical, de tipo pirrônico. Acrescentaria aquilo que conhecemos sobre o modo de vida que adotou, um ideal de existência que podemos aproximar ao dos cínicos. Penso que, em seu estilo, interfere algo da chamada parrhesia (franqueza, liberdade)cínica, ao lado, é claro, do ceticismo. Quanto à sua caracterização como “literato”, isso para mim seria, na verdade, um plus. Acredito que a filosofia acadêmica tem a ganhar no contato com os “moralistas”, alguns deles notáveis escritores e “psicólogos”. Já citei La Rochefoucauld, Lichtenberg, Leopardi, Nietzsche, mas penso também em Pascal, Chamfort, Joubert e outros. Ao lado deles, Cioran não faz má figura. À parte a questão do estilo e da análise do fenômeno humano, a literatura traz maior liberdade em relação a temas que a filosofia profissional tende a desprezar, embora autores canônicos como Bacon, Hume e outros os tenham abordado com desenvoltura, na esteira de Montaigne: a vida intelectual, a delicadeza, a amizade, a depressão, o casamento, o sexo, o suicídio, a morte, etc. É a vertente ensaística da filosofia, um verdadeiro teste de amadurecimento para o filósofo.

R.M. – Como você avalia, prospectivamente, a inserção de Cioran na universidade brasileira, como um objeto de estudos entre outros? Quais aspectos da obra do filósofo romeno e quais fatores contingentes, exteriores a ela (político-ideológicos, por exemplo), dificultariam essa inserção? Tenho a impressão de que Cioran tende a encontrar maior acolhida nos departamentos de Letras e Teoria Literária do que na Filosofia, onde ainda vigora certo escolasticismo…

A.S.C. – No espaço universitário das Letras ele não é muito conhecido, aparentemente. Meus alunos, mesmo de pós-graduação, normalmente têm o primeiro contato com Cioran em minhas aulas. Uma única vez o vi ser citado na academia: foi em uma banca sobre Borges, quando uma especialista falou dele de modo muito elogioso. Teria essa ausência alguma relação com aquilo que você denominou “escolasticismo”, presente, para o bem e para o mal, também nos estudos literários?  Consola-me pensar que Cioran provavelmente não quisesse ser lido por universitários, uma tribo da qual ele se distanciou decididamente.

R.M. – Julio Cabrera, filósofo argentino radicado no Brasil, publicou um artigo sobre “a filosofia no fogo cruzado de direita e esquerda”,[1] no qual argumenta que é uma contingência o fato de a filosofia institucional brasileira ser historicamente alinhada à esquerda, e que a dicotomia esquerda-direita não coincide com a distinção entre filosofia institucional e filosofia “autoral”.[2] Vejo Cioran no meio desse “fogo cruzado”. Por mais que ele, como cético, não se identifique, em última análise, com nenhum dos dois lados na dicotomia ideológica,[3] tende a ser “cancelado” pela esquerda como um autor “de direita”, e pela direita como um autor “niilista”, “ateu”, “cínico”, entre outras virtudes nada conservadoras. Por outro lado, sabemos que Cioran conta com muitos leitores cativos à esquerda e à direita, entre ateus e crentes igualmente. Você acha que quanto mais fechada em sua bolha ideológica, menos receptiva a pessoa tende a ser à obra de Cioran, menos propensa a apreciá-la?

A.S.C. – O tema das “bolhas”, e o da polarização, sobretudo com as chamadas “guerras culturais”, define um horizonte muito peculiar, ainda a ser compreendido, mas certamente diferenciado em relação às circunstâncias de produção e recepção inicial de sua obra, como de resto ocorre com outros autores que gozavam de uma recepção, digamos, consolidada. Quero dizer que, quase trinta anos após seu falecimento, os temas políticos de que ele tratou, e que fizeram parte de sua experiência, inserem-se em um panorama que sofreu modificações. Penso, no entanto, ser ainda atual sua abordagem tanto da utopia como do pensamento reacionário. Ele era talvez cético quanto à democracia liberal mas o era ainda mais em relação aos radicalismos, que julgava antes de tudo estéreis e postiços. “Todo ocidental atormentado me faz pensar em um herói dostoievskiano que tivesse uma conta no banco”, aforismo que diz o suficiente como comentário ao panorama intelectual de nosso tempo. 

R.M. – Para além da querela ideológica (e da dicotomia) entre esquerda e direita, receio que o positivismo, o utilitarismo, a lógica da eficácia total, vícios que perpassam todas as esferas da nossa cultura, também indispõem à apreciação da obra de Cioran.[4] O que o autor defende? Quais são seus ideais e suas convicções? Como sua obra pode ser útil para a humanidade? Serve para quê? Vejo a obra de Cioran como o subproduto de uma poética da inutilidade e do fracasso, um “inutensílio” (Manoel de Barros), um artefato poético que, não servindo para nada, produz, não obstante, um estranho (e salutar) efeito, como se dotada de virtudes taumatúrgicas e catárticas, do poder de espantar e desiludir, num primeiro momento, para, em seguida, quando menos se espera, inspirar e encantar… Do grotesco ao sublime, do horror ao júbilo… Após uma juventude desesperada e fanática, quando insistiu em identificar o destino histórico do seu povo com o seu próprio destino existencial, aspirando a salvar a pátria e, assim, salvar a si mesmo, Cioran, a partir do Breviário de decomposição, passa a aspirar a uma “santidade do ócio”, a “ser mais inutilizável que um santo”, no que se aproxima de Baudelaire (outro “antimoderno” por excesso de modernidade[5]). O Poeta Moderno por antonomásia escreveu: “Ser um homem útil sempre me pareceu algo hediondo”. Quando todas as coisas precisam servir para algo, ter uma utilidade qualquer, um artista verbal como Cioran – obstinado na poética da inutilidade e do fracasso – tende a ser desprezado, não levado a sério? O “inutilitarismo” está fadado à impopularidade em uma sociedade consumista, tecnocrática e hiperideológica?

A.S.C. – Esse me pareceu um diagnóstico bastante pertinente. Mas poderíamos forçar um pouco a ideia e identificar a utilidade, para a saúde individual, de uma perspectiva como a sua – como corretora de ilusões. Não me espantaria se o víssemos regressar para a margem, pelas razões que você indicou. Isso me parece inevitável, mas não de todo lamentável, no sentido paradoxal da avaliação que ele fez sobre Borges: a de que o autor argentino estaria melhor nas sombras, anteriormente à sua popularidade.

R.M. –Apesar da antipatia (e do antagonismo) de Cioran em relação a contemporâneos como Blanchot, Bataille, Barthes, Camus e Sartre, pode-se discernir inúmeras afinidades eletivas entre eles, certo “ar de família”, convergências e coincidências que denotam uma espécie de parentesco ou cumplicidade epocal. Como você vê a relação de Cioran com seus contemporâneos? Qual é o “lugar de fala” do autoproclamado “Exilado Metafísico” entre os franceses na segunda metade do século 20?

A.S.C. – Não me sinto capaz de responder a essa pergunta, mas tenho muita curiosidade com relação a dois autores contemporâneos seus, que viveram também uma certa marginalidade institucional: o filósofo Vladimir Jankélévitch (1903-1985) e o romancista e ensaísta Gregor von Rezzori (1914-1998). Muitas vezes me vi pensando nos pontos de contato entre eles, que podem ser apenas anedóticos; de todo modo, os traumas do século XX contribuíram para definir suas obras, e uma espécie de exílio em relação ao mainstream, o que se reflete na temática e na perspectiva irônica e humorística que compartilham.

R.M. – Para concluirmos esta entrevista, tão instigante no sentido de convidar a pensar sobre Cioran, uma pergunta de cunho mais subjetivo sobre suas preferências no conjunto da obra do autor romeno. Tem algum livro preferido (ou mais de um)? Você gosta mais do estilo aforístico, da veia ensaística, ou de ambas as formas indistintamente? Tende a gostar mais dos livros romenos ou franceses, ou ambos?

 A.S.C. – Quase nada conheço da obra romena. Fiando-me, talvez, no discurso do próprio Cioran, me acostumei à ideia de que é a partir da experiência francesa que ele se torna um autor relevante. Essa virada corresponderia a um verdadeiro renascimento espiritual, que ele vincula ao abandono da língua romena. Enfim, pouco tenho a dizer sobre tal etapa de sua obra, exceto que me indago sobre o seu interesse em apagá-la, ou sobre o quanto isso não teria a ver com o eco, presente nela, de suas posições políticas de juventude –  bastante comprometedoras, para dizer o mínimo. Já disse que o vejo como um ensaísta dos mais notáveis. Poucos autores são capazes da contundência que ele obtém, combinando um viés analítico cruelmente realista a um humor, uma expressividade tão característicos. Isso transparece mais claramente nos aforismos, que convidam a uma leitura irônica, o que é sempre salutar, embora possam parecer indigestos para alguns. Nesse sentido, os ensaios são mais amigáveis, com a exposição de suas preferências, gostos e admirações. É um contraponto ao seu lado marcadamente “negativo”.  Além disso, acredito que seus Cahiers são um caso raro de textos escritos “para si mesmo” cuja leitura pode ser uma experiência de grande relevância, à altura das Meditações de Marco Aurélio, dos Sudelbücher de Lichtenberg, dos diários de Emerson, dos Escritos íntimos de Baudelaire, entre alguns outros.   


NOTAS:

[1] CABRERA, Julio, “A filosofia no fogo cruzado de direita e esquerda”, Argumentos – Revista de Filosofia, Universidade do Ceará, Fortaleza, ano 13, n.º 25, jan.-jun. 2021. Disponível em: http://periodicos.ufc.br/argumentos/article/view/61494

[2] Dialeticamente, Cabrera demonstra os prós e contras de ambos os caminhos do pensamento filosófico: o acadêmico e o extra-acadêmico (“autoral”). Por um lado, a filosofia acadêmica pode arrogar-se a pretensão de representar o verdadeiro “saber filosófico competente”, a prerrogativa de autenticidade, qualidade e rigor, devidamente certificados (diploma, CV Lattes, artigos indexados, etc.), ao passo que o pensamento filosófico diletante, que se desenvolve fora dos moldes acadêmicos e de sua autoritas instituída, tende a ser desqualificado como impostura ou incompetência metodológica. Por outro lado, a filosofia “autoral” (extra-acadêmica) permitiria, segundo Cabrera, certa desenvoltura intelectual, a liberdade de experimentação e de pensamento (intuitivo, não meramente analítico), além da oportunidade de dialogar com uma variedade de autores que, nos departamentos acadêmicos, estariam normalmente segregados, incomunicáveis entre si, por serem considerados “de direita” ou “de esquerda”.

[3] “Os direitistas fazem-me desgostar da direita; os esquerdistas, da esquerda. Na verdade, com um direitista eu sou um esquerdista e com um esquerdista, um direitista.” CIORAN, E. M., Caderno de Talamanca. Trad. de Flavio Quintale. Belo Horizonte: Âyiné, 2019, p. 51.

[4] Remetemos a leitora à obra de Nuccio Ordine, filósofo e escritor italiano que se dedicada ao tema da inutilidade, bem como sua importância na economia da existência humana. Cf. ORDINE, Nuccio, A utilidade do inútil. Trad. de Luiz Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

[5] Tomo a categoria do “antimoderno” de Antoine Compagnon: Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Trad. de Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2014.


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