A consciência dilacerada de Cioran era um perpétuo campo de batalha, o que explica a sua atração pelas diversas formas de sagesse, do Ocidente e do Oriente. A necessidade de sabedoria é sintomática, o índice do grau de desassossego consigo mesmo. Da enfermidade existencial. No limite, o desespero. A sua obra é como uma tela onde se pode ver cosmogonias e apocalipses, o drama de um eu dividido, separado de si, em luta consigo mesmo. “Esse maldito eu”…
Na hermenêutica de Gadamer, o preconceito enquanto tal (Vorurteil, literalmente “pré-julgamento”, “pré-juízo”, como em espanhol, prejuicio, e em inglês, prejudice) não é necessariamente um mal, não possui a conotação inequivocamente depreciativa que lhe conferiu o espírito crítico do Iluminismo. Mantendo-se a meio caminho entre o rechaço iluminista e a exaltação romântica do preconceito, Gadamer pensava que este não é nem positivo nem negativo até obtermos o juízo/julgamento definitivo acerca de determinada coisa.
Toda compreensão, ou interpretação, parte de pré-conceitos, que podemos ressignificar em termos de pressupostos. Não existe um grau zero ou a ausência de todo pressuposto. Talvez apenas em estado meditativo, em comunhão com o vazio… “Os preconceitos incluem o significado das palavras aprendidas, nossas preferências, os fatos que aceitamos, nossos valores e juízos estéticos, nossos juízos sobre a natureza humana e o divino, e assim por diante.” (Lawrence K. Schmidt, Hermenêutica, p. 146).
A obra de Cioran, que é sempre recomendável abordar por uma perspectiva hermenêutica, nos oferece uma ilustração notável da atualidade e operatividade de certos preconceitos atávicos. Tome-se por exemplo a sua fixação pela doutrina da Queda, por mais que o pensador romeno gostasse de experimentar com interpretações “heterodoxas” do pecado original, (chegando a localizá-lo mais acima, no próprio ato da Criação).
Um dos conflitos mais notáveis do caso de consciência que se manifesta na obra de Cioran se dá entre a demolição crítica dos preconceitos e o recurso hermenêutico a eles, entre ceticismo e necessidade de crença (sempre conferidora de sentido): “Não acredito no pecado original à maneira cristã, mas sem ele não eu não poderia entender a história universal. A natureza humana está corrompida desde a raiz. E não, eu não falo como um crente, mas sem essa ideia, não consigo explicar o que aconteceu. Minha atitude é a de um teólogo incroyant, um teólogo ateu.” (Entretiens) O Cético diria que o “téologo ateu” permanece sendo demasiado teólogo, crente até no ateísmo…
Clément Rosset que o diga, ele que era amigo de Cioran. A sua filosofia trágica é uma filosofia da não-interpretação, do real (cujo “anti-fundamento” é o acaso) como não-interpretável por excelência. O real é alogos, e o mutismo natural do mundo (o fato de que “o mundo não fala, só nós falamos”, segundo Rorty) é uma indigência que leva Cioran a caçar “explicações” ou “interpretações” para dar conta de compreender o incompreensível, para dar um sentido ao absurdo. Rosset postula o acaso como (anti)princípio trágico da existência; Cioran postula a necessidade (negativa), um fatalismo: o élan vers le pire [elã em direção ao pior]. Sofro e estou descontente, imediatamente sou tomado pela pergunta, como uma obsessão: mas, por quê? “Onde quer que haja dor, haverá castigo, nos diz Nietzsche. É que o sofrimento é como a prova mesma desse castigo, logo, da culpa; porque se o acontecimento que não deveria ser se produz apesar de tudo, é que, apesar de tudo, teve de ser, e a ideia de pecado e culpa é a única explicação possível.” (Clément Rosset, Le monde et ses remèdes)
Abordemos um outro preconceito que se manifesta na obra de Cioran até os textos tardios. Trata-se, neste caso, não de um preconceito teológico e religioso, mas eminentemente filosófico e metafísico: o essencialismo. De matriz platônica, enviesada pelo filtro do neoplatonismo, o essencialismo do pensamento de Cioran se revela mais intenso na juventude, por exemplo no Livro das ilusões (1936), onde há longas ruminações sobre o conflito e a confusão última entre “essências” e “ilusões”. Em Do inconveniente de ter nascido (1973), há um aforismo interessante em que o essencialismo aparece no âmbito de um questionamento sobre o “verdadeiro eu” do autor:
X insulta-me. Preparo-me para o esbofetear. Pensando melhor, abstenho-me de o fazer.
CIORAN, Do inconveniente de ter nascido, p. 22.
Quem sou? Qual é o meu verdadeiro eu: aquele que replica ou aquele que prefere recuar? A minha primeira reacção é sempre enérgica; a segunda, frouxa. Aquilo a que chamamos «sabedoria» é, no fundo, apenas um perpétuo «pensando melhor», ou seja, a não-acção como primeiro impulso.
O interesse que este aforismo suscita se baseia na combinação de récit anedótico/autobiográfico e reflexão filosófica. Cioran havia sido insultado e, explosivo como era, chegou a pensar em “esbofetear” o insultador, mas acabou “pensando melhor” e desistindo da reação. A anedota é um pretexto para a ruminação sobre o que seria o “essencial” da questão: a natureza da sabedoria e, ao mesmo tempo, a (“verdadeira”) natureza do eu.
Detendo-se no instante que precede a decisão, no dilema entre reação e não-reação, ocorre a Cioran a dúvida sobre de que lado estaria o seu “verdadeiro eu”, ou como ele seria mais verdadeiramente ele mesmo, cometendo uma agressão ou optando pela não-ação, que viveu preconizando em seus livros. “Qual é o meu verdadeiro eu?” A questão (demasiado metafísica, essencialista) é ociosa e nada pragmática. É razoável supor que essa especulação tenha sido a posteriori, em retrospectiva, na hora de escrever o aforismo, e não durante o episódio.
Não existe um “verdadeiro eu”, um “eu essencial”, transcendental e sempre idêntico a si mesmo. Todo o “eu” é já, desde sempre, aparência, fenômeno: não há um “eu-em-si” por detrás do fenomênico. O “eu” é uma ipseidade em devir, não uma identidade imutável e fixada na eternidade, para o conhecimento de um Ser supremo. Talvez, no passado, em sua juventude, Cioran tivesse reagido de outra maneira, sem nenhuma “sabedoria”. Mas as pessoas mudam, algumas para pior, outras para melhor.
Quanto a Cioran, sendo a ironia uma constante no seu pensar-dizer (logos), assim como a melancolia, é por ela que devemos entender a qualificação de “frouxa” da não-reação ao insulto, e é ela também que inspira esta sentença, ao final de “Teoria da bondade”: “Por haver escolhido a fleuma de imbecil e a apatia do anjo, excluí-me dos atos e, como a bondade é incompatível com a vida, apodreci-me para ser bom” (Breviário de decomposição)
Enfim, pode-se responder pragmaticamente que o “verdadeiro eu” de Cioran, naquele momento, naquela experiência desagradável, corresponde ao “eu” cuja decisão prevaleceu: o que preferiu recuar, recorrer a esse “perpétuo ‘pensando melhor'” que é, segundo ele mesmo, toda a sabedoria: “a não-ação como primeiro impulso”. A julgar pelo modo como agiu, Cioran podia dormir sossegado: o seu “verdadeiro eu” foi sábio, ao menos naquela ocasião…
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