PREFÁCIO

Eis um livro pouco comum, sob todos os pontos de vista. Um livro difícil de qualificar, pois nele encontram-se literatura, lingüística, história, política, instituições, grandes eventos e, principalmente, diplomacia. São vários assuntos que o leitor desprevenido poderá encontrar na própria epigrafe “nada empenho, nada proponho, exponho”.
O maior interesse do autor foi salvar do esquecimento muitos valores que estariam condenados ao sono empoeirado dos arquivos ou às traças vorazes das estantes. O texto se desenrola como uma agenda histórica — com seus relatórios culturais minuciosos e ricos — ou como preocupação exclusiva e obsessiva de registro dos fatos, sem nenhuma intenção de estabelecer juízos de valor sobre esta ou aquela personalidade.
Assim o autor, ao longo de 30 anos de trabalho incessante, entre os quais dois anos de residência na Romênia, convida o leitor a mergulhar no universo curioso das relações romeno-brasileiras. Mas é uma leitura proveitosa e estimulante, principalmente para aqueles que querem conhecer — por razões profissionais ou mera curiosidade — a história de um país de fala latina.
É afinal um livro de impressionantes dimensões e que sugere uma enciclopédia dedicada às relações culturais Brasil e Romênia, desde o primeiro conhecimento bilateral — realizado na primeira metade do século XIX — até os tempos atuais.
Os doze grandes capítulos oferecem uma orientação geral dentro de cada um dos subcapítulos, ao lado de informações ricas e variadas, em que o leitor terá de esquecer a tentação de buscar mais informações pelas inúmeras sugestões oferecidas.
Como um cronista medieval, o professor Vilas-Boas da Mota procura ser uma testemunha imparcial, sem tomar decisões ideológicas, políticas ou engajadas.
No seu livro, direita e esquerda, ditadores ou presidentes eleitos, reis e chefes da república, filósofos, jornalistas, políticos, cientistas e escritores se encontram relacionados numa alternância harmoniosa. Esta enciclopédia sui generis possui o maior número de personagens romenos jamais tratados na maioria dos livros de história. E ainda acrescenta todos os romenos que visitaram o Brasil no último século.
É de maior interesse o relato de testemunhos diretos de brasileiros que viajaram pela Romênia; essas anotações espontâneas são extremamente preciosas porque são reunidas pela primeira vez em livro. A visão da Romênia vista por estes brasileiros, por vez em gênero, por vez surpreendente. Excluem-se, todavia, os testemunhos moldados no tempo da ditadura de Ceausescu.
Brasil e Romênia: pontes culturais registra praticamente tudo que existe, culturalmente falando, nas relações entre os dois países. E pode-se dizer que são muito raros os livros que conseguem esgotar completamente o tema anunciado pelo título. O livro do professor Vilas-Boas da Mota é um deles. Nas suas páginas cabem todo um mundo, como numa obra de ficção. Olhando assim para este mundo com milhares de personagens e de destinos, que cobram mais de um século e meio, poderíamos chamá-lo “Romance involuntário”, um daqueles romances pós-modernos construídos por milhares de fragmentos aparentemente aleatórios, mas que formam uma realidade nova, inteiramente original.
É com uma imensa gratidão que os romenos e os brasileiros devem receber este extraordinário presente oferecido pelo Professor Ático Vilas-Boas da Mota. Concentra-se aqui toda uma vida de estudo, de pesquisa, de esforços, de dedicação e de fidelidade cultural; é uma poligrafia com objetivos exaustivos, largamente confirmados, ou seja, um livro que esgota os temas propostos, deixando pouco espaço para ulteriores tentativas no mesmo sentido.
Mihai Zamfir
Embaixador da Romênia no Brasil
INTRODUÇÃO
a) Critérios operacionais
Nesta obra, adotamos amplos critérios, muito pessoais e abrangentes, porque, desde o começo, ela não foi concebida segundo os rígidos princípios tradicionais, geralmente adotados em suas múltiplas congêneres: em primeiro lugar, usamos preferente e intencionalmente o termo ponte em vez de capitulo. Por quê? E aqui vai a resposta que julgamos plausível: Quando se trata de capitulo, neste sempre prevalece de maneira forçosa uma indispensável interdependência entre si, isto é, entre o anterior e o imediatamente posterior, enquanto a ponte, segundo o nosso critério libertário, não passa de um simples vetor, válido por si mesmo, ou seja, cada uma delas tem o seu alfa e seu ômega, pois é independente e, por isto mesmo, aproxima-se muito mais dos conhecidos verbetes (ou entradas) dos vários dicionários e enciclopédias, sobre os quais – forçoso é relembrarmos – nunca recaem a pecha ou maldição de serem desorganizados.
Não seguimos, por opção, a ordem alfabética porque a julgamos desnecessária, haja vista o número reduzido dos subtemas, porque isto nos faz lembrar aquilo que nos estudos lingüísticos recebe o nome genérico de área semântica, como bem podemos observar no Dicionário das Ciências da linguagem (1975), de Oswaldo Ducrot e Tzvetan Todorov, edição portuguesa orientada por Eduardo Prado Coelho. Apesar de esta obra intitular-se dicionário, não obedece, contudo, a costumeira ordem alfabética. Portanto, voltamos a repetir, neste livro, cada ponte é completamente independente e, por isto mesmo, válida por si mesma, isto é, bastante auto-suficiente. Este critério, talvez inovador ou pouco convencional, pode, injustamente, suscitar uma apressada impressão de que se trata de uma obra assistemática.
E aqui vale uma rápida digressão: Se se tratasse de uma produção literária propriamente dita, ou melhor dizendo, de um texto ficcional tradicional, a seqüência dos capítulos teria que ser obrigatória, em progressão ordinal, como também ocorre na literatura popular cujas estórias sempre seguem o velho modelo escolástico: começo / meio / fim, enquanto na literatura erudita, mais flexível, às vezes o ficcionista não se vê obrigado a seguir aquele modelo do fio narrativo horizontal progressivo estereotipado, podendo rompê-lo de acordo com seu idioleto, ou seja, começar pelo fim como é o caso exitoso, entre nós, do romance Crônica da casa assassinada (1959) do mineiro Lúcio Cardoso (1913-1968), cuja narração começa pela morte do personagem em vez de seguir a ordem natural: nascimento, vida e morte. Outro exemplo singular, vamos encontrar no romance Rayuela (Amarelinha / 1963) do argentino Júlio Cortazar (1914-1984), cuja estrutura permite ao leitor certa liberdade ao escolher o capitulo a ser lido, quebrando, portanto, a seqüência progressiva tradicional que, neste caso, não é obrigatória. Seria bom lembrarmos também o exemplo da obra de Liviu Rebreanu (1885-1944): Adão e Eva (1925), primeiro romance reincarnacionista romeno, no qual cada capitulo vale por si mesmo e, por esta razão, o leitor só vai perceber que existe o fio condutor subjacente no último capitulo. Concluindo: neste caso, os capítulos são independentes entre si, pelo menos na aparência.
Além do mais, é mister lembrar que o nosso trabalho, realizado ao longo de mais de vinte anos, jamais pretendeu assumir a condição de uma análise, interpretação, avaliação e, muito menos, um livro de tese com os respectivos e necessários juízos de valor sobre o nosso intermitente relacionamento cultural bilateral, justamente pelo simples fato de que se assim fizéssemos, seríamos obrigado, por questão de lógica, a assumir uma posição ideológica, sobretudo quando os enfoques fossem direcionados à práxis política, porque, segundo a nossa ótica, em matéria de política partidária, só temos certezas provisórias, o que nos faz lembrar, refletir e interpretar a atitude de Erasmo de Rotterdam (1469-1536), expoente máximo do humanismo cristão desligado de qualquer polêmica religiosa. No calor dos debates, ele sabia ouvir, com paciência e perplexidade, tanto os papistas como os reformistas e, no final escreveu: Encomium moriae (O elogio da loucura, também conhecido popularmente como Laus stultitiae), belo exemplo de sátira e uma verdadeira quintessência de ironia.
Nosso trabalho tem como única e exclusiva pretensão ser o mais abrangente possível, procurando, em toda a sua extensão, em todas as suas pontes, elaborar um registro isento, distanciado, frio, sereno, imparcial, valores que devem presidir sempre qualquer crônica histórico-cultural num exercício apenas notarial, assinalado, portanto, pela necessária, absoluta e louvável neutralidade, embora reconheçamos, de antemão, que tal posicionamento por si mesmo já implica numa certa orientação ideológica, porém completamente desapaixonada. E aqui releva registrarmos e louvarmos a bela lição do grande mitólogo e historiador Mircea Eliade (1907-1981), em seu primoroso Tratado de história das religiões (1949) que, depois de virar pelo avesso os postulados do confucionismo, cristianismo, xamanismo, hinduismo, budismo, judaísmo etc. não deixa transparecer, em parágrafo algum, qual era a religião do autor, comportamento muito raro, raríssimo, entre os tratadistas destas matérias os quais, geralmente, são proselitistas e procuram puxar a brasa para a sua própria sardinha. Coerente como ele sempre soube sê-lo, prosseguiu na mesma linha comporta- mental em sua não menos importante obra Dicionário das religiões (1995), em co-autoria do desditoso ensaísta Ioan Petru Culianu (1950-1991).
Como já confessamos aos nossos leitores, procuramos exercitar a eqüidistância das disputas ideológicas e, para mantê-la sempre presente, estivemos atento evitando a emissão de juízos de valor. O máximo que fizemos foi lamentar, insistente e profundamente, tomando como ponto de partida e testemunho apenas a triste e irrefutável realidade: 1º) A longa vigência da indesejável Guerra Fria que retardou muitíssimo o estreitamento de nossas relações culturais, pois, durante a sua trajetória, os nossos contatos culturais foram escassos, intermitentes, quase nulos; 2º) O desequilibro da balança das traduções literárias, ou seja, a Romênia, apesar de todas as suas vicissitudes históricas e suas limitações econômico-financeiras, tem traduzido muito mais autores brasileiros do que o nosso Brasil em relação à bela terra de Eminescu; 3º) A deplorável falta de um Plano de Ação Cultural (anual ou bienal) que viesse logo depois das assinaturas dos respectivos Acordos Culturais, pois estes, geralmente, ficam adormecidos nas gavetas ministeriais, e/ou diplomáticas após as suas solenes assinaturas-protocolares; 4º) A falta de cursos superiores permanentes de Língua portuguesa do Brasil em Universidades da Romênia e da Língua romena em suas congêneres brasileiras.
Quanto ao fato de havermos registrado nomes de personalidades ideologicamente tão antagônicas, vale a pena lembrar que nas farmácias coexistem os vasos de veneno ao lado dos antídotos ou dos medicamentos benéficos. Compete ao boticário exercer o seu cuidado, a sua lucidez e perspicácia para identificá-los e sempre mantê-los um bem longe do outro e, no semelhante caso do leitor, pesquisador ou simples consulente esporádico, cabe-lhes ser muito atentos, sagazes e inteligentes a fim de não misturá-los, sabendo, por conseguinte, separar o joio do trigo. Eis porque, muitos elementos antagônicos tradicionalmente coexistem um ao lado do outro, nas melhores enciclopédias do mundo: nomes tenebrosos com os de Nero, Herodes, Gengis-Kan, Dionísio I (o Antigo), Pizarro, Torquemada, Robespierre, Hitler, Stalin, Idi Amin estão ao lado dos iluminados: Cristo, Sócrates, Platão, Buda, São Francisco de Assis, Dom Bosco, Alberto Schweitzer, Pasteur, Allan Kardec, Alfredo Nobel, Fleming, Madre Teresa de Calcutá e muitos outros. Graças a Deus, estes últimos não se confundem com os primeiros, os perversos, nem tão pouco ambos entre si, os benfeitores da humanidade, porque cada um vale por si mesmo e para a humanidade: os primeiros representam o atraso espiritual da espécie humana, enquanto os segundos traduzem o amplo progresso da humanidade. Por conseguinte, compete ao leitor atento endereçar eventualmente os seus anátemas, suas maldições e suas repulsas em relação aos primeiros e suas palavras e pensamentos de gratidão, admiração e apreço aos segundos, tudo dependendo da cosmovisão e da filosofia de vida muito pessoal de cada leitor ou consulente.
Quanto aos viajantes, cujos nomes fazem parte desta obra, procuramos registrar os nomes daqueles poucos que encontramos ao longo de nossas pesquisas e não tivemos a menor preocupação de submetê-los ao crivo severo de uma critica – ou hipercrítica – embasada em valores positivos, excludentes, eminentemente seletivos. Tivemos rodo o empenho e cuidado de salvar, o máximo possível, qualquer informação que por ventura eles pudessem fornecer, uma vez que todos são importantes para o tão almejado registro cultural bastante amplo, como bem o fizeram os organizadores da excelente obra “Călători străini despre ţările române” (Viajantes estrangeiros sobre os país romenos / 1967), coleção que já alcançou muitos volumes, cuja lista nominal começa com o geógrafo árabe Ibn Battuta (1304-1377), que visitou os Países Romenos, mais precisamente a Dobrudja entre os anos de 1330-1331. Esta obra rica em dados de natureza vária, já alcançou o 8º volume com a figura do viajante alemão Karl Ewald Bönne (em 1711). Pois bem, nós seguimos tal orientação, pois daquela obra fazem parte gregos e troianos, grandes, médios e pequenos observadores, pois “tudo o que cai na rede é peixe”, no dizer popular do Brasil, sendo visível a intenção dos organizadores daquela obra registrar o maior numero de descrições, o que permite um retrato de corpo inteiro da Romênia vista de fora para dentro. Estamos certo de que esta coletânea há de prosseguir, pelo menos, até a 1ª metade do século passado, por- que os pesquisadores romenos são minuciosos, incansáveis e perfeccionistas e, por todas essas virtudes, gostaríamos muito de ser um de seus discípulos.
Não nos cansaremos de repetir que o presente trabalho tem por único e exclusivo objetivo salvar do limbo do esquecimento o maior número possível de referentes do nosso descontínuo relacionamento cultural bilateral e, para tanto, procuramos tirar leite das pedras, conforme nossa expressão popular sertaneja.
Ao longo do tempo de nossas pesquisas, conseguimos localizar dados aparentemente aleatórios presentes em muitas fontes pouco conhecidas ou completamente esquecidas e, para tanto, não hesitamos em vasculhar arquivos, bibliotecas, além de freqüentarmos com assiduidade os “sebos” e museus, as bibliotecas públicas e privadas, além de inúmeras consultas que fizemos por meio de cartas, telefonemas, telegramas, correios eletrônicos e questionários.
Muitas dúvidas também foram esclarecidas durante as nossas visitas seguidas de espichadas palestras.
Não elaboramos – sejamos franco – uma obra de argumentos e silogismos, mas tão somente de amplo registro histórico memorialista, desinteressado e, desta forma tabelionática, prestamos à Romênia a nossa modesta homenagem num preito de gratidão e incondicional apreço porque nela sempre enxergamos um país de sublimes lições culturais, porque duas delas sempre nos chamaram a atenção: a primeira pelo fato dignificante e enaltecedor de os geto-dácios, seus antepassados, estirpe honrada, não terem conhecido – e jamais utilizado a escravidão – enquanto todos os seus coetâneos e vizinhos, apesar de serem estimados como altamente civilizados, consideravam-na um fenômeno legitimo, natural e muito normal. A segunda, por nunca ter promovido uma guerra de conquista, porque todas aquelas que foi obrigada a enfrentar foram guerras de defesa. Acreditamos que a história universal devia apresentar a Romênia como um sublime exemplo para toda a humanidade porque ela pode, com a cabeça erguida, olhar a sua própria história sem ter remorso. Além disso, ela tem enfrentado com muita paciência e sabedoria, todas as vicissitudes históricas, traduzidas pelas seguintes máximas:
a) Apa trece, pietrele rămân (a água passa, as pedras ficam);
b) Indoaie-te ca trestia şi vântul nu te va rupe (Curva-te como o caniço e o vento não te vai quebrar).
Enfim, parodiando um intelectual de Goiás, nós, ao longo de mais de duas décadas, não fizemos outra coisa senão ajuntar gravetos para que outros pudessem fazer as suas belas fogueiras! E, se mais não o fizemos, não foi por falta de boa vontade ou de bem-quer ao Brasil e à Romênia, mas, tão-somente pela nossa limitação de talento e genialidade, somada à nossa crônica deficiência de recursos materiais.
Em face das imperfeições que permeiam a nossa obra, temos a esperança de saná-las, na segunda edição, se a Divina Providência nos permitir.
b) Remissão preambular: Brasil e Romênia: dois destinos comuns
O estudo das relações culturais Brasil-Romênia, amplo, horizontal e diversificado, infelizmente, até o momento nunca verticalizado. Explica-se: a maioria dos dados mar- cantes, isto é, os pontos indispensáveis a uma interpretação holística e amplamente abrangente até então ninguém se abalara a fazê-lo tão somente pelo simples fato de que as fontes, por demais dispersas, não animavam a quaisquer pessoas a lançarem suas vistas e o seu ânimo a tal empreendimento. Nós tivemos a coragem – pioneira e obsedante – de sair pelo mundo a fora a coletar dados que pudessem, no futuro, facilitar a tarefa daqueles que pretendessem alargar mais o nosso relacionamento cultural bilateral, isto é, apresentar estudos de corpo inteiro. Até lá, contentamos em ser o grande coletor de fontes dispersas ou, até mesmo, insuspeitáveis, numa tarefa de contribuir para a apresentação futura do macrocosmo do nosso relacionamento cultural.
A necessidade de estudos de tal natureza já foi apregoada em conferências, artigos e entrevistas de personalidades ligadas ao próprio processo cultural bilateral. No nosso caso particular, vem de há muitos anos o nosso interesse pela cultura romena por julgá-la – apesar da modéstia de seus portadores – uma das mais expressivas da neolatinidade que, por sua vez, integra-se no modernismo cultural, como um dos mais relevantes referentes, apesar do silêncio que às vezes parece atingi-la por parte do circuito hegemônico internacional. Não duvidamos – nunca duvidamos – da alta expressividade dos referentes culturais romenos capazes de ombrear-se com tudo aquilo que a história universal registrou como digno de louvor e / ou imitação. Aliás, ao longo do tempo, afloram – aqui acolá – nomes de personalidades da cultura romena que ultrapassam todas as limitações, inclusive, as de caráter idiomático.
Muitas foram as dificuldades que tivemos de enfrentar para reunir o maior número possível de informações sobre o nosso recíproco relacionamento cultural. Valeu-nos a pena o fato de termos reunido dados diversos desde a década de 1950, quando começamos a interessar-nos por tudo o que se relacionasse à Romênia, sobretudo à língua e à história. Desta forma, os nossos arquivos foram-se avolumando que fomos obrigado a designá-los por títulos e subtítulos, o que muito facilitou a nossa tarefa de classificar todo o material acumulado segundo a natureza de cada ponte. Em vez de capítulos nós distribuímos os assuntos, como já dissemos, por pontes. Cada uma delas encerra o máximo que se pôde reunir em matéria de natureza cultural. Com isto não significa a inexistência de lacunas – imperdoáveis, por natureza – mas que independem de nossa vontade. Fizemos todo o possível para que elas fossem plenamente preenchidas. Temos a esperança de sanar falhas e corrigir imperfeições, na próxima edição.
Aqui segue uma série de reflexões: sobre o nosso processo cultural bilateral em pleno andamento:
A consciência plena de sermos neolatinos e de procurarmos – por todos os meios – a ressonância de nós mesmos nos co-irmãos – povos e nações – vem contribuindo para o Brasil – um dos países mais ocidentais da neo-romanidade – encontrar no Oriente europeu, a Romênia, o melhor reflexo da alma brasileira. Os dois países pertencem à marginalidade fértil, no dizer do Embaixador Jerônimo Moscardo, em- bora ambos andem à procura de oportunidade para darem o seu recado de ser com todas as implicações ontológicas.
O relacionamento Brasil-Romênia pode ser examinado, grosso modo, sob duplo aspecto:
a) o de caráter oficial – ou oficioso – envolvendo go- vernos e instituições dos dois países;
b) o de caráter pessoal – ou espontâneo – e extra-oficial, apoiado na atividade de pessoas de boa-vontade.
Nos espaços brasileiro e romeno, vêm-se desenvolvendo, ao longo do tempo, diversos tipos de ações intermitentes que englobam aspectos que acabamos de mencionar, e que merecem, alguns deles, serem aqui registrados:
A visita pioneira do Coronel Sergio Voinescu no sécu- lo XIX, tendo como conseqüência imediata o apoio moral do nosso Imperador D. Pedro II, atendendo o apelo da coroa romena na pessoa do seu titular Carol I, que acabara de subir ao trono como 1º monarca romeno. É interessante lembrar ainda que foram poucos os países visitados por emissários romenos, pois os demais foram alvo apenas de uma carta-cir- cular da coroa romena enviada a todos eles. A assídua correspondência do imperador D. Pedro II e sua prima a princesa d’Istria bem atesta a afinidade entre as duas casas reais.
A estadia entre nós do navio “Bélgica” que, naquela época, levava o jovem pesquisador Emil Racoviţa (1868- 1947) que veio a ser o pai da bio-espeleologia.
A passagem ou estada também de grandes artistas, por exemplo, Darclée I. Hartulary (1886-1969), amiga de Carlos Gomes, além de Florica Cristoforeanu (1887-1966), as pioneiras. E, por sua vez, a visita do grande escritor brasileiro Afrânio Peixoto (1876-1947) à Romênia – aproveitando sua ida ao Oriente – da qual resultaram expressivas crônicas e epístolas entusiastas. A presença de Elena Teodorini (1857-1926), professora de bel-canto, no Rio de Janeiro, responsável que foi pela descoberta, formação e lançamento de nossa Bidu Sayão (1902-2002).
Uma das facetas de nosso folclore e da nossa etnografia foi utilizada pela escritora e diplomata Margareta Barcianu (1907-1940) quando de sua permanência no Brasil.
A influência indireta de Tristan Tzara (1896-1963) – o papa do dadaísmo – na Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922), além da colaboração direta de Ilarie Voronca (1903-1944) – o inditoso vanguardista romeno – prestada ao grupo literário em torno do periódico Festa. Acrescenta- se ainda a influência visível de Constantin Brancuşi (1876- 1957) na escultura e arquitetura modernas brasileiras.
A presença marcante de artistas plásticos romenos no Brasil: Emil Marcier (1916-1999), Samson Flexor, Íon Mureşanu e do tapeceiro Jean Villon, sem falar do incansável incentivador das artistas plásticas no Brasil, o empresário Jean Boghici. A Romênia também presenteou ao nossa país com o renomado fotógrafo Eddy Novarro, mundialmente conhecido. Não se pode, por sua vez, negar a influência de pen- sadores e estudiosos romenos do nível de um Mircea Eliade (1907-1986) ou de um Emil Cioran (1911-1995), além da repercussão das obras de Vintilă Horia (1915-1993), Constantin Gheorghiu (1894-1986), Eugen Ionesco (1909-1993), tendo sido este último revelado ao Brasil, pela primeira vez, por Luis de Lima que levou ao palco do Rio de Janeiro a famosa peça A lição, enquanto o Grupo de Teatro de Estudantes de Campinas (São Paulo) levou, na década de 1950, pela primeira vez, a peça de Caragiale Seu Leônidas perante a reação.
Vale ainda ressaltar que os primeiros escritores romenos conhecidos no Brasil foram a rainha poetisa Carmen Sylva (1843-1916) e o simpático Panait Istrati (1884-1935).
Quanto à literatura brasileira na Romênia no que se refere à balança das traduções, existe um lamentável desequilíbrio, isto é, há mais autores brasileiros traduzidos para o romeno do que a sua contrapartida, ou seja, livros romenos traduzidos no Brasil. Apesar dos esforços de Luciano Maia, poeta e excelente tradutor, urge sejam tomadas medidas concretas a fim de se corrigir esta disparidade.
Junte-se a tudo isto, a influência, decisiva e frutificante do ideário do economista romeno Mihail Manoilesco (1891- 1950), recentemente redescoberto e valorizado, entre outros, por Joseph L. Love, graças a sua opulenta monografia: A construção do Terceiro Mundo, teorias do subdesenvolvimento na Romênia e no Brasil, tradução brasileira, (1998).
Pois bem, o ideário manoilesquiano – se assim pudemos denominá-lo – terminou influenciando os responsáveis pelo processo de industrialização do Brasil, o que de certa forma representa o caminho de nossa independência em relação aos centros industrializados dos quais dependíamos. Convém seja lembrado também que a influência de Manoilescu estendeu-se a uma geração de economistas brasileiros que chegou até o período do governo Kubitschek. Portanto, o livro do “brasilianista” Joseph L. Love veio a lume para repor as coisas em seus devidos lugares e, ao mesmo tempo, convidar os nossos historiadores a fazerem novas revisões criticas justificativas sobre o nosso processo cultural bilateral.
No campo das ciências, a repercussão dos ensinamen- tos do famoso neurologista Gheorghe Marinescu (1861-1918) e da não menos famosa geriatra Ana Aslan (1897-1988), no campo da medicina, entre nós, foi e tem sido bastante visível. Some-se ainda o nome de George Emile Palade (prêmio Nobel), na biologia e a do físico Gheorghe Constantinescu e a sua técnica da sonicidade e tantas outras personalidades presentes nas teses de pós-graduação de algumas universidades brasileiras. Junta-se a esta plêiade de grandes iluminares, o nome do não menos brilhante cardiologista Andy Petroianu, radicado em Belo Horizonte (MG), onde vem fazendo escola.
No campo das artes plásticas, figura sempre lembrada é a de Constantin Brancuşi (1876-1957), embora muitos desavisados o tenham na conta de italiano.
Na música, bastante conhecido é o magistral George Enescu (1881-1955) com a sua Rapsódia Romena que o imortalizou.
Na história do cinema brasileiro não se deve esquecer o espaço ocupado pela extraordinária e insinuante Aurora Fúlgida (pseudônimo de Aurélia Cocăneanu (1880 – 1973) e, nos últimos tempos, a figura de Catarina Bonaki (1912- 2002) que atuou, com brilhantismo, no teatro e cinema, além da televisão.
Dentre as relações pessoais espontâneas, gostaria de chamar a atenção para a presença, entre nós, da escritora franco-romena Martha Bibesco que veio ao Brasil especial- mente com a esperança de escrever a biografia do jornalista e empresário Assis Chateaubriand (1891 – 1968), embora sem sucesso. O seu sonho foi realizado, muito depois, pelo escritor Fernando Morais.
Quem melhor difundiu as coisas da Romênia no Brasil, ao longo de cinqüenta anos, foi o saudoso jornalista e escritor Nelson Vainer (1910-1997), originário da Bessarábia.
Das últimas atividades que assinalam as relações Brasil-Romênia convém sejam mencionadas:
- A criação, em Fortaleza (Ceará), de uma atmosfera pró-cultura romena graças à atuação do poeta e tradutor Lu- ciano Maia, cônsul honorário da Romênia naquela cidade;
- A realização de uma expedição cientifica – a primeira no gênero – do Instituto Grigore Antipa (Bucareste) em colaboração direta com a Universidade Católica Santa Ursula (Rio de Janeiro) para o estudo de algumas regiões do Brasil, tendo sido pesquisada uma parte da bacia amazônica e a Chapada Diamantina (Bahia);
- A criação, em Brasília do Instituto Brasil-Romênia, em 1999, por iniciativa do editor Victor Alegria que contou com a colaboração do então Embaixador romeno Ioan Bar;
- A implantação, em Bucareste, da Fundação Brasil- Romênia na Calea Victoriei, por sugestão do nosso Embaixador Jerônimo Moscardo que contou com o apoio do engenheiro e empresário Ioan Mihaila e algumas outras personalidades. Pena que esta iniciativa tenha morrido no nascedouro.
Velhos sonhos que ainda não se consolidaram:
- A assinatura de um promissor Acordo Cultural Bra- sil-Romênia, seguido de um plano de ação anual;
- A inauguração de uma Cátedra permanente de Língua, Literatura e Civilização Romenas em algumas universidades brasileiras. O mesmo se diga da situação da língua portuguesa do Brasil e da Cultura brasileira, onde só se conta com algumas experiências – por esforços do Governo português – no que se refere à língua portuguesa. Nunca seria demasiado repetir que tais lacunas são resultantes da falta de aplicação de um Acordo Cultural bilateral capaz de regulamentar tais atividades. Ou a falta de um Plano Cultural executivo que dê andamento ao que se prevê nos protocolos diplomáticos.
O presente livro, Brasil e Romênia: pontes culturais pretende registrar o maior número possível de tentativas e de realizações – no passado distante e no recente – no sentido de estreitar as nossas relações culturais, além de despertar as consciências de nossos governantes para uma problemática tão importante. Os propósitos e as realizações neste sentido parecem perseguidos pelo Mito de Sísifo, o que nos faz pensar talvez na existência de forças subterrâneas alimentadoras deste mito – ou na simples lei da inércia – dominadores comuns de nosso relacionamento bilateral, ou, talvez, exista de fato uma gigantesca divisão do mundo em áreas de influência, o que termina por inviabilizar todo e qualquer esforço desinteressado de reaproximar os nossos países a partir dos apelos de nossa fraternidade neolatina. Neste momento, estamos pensando na monografia de Ary de Segadas Machado Guimarães, intitulada A riqueza romena, as vantagens d’um maior entendimento brasilo-romeno, publicada no Rio de Janeiro, em 1930. Pois bem, nesta monografia – pouco divulgada e elaborada por sugestão do então ministro plenipotenciário romeno Brediceanu foram registradas todas as vantagens de um estreito relacionamento com o Brasil, em sentido amplo. Muitas de suas propostas continuam ainda em discussão, sendo analisadas, pesadas e medidas nos seminários, nas visitas oficiais, nas conferências como verdadeiros bordões! Até quando?
O novo século parece querer mudar.
Oxalá que neste milênio se ponha fim, de uma vez por todas, ao determinismo do mito de Sísifo que tem, até agora, presidido as atividades bilaterais Brasil-Romênia.
Pretendemos fazer a franca apologia da Diplomacia cultural, apesar de uma parte dos responsáveis pelos destinos do intercâmbio internacional nem sempre se apresentem de acordo com o nosso ponto de vista. No dia 25 de março do ano 2003, na Rede Vida de Televisão (SP) num Programa de desta- que, foi entrevistado um diplomata dos quadros do Ministério das Relações Exteriores (Itamarati), licenciado e dedicado ao magistério superior que, apesar de revelar-se bem preparado, em nenhuma fase d sua entrevista sobre a Diplomacia Comercial fez qualquer alusão à Diplomacia Cultural, que nós consideramos de suma importância para o inicio e concretização dos próprios negócios internacionais, pois é uma verdadeira e eficaz abridora de portas. Aliás, os países hegemônicos que pretendem recuperar suas antigas posições de prestígio internacional praticam a Diplomacia Cultural por meio das seguintes instituições: Associação Brasil-Estados Unidos, Aliança Francesa, Instituto de Cultura Hispânica, Sociedade de Cultura Inglesa, etc. O Brasil, infelizmente, mantém, até agora, no mundo inteiro, apenas pouco mais de uma vintena de Centros de Estudos Brasileiros. Uma constatação bastante surpreendente: Portugal, muito menor do que o Brasil e contando com recursos financeiros bem menores, vem mantendo uma extensa rede de Institutos Camões que muito honra a Política Cultural lusitana.
A contribuição deste livro, apesar de modesta teve, como único escopo: tornar o oculto, visível, e fazer do Brasil e da Romênia dois pólos de atenção para a realidade de nosso potencial, porque são dois países com destinos comuns e com boas perspectivas, se for utilizado todo o potencial que dele faz “uma periferia fértil”.
Oxalá os nossos esforços não sejam em vão!
Ático Vilas-Boas da Mota. Brasil e Romênia: pontes culturais. Brasília : Thesaurus, 2010.
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