Prêmio Rivarol e a primeira geração da crítica cioraniana: José Lins do Rego e Ştefan Baciu (1950-1959)

O Précis de Décomposition e a repercussão do prêmio Rivarol na imprensa brasileira

1950 Correio da Manhã ano L no 17569 6ago1950
Correio da Manhã, 25 de junho de 1950

É digno de nota que a notícia do prêmio concedido ao Précis de décomposition, o livro de um enigmático escritor romeno expatriado na França, tenha chegado ao Brasil tão rápido, aparecendo logo no dia seguinte ao prêmio, anunciado em 24 de junho de 1950, portanto em 25 de junho do mesmo ano, no mesmo Correio da Manhã, no qual Augusto Frederico Schmidt havia publicado os três textos que compõem a primeira crítica brasileira da obra de Cioran. A breve nota, “Concedido o prêmio Rivarol”, anuncia: “Foi concedido hoje, em terceiro escrutínio e unânimemente, a Emílio Cioran (sic), rumeno, pelo seu ensaio intitulado ‘Tratado de Decomposição’; é de 50.000 francos o total do Prêmio.”[1] O Correio da Manhã tornaria a comunicar a entrega do prêmio ao livro de Cioran mais uma vez, em 6 de agosto de 1950, desta vez informando os membros do júri, e grafando “Emile” em vez de “Emílio”, além do título no original francês.[2]

1950 Diário de Pernambuco 19nov1950
Diário de Pernambuco, 19 novembro 1950

Outros jornais também noticiaram a entrega do prêmio Rivarol ao Breviário de decomposição, livro mal digerido por Augusto Frederico Schmidt. Todos eles cariocas, à exceção de um. Além do Correio da Manhã, notas sobre o prêmio Rivarol, o autor “rumeno” (Emílio, Emile), e o Précis (“Tratado”), aparecem no Diário de Notícias (9 ago. de 1950) e em O Jornal (3 set. 1950), e também, feliz exceção, em    um jornal do Nordeste: o Diário de Pernambuco (19 nov. 1950). Além dos jornais, menção seja feita às revistas Cigarra e A Casa, voltadas ao público feminino, que anunciaram, nas edições de setembro de 1950 e janeiro de 1951, respectivamente, a entrega do prêmio Rivarol a Emil Cioran, escritor “rumeno” de Précis de décomposition.

A partir de 1950, graças ao Breviário de decomposição – que foi, para sua surpresa, um sucesso de crítica e de público, vencendo o Rivarol por unanimidade – Cioran se torna um conhecido de críticos, poetas, escritores e leitores brasileiros, tornando-se um nome promissor no horizonte literário parisiense, com sua cultura de prêmios. Pode-se dizer que, desde então, e sobretudo nas três ou quatro primeiras décadas a partir de 1950, não há praticamente nenhum ano em que não haja ao menos uma menção a Cioran nos jornais brasileiros – e elas tendem a se tornar cada vez mais especializadas, consistentes, fundadas, e menos cheias de erros e equívocos sobre o autor e sua obra.

Ştefan Baciu, José Lins do Rêgo e a presença crescente de Cioran na imprensa brasileira: 1950-1959

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Ştefan Baciu (esq.) e José Lins do Rego (dir.)

Após Augusto Frederico Schmidt, os dois principais interlocutores culturais de Cioran no Brasil são apreciadores do Breviário, dir-se-ia simpáticos ao pensamento do autor, que tiveram a chance de conhecer em momentos e ambientes muito distintos. Trata-se do romancista e cronista paraibano José Lins do Rego (1901-1957) e de Ştefan Baciu (1918-1993), intelectual e jornalista romeno que se estabeleceu no Brasil após a Segunda Guerra, onde teve uma produção jornalística prolífica, antes de mudar-se ao final da vida para o Havaí, onde viveu até o fim.

Baciu é ex-aluno de Cioran, nascido em Brasov, cidade romena em cujo liceu Cioran teria sua única, efêmera e mal-sucedida experiência docente. Há no Cahier L’Herne Cioran um texto seu, uma memória dos anos escolares, em que ele evoca a lembrança de Cioran como professor no liceu de Braşov. Um ex-aluno que migrou para o Brasil, onde, acompanhando de longe o périplo literário de seu antigo professor, divulga sua obra, inédita em português, sempre que pode. Diferentemente de José Lins do Rego, Baciu é talvez mais importante como divulgador das obras de toda uma constelação de escritores romenos no exílio, entre eles Cioran, do que por dedicar-se especialmente a Cioran em seus textos jornalísticos brasileiros.

1950 Correio da Manhã ano L no. 17641 17set1950
Correio da Manhã, 17 de setembro 1950

O primeiro dos textos de Ştefan Baciu na imprensa brasileira de que temos conhecimento, publicado no Correio da Manhã, data de 27 de setembro de 1950. Intitula-se “A literatura romena no exílio”. Trata-se de uma crítica à ditadura comunista na Romênia e um louvor aos intelectuais romenos, dentro e fora do país, que se destacam por sua liberdade de pensamento e por sua resistência ao regime, correndo o risco de serem perseguidos, presos, ou mesmo assassinados. Escreve Baciu: “A vida espiritual atrás da cortina de ferro é caracterizada principalmente pela atmosfera sufocante, favorecida pelos dirigentes da literatura soviética. De Moscou ao interior do continente europeu, não há assunto mais interessante que o vulto de Stalin, a quem são dedicados romances, ensaios e poemas – num estilo que lembra as odes e os hinos a Mussolini e a Hiter.” Em seguida, Baciu faz um raio-x da situação no seu país, atrás da cortina de ferro: “Calam-se os maiores escritores da Romênia, e recusam-se a pôr o seu nome em baixo de trabalhos encomendados. O poeta Tudor Arghezi, que renovou a língua romena, encontra-se velho e doente. Num subúrbio de Bucarest, o filósofo Lucian Blaga, que erigiu o único sistema filosófico válido da Romênia, arrasta uma existência obscura. […] Outros escritores se viram forçados a procurar a morte, e ainda outros pereceram no cárcere”, como por exemplo Mircea Vulcanescu. Mais adiante, o jornalista romeno radicado no Brasil fala dos escritores romenos no exílio, e particularmente de Cioran, “o jovem filósofo, cujo livro: ‘Traité de décomposition’, ganhou o prêmio ‘Rivarol’. Cioran é hoje um dos pensadores mais importantes que vivem na França, e sua obra será traduzida em várias línguas.” Não se trata de nenhuma profecia, mas a verdade é que a previsão de Baciu tem  se confirmado.

O segundo texto de Baciu na imprensa brasileira, também no Correio da Manhã, em 22 de julho e 1951, intitula-se “Prêmio Silvio Pellico de 1951”. Trata-se de um arrazoado do prêmio em questão, no qual o autor, ecoando Daniel-Rops, no texto de 1949 sobre “o esplendor da língua francesa”, começa dizendo que “a França é um país que não se pode queixar do número reduzido de prêmios literários.” Trata-se de uma resenha do livro ganhador do prêmio em questão, cujo autor, também romeno, tem possivelmente algum parentesco com Ştefan Baciu, Nicolas Baciu. O livro de Nicolas Baciu, traduzido ao português por Stefan Baciu, é “Das masmorras de Anna Pauker às prisões de Tito”. Segundo Stefan Baciu, “o autor é romeno, seu nome figura ao lado dos de outros romenos, dos quais mencionaremos somente Constantin Virgil Gheorghiu e Emil Cioran, já conhecidos no mundo inteiro.” (BACIU, 1951)

1952 Correio da Manhã ano LII no. 18197 19jul1952
Correio da Manhã, 19 julho 1952

No ano seguinte, Baciu publica “Ionescu e ‘as cadeiras’” (Correio da Manhã, 19 jul. de 1952), texto muito bem escrito e erudito, com inúmeras referências a autores romenos  e de outras nacionalidades, no qual o jornalista recria a atmosfera cultural de Bucareste no ano de 1934, no auge da jovem geração de Cioran, “quando centenas e milhares de homens podiam apaixonar-se pelo livro, pela poesia, esperando com impaciência o resultado de um concurso literário.”

Colunas e páginas inteiras de jornais e revistas ocupavam-se com a vida das ideias, com os planos dos escritores e dos artistas. […] Naquela época, o mais importante concurso literário era organizado pelas Fundações Reais de Literatura e Arte. No começo de cada ano, de 1933 até 1945, esperava-se o comunicado da comissão julgadora. Em 1934, tres escritores obtiveram o prêmio para livros de crítica e ensaios: um dêles, Constantin Noica, vive hoje mergulhado na sombra, no país; dois acham-se no mundo livre: E. M. Cioran e Eugen Ionescu. Seus nomes são hoje em dia conhecidos no mundo inteiro e especialmente Cioran é afamado por seus dois livros, tendo os senhores José Lins do Rego e Augusto Frederico Schmidt publicado vários artigos sobre aquêle grande escritor romeno. (BACIU 1952[3])

Em 1954, o Correio da Manhã publicará mais um texto de Baciu: “Busuioceanu: o poeta e o crítico” (6 fev. de 1954), a propósito do escritor romeno de língua espanhola, outro romeno no exílio, Alejandro Busuioceanu. Baciu começa declarando seu orgulho por

ter sido o primeiro comentarista que escreveu aqui no Brasil sôbre alguns escritores exilados, cuja obra constitui atualmente parte integrante da cultura européia. Quando as primeiras linhas sobre o dramaturgo Eugen Ionescu saiam neste mesmo suplemento, não sei se havia meia dúzia de pessoas que captaram a significação da sua peça “As Cadeiras”; fui o primeiro a escrever sobre E. M. Cioran (premiado com o “Prix Rivarol”, em Paris), cujo livro em tradução alemã acabo de receber do editor Rowohlt de Hamburgo, como também fui o primeiro a assinalar os trabalhos de invulgar importância de meu grande e velho amigo Mircea Eliade, cujo livro “Le mythe de l’eternel retour” empolgou certos círculos e também fui um dos primeiros a transcrever as respostas exclusivas para o Brasil, enviadas especialmente para o “Correio da Manhã”, pelo autor da “25ª Hora”, meu amigo Gheorghiu, desta vez, obedecendo à uma sugestão do poeta Augusto Frederico Schmidt. (BACIU, 1954[4])

Em 18 de dezembro de 1955, o suplemento cultural da Tribuna da Imprensa, também do Rio de Janeiro, “Tribuna das Letras”, dedica toda uma página à cultura de língua romena, apresentando uma amostra do “movimento literário romeno hodierno isto é, a literatura que conseguiu escapar da censura do ocupante, impondo-se em vários países como produção de vanguarda.” Há um ensaio de Mircea Eliade, “Os dois mitos da espiritualidade romena” (trata-se das duas lendas fundadoras da cultura e da mentalidade romenas, a lenda do Mestre Manole e a lenda da Mioriţa, “Ovelhinha”), um conto de Adrian Maniu, “A morte sem nome”, um texto de Vintila Horia, “Escritores no destêrro”, e um texto de Ştefan Baciu, “Apontamentos sôbre os escritores romenos no exílio” e, por fim, uma seleção de 14 aforismos de Silogismos da Amargura, publicado três anos antes. Tanto Horia quanto Baciu citam Cioran em seus textos, como exemplar de destaque dos escritores romenos no exílio. Segundo Baciu, “a autêntica literatura romena de hoje vive no exílio”, e o autor dos Silogismos da amargura é “um dos mais extraordinários pensadores da hora presente” (BACIU, 1955[5])

Por último, antes de passarmos a José Lins do Rego, Ştefan Baciu publicou, em 1959, na Tribuna da Imprensa, um breve texto intitulado “Sem dentes e sem sorriso”, uma crítica aberta ao regime comunista romeno, que teria realizado, segundo Baciu, “o maior expurgo de todos os tempos nas bibliotecas nacionais, eliminando obras de Mircea Eliade, Ilarie Voronca, Constant. Virgil Gheorghiu, E. M. Cioran, e muitos outros.” (BACIU, 1959[6])

1959 Tribuna da Imprensa, ano 11, no. 3014, 7dez1959

*

O romancista e ensaísta José Lins do Rego esteve na França entre 1951 e 1952, onde teve a oportunidade de conhecer Cioran, de quem se tornaria amigo e com quem manteria contato através de cartas. A Tribuna da Imprensa de 29 de junho de 1952 apresenta uma entrevista com o escritor, recém-chegado da Europa. O entrevistador comenta: “Vi há dois dias uma crônica sua sobre o nosso velho amigo Cioran.” José Lins responde:

Confirmo o que escrevi. Cioran é um homem excepcional: impressionou-me a sua exterior simplicidade, revestindo um tamanho ímpeto demolidor. Vive exclusivamente para o pensamento. Êle é uma espécie de monge. Vive metido no seu cubículo, sòzinho, metido consigo e seus pensamentos. Tenho sempre na ideia esse livro estranho ‘Précis de Décomposition’.” (LINS DO REGO, 1952a[7])

1952 Diário de Pernambuco ano 127 no 223 23set1952

No mesmo ano, um texto de José Lins do Rego sobre Cioran, primeiramente no Diário de Pernambuco (23 set. 1952) e em seguida em O Jornal, do Rio de Janeiro (24 set. 1952). “O ácido Cioran”, um breve texto de três parágrafos, é uma reflexão sobre a vida da arte e o papel do artista a partir de Cioran: “Vou lendo E. M. Cioran e já vou me identificando com o seu pensamento subversivo quando ele nos diz que a ilusão moderna afogou o homem nas síncopes do ‘devenir’. E assim foi ele perdendo a sua substancia.” (LINS DO REGO 1952b). Após uma reflexão desabusada sobre os caminhos da arte na modernidade, ele conclui: “E vai o acido Cioran roendo com as suas ideias a crosta de muitos dos nossos preconceitos, a fragilidade de tantas convicções que são os nossos chinelos de conforto.” (LINS DO REGO, 1952b[8])

Em 1957, outro texto de José Lins do Rego sobre Cioran, publicado em O Jornal (25 mai. 1957) e em seguida no Diário do Paraná (26 mai. 1957): “Os sonhos”, uma meditação sobre os males da atividade onírica conturbada, essa “surmenage pelos sonhos” que faz um homem devorado pelos sonhos amanhecer como se voltasse de um dia de trabalho exaustivo. “É que fora êle devorado pelos sonhos, autênticos vampiros noturnos que lhe chuparam o sangue. É o que nos diz o crítico Cioran quando nos fala dos sonhos que agem sôbre o espirito em proporções angustiantes.” (LINS DO REGO 1957a[9])

1957 Tribuna da Imprensa, ano 9, no. 2247, 25-26mai1957
Tribuna da Imprensa, 25/26 maio 1957

Ainda em 1957, outro texto de José Lins do Rego sobre Cioran, publicado no suplemento cultural (“Tribuna dos Livros”) da Tribuna da Imprensa: “O vulcão e a fonte” uma resenha sobre o recém-lançado volume de textos de Joseph de Maistre, organizado por Cioran e publicado pelas Éditions du Rocher. Um importante texto, no âmbito da incipiente recepção brasileira de Cioran, por um escritor e intelectual que conheceu Cioran pessoalmente, e o compreende. Como ele conta, havia acabado de receber um exemplar do livro em questão. Lins do Rego apresenta Cioran como “um dos mais agudos ensaístas em língua francesa, embora seja de origem rumaica. Mas no seu sistema de ideias se encontra o mais doloroso pessimismo, a profunda mágoa de um homem roubado pelos deuses.” (LINS DO REGO, 1957b) Uma bela e poética descrição, que teria agradado ao autor. O escritor e jornalista brasileiro conta que conheceu Cioran em Paris, “com o seu triste ar de clérigo de muito orgulho, senhor de sua sabedoria, a compreender que o mundo não daria atenção ao que é profundamente verdadeiro nas suas penetrações na natureza humana.” (LINS DO REGO, 1957b) Lins do Rego discorda de quem acusa Cioran de cinismo: “Não é Cioran um cínico, mas um trágico. E é aí que está a sua grandeza. […] Cioran é um trágico, isto é, um homem que vê a decomposição geral do homem em suas mais escondidas reservas de sonho.” (LINS DO REGO, 1957b[10])

Antes de um apanhado final da presença de Cioran nos jornais brasileiros durante a década de 1950, um texto de 1957 em homenagem a José Lins do Rego, que havia sido internado, em estado grave, no dia 17 de junho daquele ano, vítima de uma crise de hepatite. Faleceria três meses depois, em 12 de setembro de 1957. Em 28 de julho, a Tribuna da Imprensa publica: “Tôda a cidade voltada para José Lins do Rêgo”. Neste texto, uma espécie de perfil literário e intelectual do escritor, é mencionado “O vulcão e a fonte”, publicado poucos meses antes a propósito de Joseph de Maistre, acrescentando-se que “Cioran escreveu-lhe uma carta, agradecendo” pela resenha elogiosa do livro. Eis a tradução da carta de Cioran:

“Stefan Baciu proporcionou-me o grande prazer de enviar-me o artigo que V. consagrou ao meu Joseph de Maistre. Li-o com o maior interesse e agradeço todas as boas palavras com que me distinguiu. Não as mereço, porém elas me envaidecem, pois vêm de V. e é sempre agradável a gente ser alvo de um julgamento generoso. E meu prefácio e minha seleção foram recebidos aqui com muitas reservas, senão hostilidade. Mas que importa a opinião dos parisienses ! Aprendi a desconfiar dela, e isto é o primeiro grau de sabedoria para quem quer que viva aqui. Quando pensa vir? Eu ficaria infinitamente feliz em revê-lo, e podermos zombar juntos de todos os países e de todos os continentes. Falo muitas vezes de V. com os nossos caros Worms, e desejamos todos que V. possa fazer em breve uma viagem por esta inominável Europa.”[11]

*

Há muitas outras menções a Cioran nos jornais brasileiros na década de 1950, além dos textos de Schmidt, Baciu e Lins do Rego. Em 1951, a Tribuna da Imprensa publicaria trechos do Précis de décompositon, intitulados pelo tradutor (e provavelmente autor da biografia de Cioran), que assina simplesmente T. das L., “5 minutos com o espírito de Cioran”.

1951 Tribuna da Imprensa, ano 3, no. 557, 13-14 outubro 1951
Tribuna da Imprensa, 13/14 de outubro 1951

Em 1954, um ensaio de Cioran publicado na Nouvelle Revue Française, e que tem como alvo implícito Maurice Blanchot, repercute por aqui. Uma notinha anônima, no Correio da Manhã de 1º de janeiro de 1954, com uma breve citação do texto em questão, “La fin du roman”, que fará parte do terceiro livro francês de Cioran, La tentation d’exister (1957), resume o texto como um “processo de acusação ao romance contemporâneo – ‘gênero que submergiu e comprometeu a literatura’. Trata-se de um inteligente, ácido e, por vêzes, injusto ensaio que vale a pena ler.” É possível que o autor da nota seja o crítico literário e historiador curitibano Temístocles Linhares (1905-1993), a julgar pelo texto publicado no suplemento cultural do Estado de S. Paulo, em 12 de abril de 1958, “Fim do romance?”, e republicado no Diário de Notícias de 18 de maio de 1958.

1958 Diário de Notícias 18mai1958

Por fim, ainda na década de 1950, um importantíssimo texto a propósito de Cioran, e extremamente negativo, no qual se associa ao autor do Précis de décomposition a fórmula que dá título ao texto: “O desespêro como mercadoria” (Tribuna da Imprensa, 19-20 jul. 1952). O autor, o intelectual francês Pierre-Henri Simon, engrossa o coro de Daniel-Rops e Augusto Frederico Schmidt, tecendo uma impiedosa crítica que, décadas mais tarde, será praticamente a mesma feita a Cioran, na New Yorker, por George Steiner. Simon contraste o otimismo triunfalista do século XIX ao pessimismo desenganado e melancólico do século XX. As novas gerações, afirma ele, têm “o paladar duro”, acrescentando que “assistimos ao triunfo literário de Job: mas entre tantos jobianos não existirão farsantes?” (SIMON, 1952)

1952 Tribuna da Imprensa, ano 4, no. 785, 19-20 julho 1952

A pergunta é a deixa para revelar, no parágrafo seguinte, quem é o farsante de Jó, com o seu “desespero como mercadoria“. Costurando aforismos e trechos dispersos dos livros de Cioran (até este momento, apenas o Breviário e os Silogismos), de modo a “montar” uma figura patética, Simon se queixa de que o autor romeno premiado “exercita-se nesta brincadeira macabra fazendo frases que a bem dizer são construídas com maestria: cunhadas em forma de máximas, com imagens brilhantes e exatas”, concluindo que Cioran, “que não crê em nada, crê certamente na literatura e especialmente na sua e, graças a Deus! pois esta futilidade talvez sirva para contrabalançar sua angústia e salvá-lo da vala comum.” (SIMON, 1952). Simon deixa clara a sua impaciência com “o tilintar de fórmulas soantes, tècnicamente bem feitas mas que não dizem nada de valor. ‘Todo problema, escreve por exemplo nosso Job romeno, – pois êste terrível desprezador dos valores do Ocidente descobriu-os na sua cultura e não no seu sangue – e “todo problema profana um mistério: e por sua vez o problema é profanado pela solução’. Vale a pena citá-lo extensivamente, até porque o texto é muito bem escrito:

Nunca se terminaria de citar frases que ressoam muito mas que nada quebram. Já no “Précis de Décomposition” M. Cioran nos propõe esta poderosa definição do homem: “Um gorila que ao perder os pêlos os substituiu por ideias”. Hoje, aprendemos que o homem é “uma alma num escarro”; que a metafísica e a poesia são: “impertinências de um piolho”. Deus não recebe um tratamento melhor: é o “fracassado dos altos”, o “último dos importunos”, e nem mesmo vale a pena dar-se ao trabalho de desfazer-se de Deus para cair em si, porque “de que vale esta substituição de cadáveres”? […] Tôda esta retórica do nada, todo êste cinismo forçado carece de densidade: deixamos a cem léguas da gravidade de Camus, da intensidade de Malraux, da cultura de Sartre. Ferro pintado de zarcão é na verdade ferro vermelho, mas êste não queima! Tais são os “silogismos” desesperados de Cioran. Quanto ao seu ceticismo, é de um tal parti-pris que não chega a ser dramático. Que pensar de um espírito que afirma: “Nada estanca minha sêde de dúvidas: tivera eu bastão de Moisés para fazê-las jorrar do próprio rochedo!” Um espírito bem formado pode ter dúvidas, mas nunca aspira tê-las, e tem pelo menos uma certeza, de que tudo não é incerto: razão pela qual o ato de pensar encontra sua dificuldade, sua utilidade e sua grandeza. (SIMON, 1952[12])


Notas:

[1] Correio da manhã, Rio de Janeiro, ano L, no 17.569, 25 de junho de 1950.
[2] Correio da manhã, Rio de Janeiro, ano L, no 17.605, 6 de agosto de 1950.
[3] BACIU, Ştefan, “Ionescu e ‘as cadeiras’”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, ano LII, no 18.197, 19 de julho de 1952.
[4] IDEM, “Busuioceanu: o poeta e o crítico”, Correio da Manhã, ano LIII, no 18.672, 6 de fevereiro de 1954.
[5] IDEM, “Apontamentos sôbre os escritores romenos no exílio”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, ano VII, no 1815, 17-18 de dezembro de 1955.
[6] IDEM, “Sem dentes e sem sorriso”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, ano XI, no 3014, 7 de dezembro de 1959.
[7] LINS DO REGO, José, “Provou a Europa e gostou…”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, ano IV, no 767, 28-29 de junho de 1952.
[8] IDEM, “O ácido Cioran”, Diário de Pernambuco, ano CXXVII, no 223, 23 de setembro de 1952.
[9] IDEM, “Os sonhos”, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 de maio de 1957.
[10] IDEM, “O vulcão e a fonte. Cioran apresenta um inimigo da liberdade”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, ano IX, no 2247, 25-26 de maio de 1957.
[11] Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, ano IX, no 2299, 27-28 de julho de 1957.
[12] SIMON, Pierre-Henri, “O desespêro como mercadoria”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, ano IV, no 785, 19-20 de julho de 1952.
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