Conhecia muito bem Cioran. Já éramos amigos na Romênia, nos anos 1933-1938 e fiquei feliz de o reencontrar aqui, em Paris. Admirei Cioran após os seus primeiros artigos publicados em 1932, quando tinha apenas vinte e um anos. A sua cultura filosófica e literária, os místicos alemães e Açvagosha. Por outro lado, possuía, muito jovem ainda, um espantoso domínio literário. Tanto escrevia ensaios filosóficos como artigos panfletários com um poder extraordinário. Podemos compará-lo aos autores dos apocalipses e aos mais famosos panfletários políticos. O seu primeiro livro em romeno, Nos Cumes do Desespero, era apaixonante como um romance e simultaneamente melancólico e terrível, deprimente e exaltante. Cioran escrevia tão bem o romeno que não podíamos imaginar que um dia mostraria a mesma perfeição literária em francês. Penso que o seu exemplo é único. É verdade, desde sempre, tinha admirado o estilo, a perfeição estilística. Dizia, muito sério, que Flaubert tinha razão quando trabalhava toda a noite para evitar um subjuntivo…”
Mircea ELIADE. A Provação do Labirinto: Diálogo com Claude-Henri Rocquet, Publicações Dom Quixote, 1987, pp. 74-75.
Nunca fui um verdadeiro cínico. Não tenho os meios. Efetivamente, um cínico coerente exige qualidades físicas e morais que não tenho. O último verdadeiro grande cínico de nossa época foi Cioran, que levava uma vida monástica informal. Mas ser o monge de um desespero privado custa caro, pois você é confrontado todos os dias por refutações de sua escolha, pondo à prova que a felicidade não é tão distante, tão transcendente. O cinismo é a decisão de não se dissolver na felicidade.
Peter SLOTERDIJK. Entrevista a Elizabeth Levy, Le Point, 14/02/2003.
Sobre estes e outros temas conversei longamente com Cioran numa tarde de 1989. Anos atrás me haviam chegado notícias do seu desejo de me conhecer; insistência que interpretei como mensagens crípticas, reiteradas em distintas oportunidades. Combinamos una visita na sua casa da rua Odeón, a poucos passos do meu hotel no Boulevard Saint-Germain. Custou-me dissuadir sua insistente oferta de me esperar na entrada, por medo de que eu me perdesse; o que me corroborou uma vez mais seu autêntico desejo de me ver. Após alguns minutos, cheguei à sua casa, um daqueles velhos edifícios franceses; e após subir a pés os seis andares, me detive frente à porta de madeira onde havia colocado, no lugar reservado para as chambres de bonnes, uma placa que dizia Ici Cioran. Contrariamente ao que muitos supõem e ao que eu mesmo pensava, me surpreendeu aquele homem amável, pequeno e entristecido, predicador de um niilismo que não coincidia com ele. Era antes um grande pessimista, por momentos subjugado por um outro, cético e descrente. Mas sempre com um sorriso. Em nenhum momento um intratável indiferente, pelo contrário, um desses homens solidários com a ‘desventurosa multidão’, como disse Mallarmé, em busca de alguém que expresse seu desassossego e seu tormento. Talvez possamos referir a ele a frase de Strindberg: ‘Não detesto os homens, tenho medo deles’. Conversamos fraternalmente durante mais de quatro horas, até que tive de me retirar, pois em um café não muito distante me aguardava o meu amigo, Severo Sarduy. Descobri em Cioran a coerência de um homem autêntico e partilhamos pensamentos de notável semelhança. Como a necessidade de desmistificar o racionalismo que só nos trouxe a miséria e os totalitarismos. Como também a imbecilidade dos que creem no progresso e no avanço da civilização. ‘Pode-se sufocar tudo no homem, salvo a necessidade do Absoluto, que sobrevivirá à destruição dos templos, assim como à desaparição da religião sobre a Terra.’ Palavras de um filósofo cuja lucidez era produto de suas perplexidades e de seu tormento. Tenho a convicção de que sua dor metafísica teria se atenuado se ele tivesse podido escrever ficção, dado seu caráter catártico, e porque os graves problemas da condição humana não são aptos para a coerência, mas unicamente acessíveis a essa expressão mitopoética, contraditória e paradoxal, como nossa existência. ‘Na tristeza tudo se torna alma’, diz em um de seus ensaios que tanto ajudaram a desmascarar a frivolidade e os sorrisos hipócritas destes tempos.
Ernesto SÁBATO. Antes del fin. Buenos Aires: Seix Barral, 1998.
Diante das principais trivialidades filosóficas deste século, Cioran é um dos raros pensadores a ler conservado completamente o espírito claro e a cabeça fria. Ele é assim um dos únicos filósofos de nossa época, se não o único, que não pode ser suspeito de religiosidade; precisamente por ter percebido a dose de religiosidade que se esconde na maioria das ideologias modernas, as quais reintroduzem a religião que pretendem combater sob as espécies novas do sentido da história ou da cientificidade. No Précis de décomposition e La tentation d’exister, Cioran juntou justamente estas formas modernas da crença, mais do que nunca detestáveis e nocivas, à sua sempiterna origem: a incapacidade de saber o que se sabe, de assumir seu próprio saber. Toda crença se nutre apenas de um horror acerca de sua própria lucidez, sustenta-se apenas de um combate incessante contra a evidência – combate que seu caráter desesperado, a mais ou menos longo prazo, contribui para tornar lamentável e mesmo heroico.
Clément ROSSET, Alegria: a força maior
Pensador sem complacência na busca perpétua de si, cético por natureza e pela recusa de falsas evidências e outras verdades elaboradas com o fim de justificar a esperança, grande desprezador das ideologias que governaram seu século, Emil Cioran, morto em 1995, conheceu após vinte anos uma notoriedade que nem o niilismo do seu pensamento, nem a feitura dos seus escritos teriam permitido esperar. Se a publicação em 1997 dos seus cadernos íntimos, redigidos entre 1957 e 1972, relançou a polêmica sobre o sentido de uma obra que ele considerava acabada há muito tempo, razões outras que filológicas ou biográficas explicam seu recente sucesso. Nesta época de crise generalizada de valores […] a crítica implacável à qual Cioran submete todos os sistemas […] é de uma incontestável atualidade. Este ateu impenitente admirador do Tao, este zelador da preguiça fascinado pelo suicídio, este destruidor do progresso que prega um desprendimento do mundo, seria o moralista que nosso tempo de incertezas esperava.
Nicole PARFAIT. Cioran ou le défi de l’être (Desjonquères, 2001)
Foi um flechaço de amor à primeira página. Tinha encontrado um gnóstico contemporâneo, o arquimandrita desesperado e irônico da inviabilidade de nossa existência, nostálgico do decadentismo pagão, debelador das legitimações que amparam a boa consciência metafísica, obcecado pela pirueta definitiva do suicídio mas, estilisticamente, todo vivacidade, a negação mesma do abatido: deambulando desde os rigores transcendentais até a suscetibilidade mais irritáveis do instranscendente humano. Truculento e sagaz, irreconciliável, caprichoso, contundente, o menos parecido que se possa imaginar com relação à filosofia que se empenhavam em inculcar-me na faculdade à qual, por meus pecados, eu ia toda manhã.
Fernando SAVATER. Ensayo sobre Cioran, Espasa/Calpe, Madrid (1992)
Lido por pensadores e escritores modernos, o filósofo romeno é conhecido por suas ideias sobre a morte, o desespero e o vazio. Mas como bem definiu Susan Sontag, o seu filosofar era “pessoal, aforístico, lírico e antissistemático”. A educação filosófica de Cioran, além de longitudinal, revela-se articulada e cosmopolita. No fim da vida, reconhece uma herança gnóstica de velha cepa, que remonta à cultura balcânica: “por mais que desejasse libertar-me de minhas origens não consegui. Ninguém alcança libertar-se de si mesmo”. Na história das formas breves, que dominaram o século XX, Cioran ocupa lugar de destaque. Disse de si mesmo que era um homem do aforismo. Seus fragmentos – como os cristais das Banalidades, de Dragomir, ou os grumos do Tractatus, de Wittgenstein – respiram uma condensada história da filosofia. Não passam de esplêndidas ruínas, arrancadas de passagens reflexivas, mediante o martelo filosófico de Nietzsche: cheias de brilho feroz, varadas pela sinergia das coisas incompletas.
Marco LUCCHESI, “Da dissolução”, Revista Filosofia – Ciência & Vida, n. 161, abril 2020
A leitura de Cioran corresponde a minha queda pelos aforismos, a síntese, os provérbios. Talvez esse gosto meu tenha origem nas fórmulas científicas. O aforismo resume alguma coisa mas, ao mesmo tempo, permite outros desenvolvimentos. Como um nó: poderia ter sido feito em outro sentido, mas, mesmo assim, quando está dado, o sapato fica preso no pé do mesmo jeito. Não se trata de um pensamento, mas do traço de um pensamento. Leio Cioran a toda hora, em todos os sentidos. É muito bem escrito. Com ele, o espírito transforma a matéria. Cioran me oferece uma matéria da qual o espírito se nutre.
Jean-Luc GODARD, entrevista com Pierre Assouline, publicada no caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 27 de julho de 1997
E.M. Cioran é, sem dúvida, o mais heterodoxo dos pensadores atuais. Um heterodoxo da heterodoxia, um herege dentro da heresia. E que não implique nenhuma redundância. Negador puro, dissidente de todos os sistemas, inconformado com todas as doutrinas, ele não é dos que destrói para compensar com outra coisa o destruído, mas para deixar o homem a sós consigo mesmo, para fustigar sua boa consciência e fazê-lo enfrentar a já insustentável caducidade, a imperiosa necessidade de aceitar, sem paliativos de nenhuma espécie, a demolição de certos fundamentos corruptos: sua civilização, sua cultura, sus crenças, seus projetos.
Esther SELIGSON, Apuntes sobre Cioran
Conheci Cioran quando acabava de publicar seu primeiro livro, por volta de 1947. Foi em uma reunião no apartamento de um amigo em comum em que os únicos estrangeiros éramos ele, romeno, e eu, mexicano. Em poucos minutos começamos a conversar sobre a literatura espanhola, que ele conhecia bastante bem. Eram os anos do apogeu de Sartre e do existencialismo; para o assombro de alguns dos presentes, Cioran assinalou que já antes da guerra, Ortega e Unamuno, por perspectivas distintas, haviam explorado os temas que acendiam os debates daqueles dias: a liberdade, a morte, o tempo, a filosofia como um saber vital enraizado nas circunstâncias concretas de cada homem. Tornamo-nos amigos muito rapidamente. Desde o nosso primeiro encontro, nos vimos com frequência. Depois deixei Paris, mas a ausência não nos separou: ele colaborou na “Plural” e na “Vuelta”, e em cada uma de minhas visitas a Paris, visitava-o. Por isso, sua morte nos afeta, a mim e a Maria-José, duplamente: a literatura perdeu um grande escritor, e nós, um amigo muito querido. Numa época que fez da mentira uma segunda natureza, a lucidez de Cioran cumpriu uma função primordial: limpar nossa mente de ilusões funestas, quimeras cruéis e teias de aranha intelectuais. Este pessimista, que revelou a vaidade de tudo o que chamamos de útil e necessário, nos ajudou, paradoxalmente, a viver: a imensa utilidade moral dos seus escritos consistiu em ser o elogio da inutilidade de nossos esforços para escapar de nosso destino mortal. Não nos fez mais felizes, mas nos ensinou a olhar de frente para o sol da morte. Seu pessimismo e seu ceticismo nos tornaram mais suportável a infelicidade de ter nascido. E o escritor? Em suas obras, sinto falta das potências solares e lunares, a alegria do mar, a irrupção da primavera, a paixão e a sensualidade, o assombro perante a natureza e suas prodigiosas invenções, perante o corpo e suas diárias revelações. Mas o que escreveu foi singularmente perfeito e durará. Seus aforismos e reflexões possuem a concisão, a precisão e a luminosidade dos moralistas do Grande Século, como La Rochefoucauld; sua filosofia — se é possível chamar de filosofia um pensamento que não está antes, mas depois dos sistemas — se avizinha dos grandes niilistas da Índia, como Nagarjuna, e de Pirro, o sorridente silencioso. Cioran, o romeno, reinventou o classicismo francês do século XVII em pleno século XX. Foi um cinzelador de cenotáfios, um artista do desespero e um poeta da arte mais difícil: o epitáfio. Vejo sua obra como um esbelto mausoléu, um cubo negro e resplandecente, que não abriga nenhum cadáver, mas algo, por essência, indefinível: a vacuidade.
Octavio PAZ, “Cincelador de cenotafios”, Jornal ABC, México, 21/06/1995.
Nossa resposta ao colapso dos sistemas filosóficos do século XIX foi o a ascensão das ideologias – sistemas de pensamento agressivamente anti-filosóficos que assumem a forma de várias ciências humanas ‘positivas’ ou ‘descritivas’. Comte, Marx, Freud e os pioneiros da antropologia, da sociológica e da linguística vêm imediatamente à cabeça. Outra resposta ao debate foi uma nova forma de filosofar: pessoal (inclusive autobiográfica), aforística, antissistemática. Seus representantes mais exemplares: Kierkegaard, Nietzsche e Wittgenstein. Cioran é a figura mais destacada nesta tradição atualmente.
Susan SONTAG Styles of radical will (1966)
Cioran rompe com a tentação totalitária quando se torna um escritor de expressão francesa e se inscreve, em pleno século XX, na linhagem dos moralistas clássicos. Os moralistas não são construtores de moral, mas pessoas que divulgam uma verdade dolorosa. Cioran junta-se aos moralistas a partir de 1941, através do texto pivotal intitulado Sur la France, que se descobre agora junto com Transfiguração. Trata-se de um livro escrito em romeno, mas o estilo já é francês, como se nota na tradução maravilhosa de Alain Paruit. No fundo, a resposta dos moralistas é a resposta daqueles que não se enganam com Rousseau. De um lado, está a idéia de estabelecer um regime perfeito que encontre uma solução política ao problema humano. E do outro, está uma lucidez inquieta que nos vacina contra essa tentação. O desespero de Cioran não o conduz necessariamente, de resto, a uma visão obscura da natureza humana. Eu me recordei de uma passagem extraordinária dos seus cadernos: “Ódio e acontecimento são sinônimos. Lá onde há ódio, alguma coisa acontece. A bondade, por outro lado, é estática. Ela conserva, interrompe, carece de virtude histórica, freia todo dinamismo. A bondade não é cúmplice do tempo, enquanto que o ódio é a sua essência”. Não se imagina Cioran fazendo esse elogio da bondade. E, no entanto, mesmo se ele foge da idéia de estabelecer um regime sem mal, permanece aquilo que Vassili Grossman chama de la petite bonté, la bonté sans régime (‘a pequena bondade, a bondade sem regime’).
Alain FINKIEKRAUT. Le Figaro, 02/04/2009
Cioran era uma pessoa maravilhosa, um desses homens que possuem uma graça e um humor inteligente. Sua morte não me surpreende, porque já sabia fazia tempo que ele estava muito mal. Inclusive pensei em ir visitá-lo em Paris, mas me disseram que não valia a pena, porque ele já nem mesmo reconhecia seus amigos. Fica-nos o livro que fizemos juntos. Conhecemo-nos pessoalmente por causa de uma carta que me enviou acompanhada de um monte de livros, praticamente toda sua obra. Dizia-me que tinha visto o livro que eu havia feito com Heidegger e que gostaria que eu ilustrasse sua última obra. Convidava-nos a visitá-lo para nos conhecermos e conversar. Fomos a Paris e já no hotel nos deparamos com um recado seu que dizia: ‘Não posso prometer-lhes uma comida excepcional, mas lhes asseguro que o vinho os aguarda há anos.’ Lembro-me que nos serviu o vinho muito cerimoniosamente. Ele, no papel de garçom e com o guardanapo corretamente ajustado à garrafa. Era uma pessoa encantadora. O livro se chamaria Confidências e Anátemas, mas a obra termina com a frase: “Eis aqui a refutação de todos meus anátemas”, e finalmente se intitulou Ce maudit moi (“Ese maldito yo”).
Eduardo CHILLIDA (escultor catalão). El País, Madrid, 21 de junho de 1995
Aqui estou sobre o túmulo de Emil Cioran, em Paris. Devo muito a este pensador: devo-lhe a não-solidão no abismo da dor. Quando comecei, no fundo de mim mesmo, a desenvolver a consciência de que o nascimento era um verdadeiro infortúnio, experimentei um duplo sentimento: por um lado, o senso do ridículo, o mesmo que se sente diante de uma verdade tão óbvia que pareceria indizível, e que pode ser ilustrada por: “Mas você realmente percebe isso agora?”. Por outro lado, o medo da gaiola depressiva: considerar o nascimento como um infortúnio é julgado uma doença neurótica, uma inclinação mórbida a ser tratada clinicamente e não uma análise lúcida, não uma avaliação teórica. No entanto, não há pergunta mais crucial: você teria escolhido nascer? Se eu tivesse escolha, teria decidido não nascer, eis a minha resposta. Todos os pensamentos, mesmo os mais bizarros, são bem-vindos no interminável debate de ideias, exceto considerar o nascimento um infortúnio, uma má sorte. Cioran, por outro lado, me acompanhou em minha inaptidão para a vida; não há possibilidade de alcançar a felicidade, mas apenas um grau menor de infelicidade. Cioran está ao meu lado quando não tenho medo da morte, mas muito medo da morte em vida. Vim cumprimentá-lo, homenageá-lo por ter me sugerido viver a liberdade, o bem supremo para aqueles que são animados pela vontade de ser hereges.
Cioran, meu insuportavelmente amado Cioran, o que posso dizer? Não digo nada que possa beneficiar sua memória, pois o homem secreta desastre, e eu ainda tento habitar esse desastre, enquanto puder resistir…
Roberto SAVIANO, escritor italiano (autor de Gomorra, livro sobre a máfia que se tornou um bestseller e seria adaptado para o cinema).

Caro Rodrigo:
É um prazer conhecer seu blog sobre Cioran! Aproveito para divulgar meu livro “O lugar do escritor: ensaio sobre Emil Cioran”, que está disponível em meu site (http://renatotapado.com/o-lugar-do-escritor-ensaio-sobre-emil-cioran/), onde se pode baixar o texto na íntegra em PDF.
Também escrevi o artigo “Escrever com Cioran” no livro Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento”, organizado por Deyve Redyson e publicado pela Editora Sulina em 2011.
Um abraço!
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