“Teologia do domínio: bolsonarismo e religião” – João Cezar de Castro Rocha | Opera Mundi ▶️

26 de junho de 2024 | O programa “20 Minutos”, de Opera Mundi, recebe o escritor João Cezar Castro Rocha para uma entrevista sobre teologia do domínio (ou “dominionismo”*) e suas relações entre o bolsonarismo e a religião.

Nascido em 1965, no Rio de Janeiro, João Cezar de Castro Rocha é um escritor, historiador e professor de literatura comparada. Foi aluno de René Girard e orientado por Hans Ulrich Gumbrecht em Stanford. Tido como um dos intelectuais brasileiros mais importantes da atualidade, seus estudos concentram-se na contribuição da teoria mimética de Girard para a América Latina, entre outras áreas de interesse.

* O conceito de “dominionismo” (dominionism em inglês) é derivado de uma leitura literalista da Bíblia, mais especificamente do livro do Gênese, por setores evangélicos norte-americanos. Como explica João Cezar de Castro Rocha, o “ismo” em questão é inspirado na seguinte passagem: “And God blessed them, and God said unto them, Be fruitful, and multiply, and replenish the earth, and subdue it: and have dominion over the fish of the sea, and over the fowl of the air, and over every living thing that moveth upon the earth.” Em português: “E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.” (Genesis 1:28)

A “Criação sabotada” e o “perito em anti-Criação”
(“Teologia sumária”, o anti-dominionismo de Cioran)

Curiosamente, esta passagem ao início do Gênese é uma das mais duramente criticadas por Cioran (o pensador anti-dominionismo par excellence). Na visão gnóstica do pensador romeno, “dominionismo” = “demonionismo” (sic): “A injunção criminosa do Gênesis, ‘crescei e multiplicai-vos’, não poderia ter saído da boca do deus bom. Sede escassos, teria sugerido, se tivesse tido voto no assunto. E jamais deveria ter acrescentado as palavras funestas: ‘e enchei a terra’. Deveríamos, para encerrar o assunto, apagá-las para lavar a Bíblia da vergonha de tê-las recolhido.” (Le mauvais démiurge, 1969).

Teologia sumária? Contemplando esta criação sabotada, como não incriminar seu autor? Como, sobretudo, julgá-lo hábil ou simplesmente destro? Qualquer outro deus teria dado provas de maior competência ou equilíbrio do que ele: para onde quer que se olhe, só existe erro e confusão. É impossível absolvê-lo, mas também é impossível não compreendê-lo. E nós o compreendemos por tudo o que em nós é fragmentário, inacabado, malfeito. Sua empresa carrega os estigmas do provisório, e, no entanto, não foi tempo o que lhe faltou para realizá-la bem. Para nossa desgraça, ele foi inexplicavelmente apressado. Por uma ingratidão legítima, e para que sinta nosso mau humor, nos esforçamos – peritos em anti-Criação – para deteriorar seu edifício, para tornar ainda mais miserável uma obra já comprometida desde seu início. Sem dúvida, seria mais sensato e mais elegante não tocar nela, deixá-la tal e qual, não vingar-nos nela das incapacidades de seu Criador; mas como ele nos transmitiu seus defeitos, não temos por que ter consideração com Ele. Se, em última instância, O preferimos aos homens, isso não O coloca a salvo de nossos maus humores. Talvez só tenhamos concebido Deus para justificar e regenerar nossas revoltas, para dar-lhes um objeto digno, para impedir que se extenuem e se aviltem, realçando-as pelo abuso revigorante do sacrilégio, réplica às seduções e aos argumentos do desânimo.

CIORAN, História e utopia (1960)


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