Introdução à obra de Cioran: dicas de leitura – Rodrigo Menezes | Portal @ YouTube ▶️

Formados na escola dos veleidosos, idólatras do fragmento e do estigma, pertencemos a um tempo clínico em que só importam os casos. Só nos interessa o que um escritor calou, o que poderia ter dito, suas profundidades mudas. Se deixa uma obra, se explica, assegura nosso esquecimento.
Magia do artista irrealizado…, de um vencido que desperdiça suas decepções, que não sabe fazê-las frutificar.

Cioran, Silogismos da amargura

“O melhor é talvez não se explicar, não entregar de mão beijada a chave de seu ser, a fórmula de seu destino. Cabe aos outros procurá-la – se eles acreditam que ela mereça ser procurada.”

Cioran, Caderno de Talamanca

25 de maio, 2024 | Live de introdução à obra de Cioran com diretrizes de leitura e apontamentos contextuais para uma plena fruição dos textos do escritor romeno de expressão francesa.

Verena von der Heyden-Rynsch, editora alemã de Cioran (responsável pela publicação do Caderno de Talamanca, que ela também se encarregou de prefaciar), cunhou uma expressão muito oportuna para abordarmos o caso de Cioran. Segundo ela, o autor romeno seria ein Geheimtipp für Kenner, “uma dica secreta para conhecedores”.

Não que Cioran seja o autor de uma obra esotérica, com ensinamentos secretos e reservados a uma “elite intelectual” ou coisa que o valha. Não que seus escritos contenham verdades iniciáticas, pois o próprio Cioran afirma que “só há iniciação ao nada – e ao ridículo de estar vivo” (Breviário de decomposição). Nenhum pensador mais anti-esoterismos do que o autoproclamado Privatdenker (“pensador privado”).

A expressão de Heyden-Rynsch é indicativa de um pensamento que muitos julgariam tão “perigoso” como aproximar-se de um abismo sem rede de proteção. Ela alude ao fato de que, sendo um pensamento fadado à impopularidade, à marginalidade e à penumbra, Cioran não é para qualquer um. É preciso “ter estômago”, estar preparado para a vertigem e a náusea, o desconforto e o desconcerto. O que a editora alemã afirma tem a ver com títulos tão sugestivos quanto Breviário de decomposição, Silogismos da amargura e Do inconveniente de ter nascido, que nos sentiríamos compelidos a ocultar de olhares curiosos, seja no ônibus, no metrô ou na sala de espera do dentista, não por vergonha deles, mas para evitarmos julgamentos apressados e equivocados, perguntas tolas e fastidiosas.

A obra de Cioran não deve ser recomendada para todo e qualquer leitor, irrestritamente. Os leitores é que devem, se for o caso, ir em busca dela, como Maomé e a montanha. Usar com moderação. Seus aforismos não devem ser declamados em voz alta, para o mundo inteiro ouvir. O próprio Cioran escreve: “Há pensadores que não se pode ler em voz alta. Pascal é um deles. Suas verdades deveriam ser murmuradas; murmuradas deveriam ser todas as contraverdades da vida” (O Livro das ilusões). O mesmo se aplica ao pensador romeno: não é para ser gritado, mas murmurado ao pé do ouvido.

  • Gênese e contexto: a obra bilingue de um autor romeno de expressão francesa
  • Fisionomia de uma obra inclassificável: fragmento, aforismo, ensaio (do anti-sistema)
  • Obra estendida: entrevistas, cadernos, livros póstumos

Há experiências às quais não podemos sobreviver. […] Se continuamos vivos, é graças à escrita, que, por meio da objetivação, ameniza essa tensão infinita. Criar significa salvar-se provisoriamente das garras da morte (Nos Cumes do Desespero)

Formados na escola dos veleidosos, idólatras do fragmento e do estigma, pertencemos a um tempo clínico em que só importam os casos. Só nos interessa o que um escritor calou, o que poderia ter dito, suas profundidades mudas. Se deixa uma obra, se explica, assegura nosso esquecimento. Magia do artista irrealizado…, de um vencido que desperdiça suas decepções, que não sabe fazê-las frutificar. (Silogismos da amargura)

Já que a expressão não está mais à altura de medir-se com os acontecimentos, fabricar livros e sentir-se orgulhoso deles constitui um espetáculo dos mais lamentáveis: que necessidade leva um escritor que escreveu cinquenta volumes a escrever outro mais? Por que essa proliferação, esse medo de ser esquecido, essa afetação de má fé? Só merecem indulgência o literato necessitado, o escravo, o forçado da pena. Em todo caso, já não há mais nada a se construir, nem  em literatura nem em filosofia. (A tentação de existir)

Só deveríamos escrever livros para neles dizermos coisasque não ousaríamos contar a ninguém. (Do inconveniente de ter nascido)

O valor intrínseco de um livro não depende da importância do tema (caso contrário, caberia aos teólogos a vitória), mas da maneira de abordar o acidental e o insignificante, de dominar o ínfimo. O essencial nunca exigiu o mínimo talento. (Do inconveniente de ter nascido)

O horror do acessório paralisa-me. Ora, o acessório é a essência da comunicação (e portanto do pensamento), é o sangue e a carne da palavra e da escrita. Querer renunciar-lhe é o mesmo que tentarmos fornicar com o nosso esqueleto. (Do inconveniente de ter nascido)

Gosto de ler como lê uma porteira: identificando-me com o autor e com o livro. Qualquer outra atitude faz-me pensar num cortador de cadáveres. (Do inconveniente de ter nascido)

Não se escreve porque se tem algo a dizer, mas porque se quer dizer algo. (Écartèlement)

Por precaução terapêutica, vomitou em seus livros todo o impuro que havia nele, os resíduos de seu pensamento, as fezes de seu espírito. (Écartèlement)

Djalma Rossi pergunta: Diante de uma constatação tão inflamada e fecunda do Negativo, do trágico, do vão, da “doença” no âmbito da vida, por que Cioran considera logo a sobriedade como um dever decorrente desse quadro?

Uma chave de resposta possível remeteria ao imperativo existencial da lucidez, na compreensão de Cioran, como princípio de desengaño, “despertar” (éveil), condição de possibilidade de todo conhecer e compreender, no que concerne ao essencial: a vida e a morte, a liberdade e a fatalidade inerentes à existência.

“O sofrimento abre-nos os olhos, ajuda-nos a ver coisas que de outra maneira não teríamos descoberto. Ele é, portanto, útil unicamente para o conhecimento, e, fora disso, serve apenas para envenenar a existência. O que, diga-se de passagem, favorece uma vez mais o conhecimento.” (Do inconveniente de ter nascido)


ENSAIO SOBRE CIORAN

Fernando Savater

“No que respeita ao essencial – a vida, a morte, o tempo, Deus – qualquer afirmação é tão nova ou tão reiterada como qualquer outra, pois não há objetivo a se alcançar falando de tais, à parte a constituição de um saber universitário. De que serve dizer o que se diz, por mais original que pareça ser, sem a experiência única de que brota tal revelação? […] Quanto aos que tentam conhecer as opiniões dos místicos sobre cada tema, Cioran diz: “Maníacos do rigor, querem saber o que pensava o autor da eternidade e da morte. O que pensava ele? Pensava as coisas mais diversas. São experiências suas, pessoais e absolutas” (“O comérco dos místicos”, in A tentação de existir). O essencial acerca do místico é, precisamente, ter alcançado uma estranha sabedoria de nada que não é pedagogicamente transmissível, posto que brota de uma experiência, não de um aprendizado; o que diz é irrelevante ou intercambiável, mas provém de algo que não o é.

Mas um discurso que não diz nada de novo, uma palavra que reduz todo o dizível a puro tópico, ao já sabido e à denúncia da contradição no sabido, é, academicamente falando, puro palavrório. Para que serve entreter-se em balbuciar vaguidades sobre os temas mais ambiciosos, convictos de que, afinal de contas, tanto daria dizer qualquer outra coisa sobre eles? Há certo horror pedagógico da palavra que não resolve nada. A palavra é considerada instrumento, veículo que transmite conhecimentos e notícias; falar para não dizer nada, para dizer o nada de tudo o que se diz, é um pecado contra a positividade de uma sabedoria que aspira raivosamente ao construtivo. Cioran dá a impressão de vazio, ou de reiteração: podia ter se calado após seu primeiro livro ou pode escrever cinquenta mais, sem aportar nada fundamentalmente distinto do que disse no primeiro; também poderia muito bem não ter escrito… Nenhuma palavra é menos inevitável que a sua. Puro palavrório, sim: mas palavrório que ameaça todas as palavras informativas e construtivas dos demais. Porque se trata de um palavrório destrutivo. […]

O discurso de Cioran será chamado superficial; não é estranho, pois uma de suas maiores vigilâncias reside em não se deixar arrastar ao “fundo” da seriedade… Falar do essencial sem mudar o tom de voz nem tremer: nada mais difícil e nada mais necessário! A superfície é o lugar natural de quem está disposto a bombardear todos os “fundos últimos” que se lhe proponham; a frivolidade é a condição de quem não se vê escravizado pela necessidade de ser transcendental profissionalmente, como os acadêmicos de costume. “Quanto mais alguém corre perigos, mais sente a necessidade de parecer superficial, de aparentar frivolidade, de multiplicar os mal-entendidos sobre si mesmo” (Silogismos da amargura). “O mais profundo”, disse Valéry, “é a pele”; talvez a forma mais rigorosa de enfrentar as questões essenciais – que se resumem em uma, a morte – seja referir-se a elas com uma espontaneidade simples, o que não tem nada a ver com a ingenuidade ou com o tópico beato, para não ficarmos aprisionados no lamaçal das interpretações superpostas que só fazem afastar mais e mais essas experiências que todo homem tem em algum momento da sua vida e que são a única raiz válida do que presunçosamente chamamos “sabedoria”. Considera-se superficial, simplesmente, aquele discurso que não faz concessões à superstição da nota de rodapé que recorda “isso já disseram”; será acusado de ficar na superfície quem, precisamente por saber que não existem “coisas em si” para além da interpretação da coisa, interpela a interpretação como se fosse a coisa mesma, com liberdade e despreocupação.