“Ensaio sobre o pensamento reacionário”: De Maistre e a ateodicéia gnóstica de Cioran

O problema do mal só perturba realmente alguns delicados, alguns céticos, revoltados pela maneira como o crente se conforma com ele ou o escamoteia. É para esses então que, em primeiro lugar, se dirigem as teodiceias, tentativas de humanizar Deus, acrobacias desesperadas que fracassam e se comprometem no seu próprio terreno, desmentidas a cada instante pela experiência. Embora procurem convencê-los de que a Providência é justa, não o conseguem.

CIORAN

“Nada está no seu lugar” – refrão das emigrações e ao mesmo tempo ponto de partida da reflexão filosófica. O espírito desperta no contato com a desordem e com a injustiça: o que está “no seu lugar”, o que é natural, deixa-o indiferente, embota-o, enquanto a frustração e a privação lhe convêm e animam. Um pensador se enriquece com tudo o que lhe escapa, com tudo o que lhe roubam: se perde a sua pátria, que sorte! Por isso o exilado é um pensador em miniatura ou um visionário de circunstância, oscilando entre a esperança e o medo, espreitando o acontecimento que anseia ou teme. Tem talento? Então se eleva, como Maistre, acima deles e os interpreta: “(…) a primeira condição de uma revolução decidida é que tudo o que pudesse preveni-la não exista, e que nada corra bem para os que desejem impedi-la. Mas nunca a ordem é tão visível, nunca a Providência é tão palpável como quando a ação superior substitui a do homem e age sozinha: é o que vemos neste momento.”

Nas épocas em que tomamos consciência da nulidade de nossas iniciativas, assimilamos o destino ora à Providência, disfarce tranquilizador da fatalidade, camuflagem do fracasso, confissão de impotência para organizar o devir, mas vontade de resgatar suas linhas essenciais e lhes extrair um sentido, ora a um jogo de forças mecânico, impessoal, cujo automatismo regula as nossas ações e até as nossas crenças. No entanto, este jogo, por mais impessoal e mecânico que seja, nós o involuntariamente envolvemos com prestígios que a sua própria definição exclui, e o restringimos – conversão de conceitos em agentes universais – a uma potência moral responsável pelos acontecimentos e pelo curso que devem tomar. Em pleno positivismo não se evocava em termos místicos o futuro, a que se atribuía um poder de eficácia pouco menor que o da Providência? É portanto inegável que se infiltra em nossas explicações uma gota de teologia, inerente e mesmo indispensável ao nosso pensamento, ainda quando mal se comprometa a apresentar uma imagem coerente do mundo.

Atribuir ao processo histórico uma significação, fazê-la surgir de uma lógica imanente ao devir é admitir, mais ou menos explicitamente, uma forma de providência. Bossuet, Hegel e Marx, pelo próprio fato de atribuírem um sentido aos acontecimentos, pertencem a uma mesma família ou, pelo menos, não diferem essencialmente uns dos outros, já que o importante não é definir, determinar esse sentido, mas recorrer a ele, postulá-lo. E eles recorrem a ele, postulam-no. Passar de uma concepção teológica ou metafísica para o materialismo histórico é simplesmente mudar de providencialismo. Se adquiríssemos o hábito de olhar para além do conteúdo específico das ideologias e das doutrinas, veríamos que se prevalecer de alguma delas mais do que de outra não implica, em nenhuma hipótese, qualquer demonstração de sagacidade. Os que aderem a um partido pensam se distinguir dos que seguem outro, enquanto todos, desde o momento que escolhem, no fundo se assemelham, participam de uma mesma natureza e se distinguem apenas em aparência, pela máscara que assumem. É absurdo imaginar que a verdade consiste na opção, quando toda tomada de posição equivale a um desprezo pela verdade. Para nossa infelicidade, a escolha, a tomada de posição é uma fatalidade a que ninguém escapa. Cada um de nós deve optar por uma não realidade, por um erro, convencidos dele à força, como doentes, febris: nossos assentimentos, nossas adesões são como que sintomas alarmantes. Todo aquele que se confunde com o que quer que seja mostra disposições mórbidas: não existe salvação nem saúde fora do ser puro, tão puro quanto o vazio. Mas voltemos à Providência, a um assunto um pouco menos vago… Desejamos saber até onde uma época foi atingida e quais foram as dimensões do desastre que teve de sofrer? Que se meça o ardor que os crentes demonstraram para justificar os desígnios, o projeto e a conduta da divindade. Não é nada espantoso que a obra capital de Maistre, Les soirées de Saint-Pétersbourg, seja uma variação sobre o tema do governo temporal da Providência: não vivia numa época em que, para os contemporâneos perceberem os efeitos da bondade divina, eram necessários os recursos conjugados do sofisma, da fé e da ilusão? No século V, na Gália devastada pelas invasões bárbaras, Salviano, ao escrever De gubernatione Dei, também se dedicara a uma tarefa semelhante: combate desesperado contra a evidência, missão sem objetivo, esforço intelectual à base de alucinação… A justificação da Providência é o dom-quixotismo da teologia.

Por mais dependente que seja dos diversos momentos históricos, a sensibilidade ao destino não é, por isso, menos condicionada pelo caráter do indivíduo. Todo aquele que se engaja em projetos importantes se sabe à mercê de uma realidade que o ultrapassa. Só os espíritos fúteis, só os “irresponsáveis” pensam agir livremente. Os outros, no meio de uma experiência essencial, raramente se esquivam à obsessão da necessidade ou da “estrela”. Os governantes são administradores da Providência, observa Saint-Martin. Friedrich Meinecke, por sua vez, advertia que, no sistema de Hegel, os heróis parecem meros funcionários do Espírito absoluto. Um sentimento análogo levou Maistre a dizer que os líderes da Revolução eram apenas “autômatos”, “instrumentos”, “criminosos” que em vez de conduzirem os acontecimentos sofriam o seu curso.

Esses autômatos, esses instrumentos, em que eram mais culpados do que a força “superior” que os suscitara e da qual fielmente executavam os decretos? Não seria também esta força criminosa? Como esta representava para Maistre o único ponto fixo em meio ao “turbilhão” revolucionário, ele não a acusará, ou pelo menos agirá como se lhe aceitasse sem discussão a autoridade. No entanto, em seu pensamento, ela na realidade só interviria nos momentos de agitação e desapareceria nos períodos de calma, de modo que a identifica implicitamente com um fenômeno de época, com uma providência de circunstância, útil para a explicação das catástrofes, supérflua no intervalo das desgraças e quando as paixões se apaziguam. Circunscrevendo-a no tempo, ele reduz sua importância.

Para nós, ela só tem uma plena justificação se se manifesta em toda parte e sempre, se pode estar de guarda o tempo todo. O que fazia antes de 1789? Dormia? Não estava a postos durante todo o século XVIII e não quis que este século fosse, segundo Maistre, e apesar de sua teoria da intervenção divina, o principal responsável pela aparição da guilhotina?

Para ele, ela ganha um conteúdo, se transforma realmente na Providência a partir de um milagre, a Revolução: “se, em pleno inverno, diante de mil testemunhas, um homem ordenar a uma árvore que imediatamente se cubra de folhas e de frutos, e ela obedecer, todos falarão em milagre e se inclinarão diante do taumaturgo. Mas a Revolução Francesa e tudo o que se passa neste momento é tão maravilhoso, no seu gênero, quanto a frutificação instantânea de uma árvore em pleno mês de janeiro…” […]

Diante de uma força que opera tais prodígios, o crente se perguntará sobre a maneira de salvaguardar a sua liberdade, de evitar a tentação do quietismo e aquela, mais grave, do fatalismo. Enfrentando estas dificuldades no próprio início das Considérations, o autor tenta contorná-las através de sutilezas ou do equívoco: “Estamos todos presos ao trono do Ser supremo por uma corrente flexível, que nos detém sem nos escravizar. O que há de admirável na ordem universal das coisas é a ação dos seres livres sob a mão divina. Livremente escravos, eles agem ao mesmo tempo voluntária e necessariamente: fazem realmente o que querem, mas sem poder alterar os planos gerais.”

“Corrente flexível”, escravos que agem “livremente” são incompatibilidades que traem o embaraço do pensador diante da impossibilidade de conciliar a onipotência divina com a liberdade humana. E é sem dúvida para salvar esta liberdade, para lhe deixar um campo de ação mais vasto que ele postula o desaparecimento da intervenção divina nos momentos de equilíbrio, intervalos verdadeiramente curtos porque a Providência, repugnando eclipsar-se por muito tempo, só sai de seu repouso para ferir, para manifestar sua inclemência. A guerra será o seu “departamento”, no qual só permitirá ao homem agir “de uma forma quase mecânica, já que aí as vitórias dependem quase inteiramente do que menos depende dele”. A guerra será então “divina”, “uma lei do mundo”, “divina” sobretudo pela maneira como explode. “No preciso momento conduzido pelos homens e determinado pela justiça, Deus avança para vingar a iniquidade que os habitantes do mundo cometeram contra ele.”

“Divino”, não existe adjetivo que Maistre utilize tão frequentemente: a constituição, a soberania, a monarquia hereditária, o papado são, para ele, obras “divinas”, como o é toda autoridade consolidada pela tradição, toda ordem cuja origem remonta a uma época longínqua. O resto, miserável usurpação, portanto obra “humana”. Em suma, “divino” diria respeito ao conjunto de instituições e fenômenos que o pensamento liberal abomina. No que se refere à guerra, o adjetivo parece, à primeira vista, infeliz. Substitua-o por irracional e deixará de sê-lo. Este tipo de substituição, se praticado em muitas expressões de Maistre, lhe atenuaria o caráter escandaloso. Mas, agindo assim, não acabaríamos por tornar insípido um pensamento cujo encanto é a virulência? Além do que, chamar e invocar Deus a todo instante, misturá-lo e associá-lo ao horrível consegue fazer tremer o crente mais equilibrado, reticente e sensato, ao contrário do fanático que, crente verdadeiro, se deleita com as extravagâncias sanguinárias da divindade.

Divina ou não, a guerra, tal como aparece nas Soirées, não deixa de exercer sobre nós um certo fascínio. Não é o caso quando preocupa um espírito de segunda categoria como Donoso Cortés, discípulo espanhol de Maistre: “A guerra, obra de Deus, é boa como são boas as suas obras. Mas uma guerra pode ser desastrosa e injusta, porque é obra do livre-arbítrio do homem.” “Nunca pude compreender os que condenam a guerra. Este anátema é contrário à filosofia e à religião: os que o pronunciam não são nem filósofos nem cristãos.”

O pensamento do mestre, já estabelecido numa posição extrema, mal suporta o acréscimo de exagero que lhe traz o aluno. As más causas exigem talento ou temperamento. O discípulo, por definição, não possui nem um nem outro.

A agressividade, em Maistre, é inspiração, hipérbole, ciência infusa. Levado aos extremos, ele só pensa em nos arrastar para lá. E é assim que consegue nos reconciliar com a guerra, assim como nos reconcilia com a solidão do carrasco, se não com o próprio carrasco. Cristão mais por persuasão do que por sentimento, estranho sobretudo aos personagens do Novo Testamento, ele ama secretamente o fausto da intolerância e não lhe fica mal ser intratável: foi por acaso que compreendeu tão bem o espírito da Revolução? E teria conseguido descrever seus vícios se não os tivesse reconhecido em si mesmo? Como inimigo do Terror – e ninguém se insurge impunemente contra um acontecimento, uma época ou uma ideia – ele precisou, para combatê-lo, de impregnar-se dele, assimilá-lo. Sua experiência religiosa iria ressentir-se disso: é dominada pela obsessão do sangue. Por isso foi mais seduzido pelo Deus antigo (“o Deus dos exércitos”) do que pelo Cristo, de que sempre fala em frases convencionais, “sublimes” e, na maior parte das vezes, para justificar esta teoria, apenas interessante, da reversibilidade das dores da inocência em proveito dos culpados. Aliás, o único Cristo que lhe poderia agradar teria sido o da estatuária espanhola, sanguinolento, desfigurado, convulsivo e satisfeito até a loucura com sua crucificação.

Relegando Deus para fora do mundo e dos assuntos humanos, privando-o das virtudes e das faculdades que lhe permitiram fazer sentir aí sua presença e autoridade, os deístas o rebaixaram ao nível de uma ideia e de um símbolo, a uma figuração abstrata da bondade e da sabedoria. Tratava-se de lhe conferir de novo, após um século de “filosofia”, os antigos privilégios, o estatuto de tirano de que foi tão impiedosamente despojado. Bom e correto, ele deixava de ser temível, perdia todo o poder sobre os espíritos. Perda considerável, de que Maistre foi mais consciente do que qualquer de seus contemporâneos e que só podia enfrentar lutando o melhor possível pelo restabelecimento do “verdadeiro” deus, do deus terrível. Não se compreende nada das religiões quando se acredita que o homem evita uma divindade caprichosa, perversa e mesmo feroz, ou se esquece que ele ama o medo até o frenesi.

O problema do mal só perturba realmente alguns delicados, alguns céticos, revoltados pela maneira como o crente se conforma com ele ou o escamoteia. É para esses então que, em primeiro lugar, se dirigem as teodiceias, tentativas de humanizar Deus, acrobacias desesperadas que fracassam e se comprometem no seu próprio terreno, desmentidas a cada instante pela experiência. Embora procurem convencê-los de que a Providência é justa, não o conseguem. Eles a declaram suspeita, a incriminam e lhe pedem explicações em nome de uma evidência, a do mal, evidência que um Maistre tentará negar. “Tudo é mal”, ensinava. O mal, no entanto, apressa-se em acrescentar, restringe-se a uma força “puramente negativa” que não tem nada “em comum com a existência”, a um “cisma do ser”, a um acidente. Outros, ao contrário, pensarão que tão constitutivo do ser quanto o bem, e igualmente verdadeiro, ele é natureza, ingrediente essencial da existência e de modo algum fenômeno acessório, e que os problemas que suscita se tornam insolúveis se nos recusamos a inseri-lo, a situá-lo na composição da substância divina. Assim, como a doença não é uma ausência de saúde mas uma realidade tão positiva e tão durável quanto a saúde, da mesma forma o mal equivale ao bem, ultrapassa-o até em indestrutibilidade e plenitude. Um princípio bom e um princípio mau coexistem e se misturam em Deus, como coexistem e se misturam no mundo. A ideia da culpabilidade de Deus não é uma ideia gratuita, mas necessária e perfeitamente compatível com a de sua onipotência: só ela confere alguma inteligibilidade ao desenvolvimento histórico, a tudo o que ele contém de monstruoso, de insensato e de insignificante. Atribuir ao autor do devir a pureza e a bondade é desistir de compreender a maior parte dos acontecimentos e principalmente o mais importante: a Criação. Deus não podia esquivar-se da influência do mal, mola dos atos, agente indispensável para todo aquele que, cansado de repousar em si, aspira a sair de si mesmo para expandir-se e degradar-se no tempo. Segredo do nosso dinamismo, o mal se retiraria de nossa vida se vegetássemos nesta perfeição monótona do bem que, de acordo com o Gênesis, excedia o próprio Ser. O combate entre os dois princípios, bom e mau, trava-se em todos os níveis da existência, inclusive na eternidade. Estamos mergulhados na aventura da Criação, proeza das mais temíveis, sem “fins morais”, e talvez sem significação. E, embora a ideia e a iniciativa pertençam a Deus, não lhe poderíamos guardar rancor, tão grande é, aos nossos olhos, o seu prestígio de primeiro culpado. Tornando-nos seus cúmplices, associou-nos a este imenso movimento de solidariedade com o mal, que sustenta e assegura a confusão universal.

Sem dúvida Maistre não confiaria numa doutrina tão fundamentada no bom-senso: não se propõe a atribuir alguma verossimilhança a uma teoria tão temerária quanto a de uma divindade essencialmente e unicamente boa? Missão difícil, e mesmo irrealizável, de que espera desincumbir-se sobrecarregando a natureza humana: “(…) nenhum homem é punido enquanto justo, mas sempre enquanto homem, de modo que é falso dizer que a virtude sofre neste mundo: é a natureza humana que sofre e ela sempre o merece”.

Como exigir do justo que faça a distinção entre sua qualidade de homem e sua qualidade de justo? Nenhum inocente irá afirmar: “Sofro enquanto homem, e não enquanto homem de bem.” Reivindicar uma tal dissociação é cometer um erro psicológico, é enganar-se sobre o sentido da revolta de um Jó e não ter entendido que o pestilento cedeu diante de Deus muito menos por convicção do que por cansaço. Nada permite considerar a bondade o atributo maior da divindade. O próprio Maistre, às vezes, parece inclinado a pensar: “O que é uma injustiça de Deus para com o homem? Haveria, por acaso, algum legislador universal acima de Deus que lhe tivesse determinado a maneira como deve agir em relação ao homem? E qual será o juiz entre ele e nós?” “Quanto mais Deus nos parecer terrível, mais deveremos redobrar o temor religioso para com ele, mais nossas preces deverão ser ardentes e infatigáveis: porque nada nos diz que sua bondade nos compensará.” E acrescenta, numa das passagens mais significativas das Soirées, estas considerações de uma imprudente franqueza: “Como a prova de Deus precede a de seus atributos, sabemos que ele é antes de saber o que ele é. Estamos, portanto, num império cujo soberano proclamou, uma vez por todas, as leis que regem tudo. Essas leis revelam, em geral, uma sabedoria e mesmo uma bondade notáveis: algumas, entretanto (suponho agora), parecem duras, até injustas, se quiserem: quanto a isso, pergunto a todos os descontentes o que se deve fazer. Talvez sair do império? Impossível: está em toda parte e nada existe fora dele. Lamentar-se, enraivecer-se, escrever contra o soberano? Só se for para ser castigado ou morto. Não há melhor posição a tomar do que a da resignação e do respeito, direi até do amor. Pois, uma vez que partimos da suposição de que o mestre existe, e de que devemos servi-lo a qualquer preço, não é melhor (para quem quer que seja) servi-lo por amor do que sem amor?”

Declaração inesperada que teria encantado um Voltaire. A Providência é desvelada, denunciada, tornada suspeita, por aquele mesmo que se dedicara a celebrar sua honradez e bondade. Sinceridade admirável e cujos riscos deve ter compreendido. Depois disso, ele se esquecerá cada vez menos e, como de costume, ao colocar o homem em questão, desprezará o ataque empreendido contra Deus pela revolta, pelo sarcasmo ou pelo desespero. Para melhor censurar a natureza humana pelos males que ela suporta, forjará esta teoria, eminentemente insustentável, da origem moral das doenças: “Se não existisse nenhum mal moral sobre a Terra, não haveria nenhum mal físico.” “Toda dor é um suplício imposto por algum crime atual ou original.” “Se não faço nenhuma distinção entre as doenças, é porque todas elas são castigos.”

Esta doutrina, ele a baseia na do pecado original, sem a qual, diz, “não se explica nada”. Mas se engana quando reduz o Pecado a uma transgressão primitiva, a uma falta imemorial e premeditada, em vez de ver nele uma tara, um vício de natureza. Engana-se também quando, após ter falado com razão de uma “doença original”, ele a atribui a nossas iniquidades, enquanto ela estava inscrita, como o Pecado, em nossa própria essência: desequilíbrio primordial, calamidade que afeta indiferentemente o bom e o mau, o virtuoso e o vicioso.

Enquanto se limita a descrever os males que nos afligem, ele está com a verdade. Perde-se quando tenta explicar e justificar sua distribuição sobre a Terra. Suas constatações nos parecem exatas; suas teorias e seus juízos de valor, desumanos, nulos. Se as doenças são castigos, como gosta de pensar, então os hospitais estariam repletos de monstros e os incuráveis seriam, de longe, os maiores criminosos que existem. Não levemos a apologética a suas últimas consequências, mostremos alguma indulgência para com aqueles que, empenhados em inocentar Deus, em desculpá-lo, deixam só para o homem a honra de ter concebido o mal… Como todas as grandes ideias a da Queda explica tudo e não explica nada, sendo tão difícil fazer uso dela quanto viver sem ela. Mas, enfim, quer seja atribuída a uma falta ou a uma fatalidade, a um ato de ordem moral ou a um princípio metafísico, a verdade é que ela explica, pelo menos em parte, nossos descaminhos, nossa irrealização, nossas buscas infrutíferas, a terrível singularidade dos seres, o papel de perturbador, de animal desequilibrado e inventivo que foi reservado a cada um de nós. E se ela comporta numerosos aspectos sujeitos à caução, existe um, no entanto, cuja importância não se contestará: é o que faz remontar nossa degradação à nossa separação do todo. Isso não podia escapar a Maistre: “Quanto mais examinamos o universo, mais nos sentimos inclinados a acreditar que o mal vem de uma certa divisão que não sabemos explicar e que o retorno ao bem depende de uma força contrária que nos impele sem cessar para uma unidade igualmente inconcebível.”

Como, realmente, explicar a divisão? Atribuí-la à insinuação do devir no ser? À infiltração do movimento na unidade primordial? A uma oscilação fatal causada pela feliz indistinção anterior ao tempo? Não se sabe. O que parece certo é que “a história” provém de uma identidade desfeita, de uma ruptura inicial, fonte do múltiplo, fonte do mal.

A ideia do pecado, solidária com a de divisão, só satisfaz o espírito se nos servimos dela com precaução, ao contrário de um Maistre que, de maneira inteiramente arbitrária, acaba por imaginar um pecado original de segunda ordem, responsável, segundo ele, pela existência do selvagem, este “descendente de um homem cortado da grande árvore da civilização por uma prevaricação qualquer”, ente decaído que não poderíamos olhar “sem ler o anátema escrito, não digo apenas em sua alma, mas até na forma exterior de seu corpo”, “atingido nas últimas profundezas de sua essência moral”, em hipótese alguma semelhante ao homem primitivo, porque “com nossa inteligência, nossa moral, nossas ciências e nossas artes, estamos para o homem primitivo exatamente como o selvagem está para nós”.

E nosso autor, disposto a ir até os confins de uma ideia, afirma que “o estado de civilização e de ciência, em um certo sentido, é o estado natural e primitivo do homem”, que os primeiros humanos, seres “maravilhosos” que possuíam uma ciência superior à nossa, percebiam os efeitos nas causas e desfrutavam da posse de “informações preciosas” fornecidas por “seres de uma natureza superior” e que, além disso, certos povos refratários a nosso modo de pensar parecem ainda conservar a lembrança da “ciência primitiva” e da “era da intuição”.

Eis a civilização colocada antes da história! Esta idolatria dos inícios, do paraíso já realizado, esta obsessão pelas origens é a própria marca do pensamento “reacionário” ou, se se preferir, “tradicional”. Pode-se certamente conceber uma “era da intuição”, mas com a condição de não identificá-la nunca com a própria civilização, que pressupõe – enquanto ruptura com o modo de conhecimento intuitivo – relações complexas entre o ser e o conhecer, assim como uma incapacidade do homem para sair de suas próprias categorias, sendo o “civilizado”, por definição, estranho à essência, à percepção simultânea do imediato e do último. É brincar com as palavras falar de uma civilização perfeita antes do aparecimento das condições suscetíveis de tornar qualquer civilização possível, é ampliar abusivamente a esfera do conceito de civilização incluir nela a idade de ouro. A história, segundo Maistre, deve nos fazer retornar – pelo desvio do mal e do pecado – à unidade da era paradisíaca, à civilização “perfeita”, aos segredos da “ciência primitiva”. Em que consistiam estes segredos não tenhamos a indiscrição de lhe perguntar: ele os declarou impenetráveis, apanágios de homens “maravilhosos” e não menos impenetráveis. Jamais formula uma hipótese sem logo tratá-la com as considerações devidas à certeza: como colocaria em dúvida a existência de uma ciência imemorial quando, sem ela, não conseguiria “explicar-nos” aquela que é, cronologicamente, a primeira das nossas catástrofes? Já que os castigos são proporcionais aos conhecimentos do culpado, o dilúvio, assegura-nos, pressupõe “crimes inauditos” e estes crimes, por sua vez, pressupõem “conhecimentos infinitamente superiores àqueles que possuímos”. Bela e improvável teoria, que deve ser comparada àquela sobre os selvagens, cujos termos são: “O chefe de um povo alterou em sua terra o princípio moral por algumas dessas prevaricações que, aparentemente, não são mais possíveis no estado atual das coisas, porque felizmente sabemos pouco sobre isto para ficarmos culpados: este chefe, digo, transmite a maldição a sua posteridade. E já que toda força constante é, por natureza, aceleradora, pois se acrescenta continuamente a si mesma, esta degradação pesa ininterruptamente sobre os descendentes, produzindo no fim o que chamamos de selvagens.”

Nenhuma necessidade de precisar a natureza desta prevaricação. Não avançaremos muito quando nos disserem que é atribuída a um pecado original de segunda ordem. Não é bem mais cômodo, para inocentar a Providência, cobrar somente à criatura a culpa das anomalias que abundam sobre a Terra? Porque, se o homem é degradado desde o início, sua degradação, assim como a do selvagem, só pode começar por uma falta cometida num dado momento, por uma prevaricação inventada, no final das contas, para consolidar um sistema e sustentar uma causa das mais duvidosas.

A doutrina da Queda exerce grande sedução sobre os reacionários de qualquer matiz. Os mais empedernidos e os mais lúcidos entre eles sabem, além disso, que refúgio ela oferece contra os prestígios do otimismo revolucionário: não postula a invariabilidade da natureza humana, condenada sem remédio à decadência e à corrupção? Por conseguinte, não há saída, não há solução para os conflitos que afligem as sociedades, nem possibilidade de uma transformação radical que viria a modificar sua estrutura: a história, tempo idêntico, espaço onde se desenrola o processo monótono de nossa degradação! Contudo, o reacionário, este conservador que tirou a máscara, tomará emprestado das sabedorias o que elas têm de pior e de mais profundo: a concepção do irreparável, a visão estática do mundo. Toda sabedoria e, com muito mais razão, toda metafísica são reacionárias, assim como toda forma de pensamento que, em busca de constantes, se emancipa da superstição do diverso e do possível. Um sábio ou um metafísico revolucionário é uma contradição em termos. A um certo grau de indiferença e de clarividência, a história não tem mais valor, o próprio homem deixa de ser importante: romper com as aparências é vencer a ação e as ilusões que resultam dela. Quando nos debruçamos sobre a miséria essencial dos seres, não nos detemos naquela que resulta das desigualdades sociais, nem tentamos remediá-la. (Podemos imaginar uma revolução buscando seus slogans em Pascal?)

Muitas vezes o reacionário é apenas um sábio habilidoso, um sábio interesseiro que, explorando politicamente as grandes verdades metafísicas, vasculha sem fraqueza nem piedade os segredos do fenômeno humano, para revelar seu horror. Um aproveitador do terrível, cujo pensamento – coagulado pelo cálculo ou pelo excesso de lucidez – minimiza ou calunia o tempo. Mais generoso, porque mais ingênuo, o pensamento revolucionário, associando ao desenrolar do devir a ideia de substancialidade, distingue na sucessão um princípio de enriquecimento, uma fecunda ruptura da identidade e da monotonia, e um aperfeiçoamento nunca desmentido, sempre em marcha. Um desafio lançado à ideia do pecado original: este parece ser o sentido último das revoluções. Antes de proceder à liquidação da ordem estabelecida, elas querem libertar o homem do culto das origens a que o condena a religião. Só conseguem isso minando os deuses, enfraquecendo seu poder sobre as consciências. Porque são eles, os deuses, que, nos acorrentando a um mundo anterior à história, nos fazem desprezar o Devir, fetiche de todos os inovadores, do mero resmungão ao anarquista.


CIORAN, “Joseph de Maistre: ensaio sobre o pensamento reacionário”, Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

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