“O sacrifício de Kierkegaard” – Harold BLOOM

Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 18 de maio de 1997

Harold Bloom comenta a influência de Hegel na obra do filósofo dinamarquês

O que Kierkegaard chamava de “repetição” é o que cada um de nós sente quando resolve se entregar, mais uma vez, a alguma possibilidade de natureza supostamente transcendental. Isso fica muito perto da auto-ilusão perpétua que a maioria de nós chama de “paixão amorosa”, de tal modo que se pode até reduzir a “repetição” de Kierkegaard à compulsão de repetição do Instinto de Morte freudiano.

Assim como Freud, também Kierkegaard é um mestre das ironias eróticas, mas isto é tudo que os dois tinham em comum. “A ironia é um crescimento anormal… acaba matando o indivíduo.” Esta noção de Kierkegaard divide a repetição em duas espécies e permite ao pensador dinamarquês fazer o elogio do homem casado e fiel como o verdadeiro herói da repetição: “Ele resolve o grande enigma de como viver na eternidade, escutando o relógio bater as horas na sala -escutando-o de tal maneira que cada badalada só prolonga, não encurta a eternidade”.

Uma “repetição” dessa ordem é uma revisão irônica da figura hegeliana da “mediação”. Se, para Hegel, Jesus Cristo é o grande mediador, para Kierkegaard Cristo é um mestre da repetição, mestre de uma cena na qual se aprende sobre a repetição. Kierkegaard, para mim, é menos um escritor religioso do que um homem voltado à especulação poética; e uma de suas principais áreas de interesse é o processo de instrução.

A tarefa verdadeira de suas reflexões é a dificuldade imensa de se tornar um cristão, numa sociedade aparentemente cristã. Tornar-se cristão, para Kierkegaard, foi uma luta tão constante quanto tornar-se poeta para Keats. Este último se deixou encontrar pelos mestres Wordsworth, Milton e Shakespeare. Kierkegaard, à procura de uma originalidade ainda mais robusta, só se deixou encontrar, basicamente, por si mesmo e por Jesus Cristo, o único fundador absoluto de uma Cena da Instrução.

A página de rosto dos “Fragmentos Filosóficos” (1844) nos confronta com uma pergunta tripla: “Será possível ter um ponto de partida histórico para a consciência eterna? Como poderia um tal ponto ter qualquer interesse além do meramente histórico? Será possível basear a felicidade eterna no conhecimento histórico?”. O objetivo de Kierkegaard é refutar Hegel, separando claramente o cristianismo da filosofia idealista; mas essa pergunta tríplice também é aplicável ao paradoxo laico da encarnação e da influência poética. Pois a angústia da influência vem da afirmação, pelo efebo, de uma consciência eterna, divinatória, e que, no entanto, teve seu ponto de partida histórico num encontro intertextual -mais crucialmente ainda no momento de interpretação, ou desapropriação, que tem lugar nesse encontro. Como, de fato, o efebo deve se perguntar, como um ponto de partida desses pode ter mais do que um interesse meramente histórico? Como pode o desejo de imortalidade poética (a única felicidade eterna que importa) estar fundado num encontro tardio e tão preso ao tempo?

Fazendo frente ao hegelianismo de esquerda, Kierkegaard compara Sócrates e Cristo com professores. Sócrates e seu aluno não tem nada a ensinar um ao outro, mas cada um oferece ao outro um caminho para o autoconhecimento. Já Cristo compreende a si mesmo sem necessidade de alunos; seus alunos só estão lá para receber um amor incomensurável. A verdade cristã não é uma posse humana, como quer o idealismo hegeliano. O discípulo contemporâneo de Deus “não era contemporâneo do esplendor, não via nem escutava esplendor algum”. Não há forma de imediatez que nos faça ser contemporâneo da divindade. Aqui se vê, desde logo, o paradoxo da peculiar “repetição” kierkegaardiana.

A repetição já estava presente pelo menos desde as teses 12 e 13 de sua dissertação de mestrado, “O Conceito de Ironia” (1841). A tese 12 castiga Hegel por ter definido a ironia só com relação aos modernos, não à forma socrática. A tese 13, também dirigida contra Hegel, é um dos ditados fundamentais para qualquer estudo da influência poética: “A ironia não é, propriamente, desprovida de toda sensibilidade, ou dos movimentos mais ternos do ânimo, mas é, antes, uma amargura por um outro gozar daquilo que ela cobiça para si” (tradução de Álvaro Valls).

A verdadeira repetição, para Kierkegaard, é a eternidade; e só a verdadeira repetição pode nos livrar do mal-estar da ironia. Mas esta é uma repetição no tempo, “o pão de cada dia, que satisfaz com sua bênção”. Estamos, aqui, no centro da visão de Kierkegaard e, necessariamente, de sua angústia da influência também, com respeito ao seu precursor Hegel, já que a “repetição” de Kierkegaard fica no lugar da “mediação” hegeliana, o próprio processo da dialética. A dialética de Kierkegaard, mais internalizada, está fadada a ser mais subjetiva ainda -limitação que ele procura caracterizar como um progresso. Se a repetição é, antes de mais nada, uma reafirmação dialética da possibilidade de se tornar cristão, então seu deslocamento para a estética reafirmaria dialeticamente a possibilidade de se tornar poeta.

Nenhum discípulo contemporâneo de um grande poeta poderia realmente ser seu contemporâneo, pois o esplendor é sempre postergado. Pode ser atingido pela mediação da repetição, um retorno às origens e ao amor incomensurável conferido na Cena Primária da Instrução. A repetição poética repete uma repressão primária, que também é uma fixação sobre o precursor como mestre e salvador, o pai poético como deus mortal. A compulsão de repetir o precursor não é um movimento para além do princípio do prazer, até a inércia de uma pré-encarnação poética, mas sim um esforço de recobrar o prestígio das origens, a autoridade de uma Instrução anterior. A despeito de si, a repetição poética procura a visão mediada dos pais, porque é esta mediação que sustenta, para cada um de nós, uma possibilidade perpétua de se chegar ao sublime, ao reino dos verdadeiros professores… [+]


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